Serão naturais as «catástrofes naturais»?
Júlio Henriques entrevista Jorge Leandro Rosa
Na edição #17 do jornal MAPA fizemos referência ao congresso intitulado «Pensamento e Catástrofes – Aproximações a Jean-Luc Nancy», efectuado no Porto, durante três dias, no passado mês de Maio. Essa iniciativa, realizada por dois organismos da Universidade do Porto (1), levou a cabo em quatro locais desta cidade palestras-debates com vários investigadores nacionais e estrangeiros, propôs uma exposição («Disaster Zone»), um espectáculo de bailado («Lastro», de Né Barros), um concerto-performance («Solo Jorge Peixinho») e dois filmes da cineasta francesa Claire Denis. Quisemos saber um pouco mais falando com um dos seus principais promotores e intervenientes, o investigador Jorge Leandro Rosa, do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto.
Há um catastrofismo oficial, muito actuante desde há anos no discurso das propagandas governamentais, empresariais e mediáticas, cujo sentido parece consistir em levar as populações a adaptarem-se aos novos contextos resultantes das maiores imponderabilidades do «desenvolvimento» e às novas coerções que estas implicam, do ponto de vista do poder. No congresso, se não erro, o questionamento geral das intervenções pôs em causa as representações culturais e políticas das catástrofes contemporâneas, a sua explicação canónica ou a sua naturalização. Que balanço puderam fazer?
JLR – Os encontros tinham por primeiro intento trazer as catástrofes ao pensamento público. Para isso precisávamos de regressar ao problema contemporâneo dos acontecimentos que tocam um limite considerado perigoso ou que prolongam o conceito cultural e filosófico do ilimitado, ainda muito presente nas sociedades. O que significa que as catástrofes são, simultaneamente, algo da ordem do acontecimento que pode ser pensado – sabendo nós que esse «pensável» é também a questão da transformação do próprio pensamento – e algo que é produzido discursivamente. As catástrofes são tanto aquilo que nos atinge como o que nós próprios realizamos com elas no plano da significação. É por isso que precisamos de retirá-las às categorias habituais em que elas são colocadas, sejam elas teológicas, filosóficas ou preventivas.
Aquilo a que chamas o «catastrofismo» alimenta-se de tudo isto: trata-se de uma potenciação, assim como de uma reorientação, da própria experiência dos povos, que foi sendo atravessada ao longo dos tempos por situações de catástrofe de diversa ordem, e que os poderes políticos, militares e económicos de hoje, confrontados como estão por diversos limites do actual «sistema-mundo», não hesitam em utilizar dos modos mais diversos. O catastrofismo é um discurso de intuito repressivo que se serve da matéria vivida e real da experiência, seja a dos colectivos humanos, seja a individual. Se podemos dizer que o catastrofismo tem algo de ficcional, de puro material propagandístico, ele é também uma forma de engenharia social que joga com as fragilidades bem concretas e ameaçadoras da situação humana. Trata-se, portanto, também aqui, de uma catástrofe política que pode surgir em todos os regimes e em todas as culturas onde o poder é objectivado e se define por uma relação de centro versus periferia. Como todos sabemos, as democracias ocidentais são hoje reguladas pela exibição da ameaça nas suas diversas formas. Quanto mais a ameaça de catástrofe me for dada a ver, mais monstruosa será a forma de vida que serei levado a aceitar. E mais monstruoso será o dispositivo securitário para o qual darei o meu contributo. Se o exemplo óbvio que nos vem à mente é o do Islamismo, não faltam inúmeros outros no tecido catastrofista das nossas sociedades: desde o desemprego, que é um clássico espectro do capitalismo, às migrações ou ao regresso do medo nuclear. E, evidentemente, a crise ambiental que, sob formas diversas, está hoje a entrar no arsenal dos Estados-Maiores da catástrofe. As catástrofes, na sua forma multidimensional, são a razão de ser do poder contemporâneo e, nesse sentido, funcionam como uma vertigem obsediante: quantos mais esforços nos são pedidos para delas nos desviarmos, mais somos tomados por um movimento de aproximação a elas.
Há ainda um outro tipo de discurso, muito potente hoje, que é aquele que se pretende fundado na tecnociência e na sua infinita capacidade de obviar a todas as crises. Aqui, as ameaças nunca chegam a ser objecto de uma clarificação política e social, já que há sempre um dispositivo que monitoriza as ameaças e as converte em algo que é declarado como servindo uma finalidade útil. Podemos percebê-lo na forma como os Estados gerem actualmente a catástrofe climática. Parece o inverso do catastrofismo, mas é somente a sua prossecução sob a forma de uma engenharia global da sociedade, a qual será bem patente quando for claro que as medidas de mitigação propostas não serão minimamente efectivas. Um dos participantes do Encontro, o Frédéric Neyrat, tem trabalhado a partir da leitura crítica de um certo pensamento construtivista que se esforça por eliminar a cesura natureza-cultura (2). Eliminada essa diferença, todos os fenómenos climáticos, geológicos, biológicos e epidemiológicos podem passar a ser manipulados a partir de uma sistemática reconstrução da Terra como habitat vocacionado para os seres humanos. Na verdade, essa reconstrução já decorre há muito tempo, mas a conjugação actual da crise das energias, fósseis com a sexta extinção das espécies vivas e a mudança climática, abrupta oferece uma oportunidade de ouro aos geoconstrutivistas de todo o tipo. Como escreve Neyrat num livro importante sobre estas questões (que espero venha a ter edição portuguesa em breve), «o Antropoceno foi activa, deliberada e conscientemente instalado». Que exemplo mais claro teremos dessa interdependência entre desastre e remédio do que a presente euforia das empresas petrolíferas em torno do iminente desaparecimento dos gelos do Ártico? Entramos numa era onde as catástrofes adquirem novas morfologias, como Nancy bem percebeu. Ele parte do exemplo de Fukushima, mas podemos olhar para os recentes fogos catastróficos em Portugal: intimamente associados à integral reconstrução da natureza em áreas florestais, estes fogos não são, seguramente, desastres naturais. Eles marcam o fim da diferenciação entre catástrofes naturais e catástrofes causadas pelos humanos.
Tive a impressão de que os contextos universitários não são (ou já não são) propícios ou adequados a questionamentos desta qualidade, a avaliar pelo contraste entre a importância temática das conferências e debates, o número de assistentes e as reacções. Achas que vale a pena ter isto em consideração, pensar noutras «fórmulas» para expor em público questões tão decisivas como as levantadas no vosso congresso?
JLR – A universidade está esvaída da sua função crítica, depois de um período em que se tinha aberto às interrogações da contemporaneidade. É hoje uma instituição contraprodutiva, no sentido em que Ivan Illich as definiu: o que ela faz – e faz muitas coisas, é obrigada a fazer cada vez mais e a viver para indicadores – serve essencialmente o seu espelhamento e o benefício das suas clientelas, o que a retira à vida questionadora e interpelante. Achámos, contudo, que o nosso tema continha a necessidade de reencontrarmos a radicalidade do pensamento, aquilo a que o Ocidente chamou «filosofia», para fazermos uma revisitação destas questões. No espaço social, dominado pelos media, a catástrofe é um objecto equívoco, sobre o qual não há reflexão, mas apenas um conjunto de lugares-comuns que nos impedem de a pensar. Teoricamente, a Universidade poderia favorecer a formulação de um ponto de partida diferente. Sendo Jean-Luc Nancy, enquanto filósofo, alguém que soube pensar o novo regime do catastrófico, pareceu-nos que valia a pena desafiar a comunidade académica com uma das suas figuras mais criativas. Seria uma provocação relativamente pacífica, não fosse dar-se o caso de termos verificado que a universidade só quer saber das catástrofes que estão arrumadas na historiografia ou das catástrofes que desafiam o poder de cálculo das suas disciplinas. Por aí, não tivemos uma repercussão significativa. Na verdade, a Universidade é parte do nosso problema civilizacional, já que perdeu a autonomia face às tendências que o capital e a indústria promovem.
Ainda há algumas pessoas que hoje pensam estas questões na Universidade, mas que, por diversas razões, não prolongam esse pensamento noutros espaços (esse prolongamento é aqui de algo que se opõe à simples divulgação). Seja por uma questão de estilo, seja por receio ou incapacidade de trabalhar em diversos contextos. Por outro lado, a burocratização e a competitividade económica, laboral e hierárquica do trabalho académico reduziu à quase irrelevância os colóquios e as publicações que aí acontecem, já que não há uma partilha entre pares do que se faz nem uma verdadeira irradiação pública. Julgo que há necessidade de iniciativas que, não virando as costas ao mundo académico, decorram numa multiplicidade de contextos. No nosso caso, ao pensarmos as catástrofes, torna-se óbvio que estamos a ser interpelados pela questão da comunidade: seja a necessidade da sua reinvenção, seja simplesmente a sua possibilidade. Precisamos, portanto, de debates nómadas, de iniciativas que possam viajar nos territórios, encontrar populações, e não ficar apenas confinados às instituições ou ao ciberespaço.
O convidado principal, Jean-Luc Nancy, viu-se impossibilitado de estar presente por motivos de saúde. Mas estiveram lá os seus livros, não só nos debates, mas também através do lançamento de A Declosão (Desconstrução do Cristianismo) [Palimage, Coimbra, tradução de Fernanda Bernardo], e d’A Equivalência das Catástrofes (Após Fukushima), que tiveste a iniciativa de traduzir e co-editar em 2014. Este último, pela sua temática, pôde ser um guia para o encontro, designadamente quando nele se diz que «as catástrofes naturais já não são separáveis das suas implicações ou repercussões técnicas, económicas e políticas», podendo-se assim interrogar em que medida são hoje naturais as catástrofes assim chamadas. Gostaria por isso que comentasses o que expões no teu ensaio «A Posição Detestável» (3), quando afirmas que «há que abandonar as atribuições de sentido das catástrofes».
JLR – Esse ensaio é em parte um diálogo implícito com o texto de Nancy («Da ontologia em tecnologia») que abre a revista que editámos nesta ocasião. Aí, ele diz que «a reflexão sobre a técnica não pode confinar-se a uma reflexão sobre os bons ou os maus usos da técnica, como se dispuséssemos de um horizonte de referência em função do qual poderíamos determinar quer o “bom” quer o “mau”». Quer ele dizer que a técnica deixou de ser, se é que alguma vez foi, uma mera ferramenta utilizada por um ser dotado de razão que se encontra no meio de um universo natural que ele pode desbravar. Desbrava-o bem ou mal, mas inferimos que só pode ter aí uma acção ilimitada e que essa ilimitação do agir técnico seria a sua essência. A partir daí podemos verificar que há uma reincidência longa nessa equívoca ideia de que a técnica se conserva sempre, de algum modo, numa exterioridade que nos é possível inteiramente determinar e circunscrever. Na verdade, não há um reino da técnica, uma sua autarcia rigorosamente delimitável: o que há é uma técnica que se liga, no sentido de adquirir propriedades destes, aos seres e às forças que trabalha, o que quer simplesmente dizer que ela tem por vocação ampliar, substituir e tomar as funções do que chamamos «natureza».
Na minha leitura, não será o estabelecimento de categorias de sentido (éticas, antropológicas ou outras), supostamente inscritas nos nossos actos técnicos, que nos permitirá controlá-los ou trazê-los a uma razoabilidade na nossa relação com a natureza. A nossa relação com a natureza está hoje determinada por uma dessas categorias, a produtividade: a natureza é aí inteiramente remetida para a função produtiva, mas de um modo que foi espartilhado pela tradição filosófica segundo a sua dupla condição de produtora e de produto. Esta concepção é uma cópia degradada da divisão em que instituímos o nosso estatuto de sujeitos técnicos colocados diante de objectos. Aí, quer o objecto natural quer o sujeito humano participam do grande estaleiro em que transformámos o planeta. Resumindo, direi que essas categorias são determinantes para as práticas de dominação pela técnica, já que parecem assegurar a sua infinitização quando elidem a recusa da produtividade que é também intrínseca à natureza. Ou seja, rasuramos o que escapa às atribuições de sentido na relação com a natureza, já que não reconhecemos que há sempre nela um movimento de antiprodução, seja esta uma desmontagem, uma falta ou desorganização (a morte). É expulsando essa recusa, tornando-a impensável, que as catástrofes aparecem no nosso horizonte de sentido. A «posição detestável» de que falo é então aquela em que, tendo nós deixado de perceber certos acontecimentos na sua finitude, entendendo-os sistematicamente como quebra e naufrágio de uma construção positiva, já não somos capazes de perceber que forças são essas a que chamamos catastróficas. Atentemos, ao menos, no desfazer de sentido presente nas catástrofes. Talvez, então, possamos começar uma viagem de sobrevivência no interior do colapso generalizado da civilização industrial.
Júlio Henriques
- Aesthetics, Politics and Knowledge Research Group, do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras; Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, da Faculdade de Belas-Artes.
- Ver o seu livro fundamental La part inconstructible de la Terre. Critique du géo-construtivisme. Paris, Seuil. 2016.
- «A Posição Detestável – o Comunitarismo da Catástrofe», Nanocaderno nº 1, Abril de 2017, Instituto de Filosofia da Universidade do Porto.