Morto e companhia
No Porto tem havido movimentações que pretendem agitar a normalidade das transformações na cidade, obrigando a relectir. Primeiro foram mensagens de pintar ou colar, depois uma concentração e, mais recentemente, uma ocupação duma escola abandonada.
A recente polémica de Rui Moreira a propósito dos autocolantes «Morto Ponto» serve para mostrar que o autarca só agora reparou que alguns dos seus munícipes tinham acordado do sonho turístico. Ou que talvez nunca se tenham deixado embalar pelo seu canto. Para quem anda nas ruas do Porto para além das alturas de campanha eleitoral, frases como «Smells like piss and tourists», «Make Porto Podre Again», ou mesmo os autocolantes «Morto Ponto» fazem parte do mobiliário urbano há meses. Uma outra variante de subversão da cidade-marca, «Hotel Ponto», também não é assim tão recente.
O Rui posto depois da morte do anterior não é, afinal, assim tão diferente dele. A política de gestão da cidade, sabia-se, não o seria. Moreira é, há muito, um dos arquitectos do conceito e dos pilares fundamentais da chamada reabilitação urbana. Mas poder-se-ia pensar que era suficientemente inteligente para permitir a crítica, mostrar espírito democrático, sabendo que tinha caminho aberto para levar as suas ideias por diante, numa conjuntura em que a reeleição era o cenário mais provável.
E tudo parecia encaminhar-se por aí. Terá havido poucas situações – se é que houve alguma – em que Rui Moreira reagiu intempestivamente perante alguma voz crítica. Não é novidade, por outro lado, que distribui subsídios e apoios a pessoas e colectivos – nomeadamente criadores artísticos – que são publicamente duma área ideológica distante da do presidente da Câmara Municipal do Porto (CMP). Mas, de repente, uma nota fora de tom, um grunhido.
Aproveitando a época pré-eleitoral para sair à rua, Moreira viu uns autocolantes que, imitando a imagem gráfica que a CMP comprou para a cidade, a subverteu, transformando «Porto Ponto» em «Morto Ponto». Não se conteve e avançou com uma queixa contra quem quer que tenha inventado tais autocolantes, numa histeria que incluiu acusações de jogos partidários, radicalismo e – pasme-se – ódio à cidade. O argumento: uso abusivo duma marca patenteada. Dito doutro modo, o presidente da Câmara duma cidade processou cidadãos dessa mesma cidade por utilizarem uma imagem gráfica que essa Câmara comprou com o dinheiro desses e doutros cidadãos.
Uma inversão perigosa do conceito de cidade, onde os habitantes não têm direito ao uso do que é seu património. Uma inversão perigosa do conceito de liberdade de expressão, onde uma crítica a uma política é transformada em ódio a todo o Porto. O autarca moderno e evoluído, apaixonado por arte urbana, é afinal um déspota em potência. A sair da toca.
Ao mesmo tempo que estalava esta polémica, um grupo heterogéneo de colectivos e pessoas da cidade preparava uma concentração, «O Porto não se vende, ponto», com preocupações centradas nos problemas de habitação trazidos pelas mais recentes transformações da cidade. Na semana que antecedeu a concentração de 23 de Setembro, brigadas da CMP perderam horas a retirar a maioria das centenas de cartazes que a organização tinha colado. O déspota atacava de novo e as cerca de 200 pessoas que se concentraram já o fizeram também pelo direito a pensar e agir.
A contestação parecia aumentar, era pelo menos mais visível, mas mantinha-se de facto limitada a um núcleo ainda restrito, subterrâneo, com aparições esporádicas e, acima de tudo, a focar as suas acções longe do palco eleitoral. Sem espanto, Rui Moreira acabou por conseguir a maioria nas eleições autárquicas de Outubro.
Se o fim do primeiro mandato trouxe à superfície o carácter do autarca perante a crítica, o início do segundo apresentou imediatamente novos desafios. A 14 de Outubro, um grupo também heterogéneo mas marcadamente libertário ocupava a abandonada Escola José Gomes Ferreira, passando a chamar-lhe Espaço Okupado Travêssa dos Campos. Assumindo que «o que tomamos é apenas parte do que nos pertence», recusavam liminarmente qualquer tipo de institucionalização, conforme vem patente no seu manifesto de ocupação.
Com um discurso igualmente muito crítico em relação às «profundas transformações quotidianas da nossa cidade», esta ocupação não se afirmou como resposta a problemas de habitação. Antes como um escarro na «cidade-montra, falsa, feita para o entretenimento rápido e temporário» e como alternativa real de existência para além dos «cânones impostos pelo sistema actual». Um local para «experimentar colectivamente» a gestão partilhada de espaços e necessidades, «organizando lutas fora de partidos, sindicatos, ou outro tipo de organizações institucionais».
Não chegou a durar 48 horas. A CMP, apesar de – segundo diz – ter aquele espaço alugado ao Instituto Politécnico do Porto, apressou-se a ordenar o despejo, como se depreende facilmente pelo comunicado com que justificou a operação que resultou em 21 pessoas detidas e uma cadela. O poder autárquico não quer dar espaço de implantação a projectos de reapropriação do que o abandono retira à comunidade. E preza a propriedade acima de tudo. Acima da cidade, acima das possibilidades de reabilitação verdadeira e, principalmente, acima das vontades das pessoas. As que ocupam e as que as recebem de braços abertos.
As conversas nos cafés e mercearias da zona, as boas vindas dos moradores da Travessa dos Campos (corporizada em visitas frequentes, palavras encorajadoras, ofertas várias) e a muita disponibilidade e até participação foram provas concretas de que as populações esquecidas pelos poderes acham a ocupação mais natural do que o abandono e as relações de pertença e vizinhança mais importantes do que o dinheiro que se pode fazer com uma casa. Uma realidade que nenhum despejo e nenhum resultado eleitoral podem pôr em causa.
A cidade-postal avança a passos largos, por vezes com simulacros de dor pelo que destrói, mas sem dó pelas pessoas que partem nem amor pelas que passam. É agora apenas uma grande caixa registadora a céu aberto onde se acumulam talões de balanços e balancetes de especulação imobiliária. Onde os ganhos e as perdas são proporcionais à posição social. No entanto, mais ou menos institucionais, há várias lutas que se cruzam neste momento, que partilham muitas análises e alguns caminhos e que, de formas diferentes, contactam com as populações expulsas ou em risco de o ser. Os últimos tempos parecem mostrar um início de reacção visível de quem se recusa a ser um produto duma marca, um figurante não remunerado dum parque temático. E essa visibilidade tem tido um eco encorajador nas pessoas que toca. Um processo a seguir.