Mas afinal o que é o transhumanismo? E quem são os transhumanistas?
II Parte
Uma das fases porventura menos conhecida da genealogia do H+ é o “cosmismo” russo. O propulsionador deste movimento é Nikolai Fedorov (1828-1903), que fazia seminários informais no Museu Rumiantsev de Moscovo. O cosmismo pode ser interpretado como o resultado do sincretismo dum xamanismo autóctone de origem eslava com o misticismo derivado do cristianismo ortodoxo, com o interesse das classes altas russas pela tradição maçónica, as ciências ocultas, os Rosacruz e o esoterismo europeu, tudo misturado num molho de sabor positivista. Personagens notórias como Dostoevkji, Solov’ov, Tolstoj, Gorsky, Chekrygin e Murav’ev aderiam com entusiasmo ao “projecto” ou à “nossa tarefa comum”, que segundo Fedorov era nada menos que a ressurreição física dos mortos através de meios científicos. Para isto acontecer todos os humanos, deixando-se às costas as diferenças ideológicas ou religiosas, deveriam unir-se como irmãos e irmãs na luta contra a morte. O Czar, enquanto bom pai-autocrata, deveria ser o guia político da realização da síntese da trindade: deus, homem e natureza. Pensamento e acção fundir-se-ão, assim como religião, ciência e arte. Pois o saber deve ser entendido não como objectivo, nem como subjectivo, mas como “projectivo”: mundo natural e ideias são dois pólos dum único projecto que é preciso reconhecer e dirigir. Todos os indivíduos devem tornar-se filósofos-ativistas, conscientes do destino comum de todas as vontades e actividades particulares. Neste ecumenismo cientista haverá uma “mobilização geral”, voluntária, na “guerra contra a natureza”. Os exércitos deverão juntar-se nesta guerra, transformando-se numa “força experimental” pela libertação da humanidade, adaptando todas as armas em instrumentos do bem-estar humano: Fedorov refere, como exemplo, a descoberta feita por certos cientistas americanos da possibilidade de causar a chuva disparando com canhões para as nuvens. Ainda, Fedorov sustinha que era preciso conquistar o espaço sideral, para reencontrar as “partículas” dispersas dos antepassados, e que a colonização de outros planetas era necessária para estes serem destinados à habitação e uso dos ressuscitados. Pois segundo Fedorov os biólogos do futuro iriam conseguir sintetizar os corpos humanos, modificando-os para os tornar aptos a viver em condições extremas: corpos que deverão por exemplo dispensar a reprodução sexual e que deverão evitar alimentar-se de matéria orgânica, também para evitar que se nutram das partículas dos antepassados, que, entretanto, serão objecto de manipulação por parte de animais miudíssimos dotados de potentes microscópios. Este projecto de um paraíso terreno interplanetário passava, segundo Fedorov, pela reforma dos museus, que de lugar de conservação antiquária deviam torna-se em escolas-laboratórios-templos da arte científica e sagrada da ressurreição dos mortos. Com este objectivo último, os museus interactivos assim entendidos servirão para armazenar e processar todas as informações disponíveis sobre os defuntos. Fedorov promoveu ainda a extensão do pensamento a todas as forças materiais, até chegar àquilo que ele definia como “psicocracia”, uma unificação de matéria e espírito capaz de “instilar” a consciência em todas as funções materiais, conduzindo assim o homem a “olhar deus cara a cara”.
Apesar de ter-se na altura recusado, por óbvias razões, a publicar as suas ideias, para um olhar contemporâneo, Fedorov apresenta-se mais próximo dos projectos tecnocientíficos actuais do que poderemos pensar à primeira. De facto, menos púdicos do que ele, abundam na literatura contemporânea novas versões destas bizarras visões futuristas. Basta pensar no actual engenheiro chefe da Google, Ray Kurzweil, que mediante a digitalização do património bibliotecário mundial e a recolha e tratamento dos dados dos usuários da rede pretende obter algoritmos que funcionem como a mente humana, a fim de conseguir instilar a consciência na matéria. Kurzweil afirma explicitamente querer ressuscitar o seu pai, e para tal conservou meticulosamente todos os fragmentos escritos e de outro tipo do seu querido defunto. Reparem que a Google está a estabelecer parcerias com as maiores bibliotecas, museus, fundações e institutos do mundo (além de com laboratórios, empresas, universidades e ministérios públicos), segundo uma linha estratégica que o Fedorov teria aprovado com entusiasmo. E com o objectivo declarado de arquivar e analisar a memória colectiva à espera que daí surja a nova etapa da evolução, a máquina sapientíssima. A partir da página do Google Cultural Institute de Paris (que merece uma espreitadela, também pelo estilo interactivo e pelos gráficos), ficamos a saber que as parcerias espalhadas pelo planeta fora são mais de mil (fartei-me de contar depois do primeiro milhar). Para uma reconstrução da história dos museus que funde a teoria do Gramsci da luta para a hegemonia cultural com a as análises da “governamentalidade” do Foucault vejam-se os estudos do Tony Bennett. Kurzweil fundou em 2008, com Peter H. Diamandis, a Singularity University, cujos cursos de formação intensiva podem custar dezenas de milhares de dólares. O que nos interessa aqui a respeito de Kurzweil não é, como é óbvio, a discutível validade científica da maioria das suas propostas, mas a função catequista e doutrinal em favor da ideologia do desenvolvimento tecno-económico ilimitado desempenhada por esta e outras personagens do mesmo teor. Como se pode ler na página web, a Singularity University «is a benefit corporation that provides educational programs, innovative partnerships and a startup accelerator to help individuals, businesses, institutions, investors, NGOs and governments understand cutting-edge technologies, and how to utilize these technologies to positively impact billions of people» (http://singularityu.org/).
Outra espantosa analogia reside na tentativa de decifrar por meios tecnocientíficos o “código da vida”. Pois, há que referir que a Google, desde 2008, deixou de ser apenas um dos grandes monopólios do mercado informático, passando a investir na investigação biomédica também: veja-se a propósito a empresa 23andME, ou o projecto Google Genomics que se propõe implementar soluções biotecnológicas inovadoras mediante a análise computacional da informação genética de milhões de indivíduos. Graças à aplicação dos sistemas de bases de dados, ou seja, graças ao armazenamento e processamento de uma quantidade humanamente ingerível de dados genéticos e biomédicos, está-se a criar uma “Internet-do-ADN” que viabilizaria a substituição de uma biologia artesanal, de pequena escala, para uma nova à escala industrial. O sonho da longevidade, e por que não, da imortalidade, é o objectivo explícito da Calico, outra empresa fundada pela Google. E isto num panorama cultural que entre as outras aberrações tem visto J. Craig Ventor, um pioneiro no sequenciamento do genoma humano, proclamar na revista Science, a 2 de Julho de 2010, ter conseguido realizar a “vida sintética”, ou “vida artificial”, ou seja, uma bactéria cujo genoma natural tem sido substituído por um cromossoma obtido em laboratório. Entretanto, no ano passado o Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA) inglês tem autorizado a criação de embriões humanos geneticamente modificados.
Para apreciar devidamente este recente acontecimento e o canto das sereias H+ nele contido, será preciso desaguar noutro trilho das suas labirínticas origens: eis o que leva ao encontro de três personalidades activas no contexto cultural anglo-saxónico e cuja influência foi marcante na formação da chamada nova “síntese da biologia moderna”. Pois a primeira ocorrência histórica do termo H+ encontra-se em Religion without revelation, uma obra de 1927 do Julian Huxley (1887-1975), destacado biólogo evolucionista, primeiro director da UNESCO e membro fundador do WWF. Nas palavras do Huxley “o homem tem sido nomeado administrador da maior de todas as empresas, a empresa da evolução”, uma tarefa à qual não se pode subtrair, sendo “um destino inevitável, e quanto antes se dê conta e comece a acreditar nisto, tanto melhor para todos aqueles que estão nela envolvidos”. Para Huxley quando houver um número suficiente de pessoas a dizer “acredito no H+”, então “a espécie humana estará no limiar de um novo tipo de existência”, “finalmente cumprirá conscientemente o seu verdadeiro destino”. Convicto propagador da eugénica, avisou que “a espécie humana pode, se o quiser, transcender-se a si própria – e não apenas esporadicamente, um indivíduo aqui, num modo, um indivíduo acolá, noutro modo – mas na sua inteireza, enquanto humanidade. Faz falta um nome para esta nova fé. Talvez o termo H+ sirva: o homem que fica homem, mas que se transcende a si próprio, realizando novas possibilidades da sua natureza humana e para a sua natureza humana”.
Outro destacado biólogo britânico, o comunista John B. S. Haldane (1892-1964), será alistado nesta curta genealogia do H+ por ter avisado durante uma palestra sua, sucessivamente publicada com o título Daedalus, or Science and the Future (1924), que o inventor é como uma sorte de Prometeu, cuja obra é inevitavelmente destinada a ver-se acusada de constituir uma ofensa aos deuses (isto é, aos supersticiosos valores estabelecidos). Neste sentido é previsível que as possibilidades da biologia, como a ectogénese, a saber, a geração de seres humanos em laboratório, ou o controle da evolução mediante mutações dirigidas (engenharia genética), ou ainda, o controle das paixões, dos sentimentos e da imaginação mediante métodos farmacológicos, irão enfrentar incómodos obstáculos morais.
Ainda outra notável voz cujo canto no coro dos preconizadores do H+ é preciso escutar é a do John D. Bernal (1901-1971). Marxista e simpatizante filo-soviético, especialista em cristalografia aplicada à biologia molecular, proporcionou diversos contributos científicos em âmbito militar. Bernal publicou em 1929 The World, the Flesh and the Devil. An Enquiry into the Future of the Three Enemies of Rational Soul. Nesta obra Bernal elabora com grande detalhe tanto a proposta de colonizar o espaço quanto a oportunidade para o homem do futuro de enxertar dentro de si os engenhos tecnológicos ou de alterar quimicamente o corpo: o humano porvir disporá de um órgão para sentir as ondas rádios; olhos com vista aos raios X, infravermelhos e ultravioletas; ouvidos ultra-sónicos; órgãos capazes de detectar os potenciais eléctricos; poderá controlar as máquinas com a própria vontade, tendo estabelecido com elas uma relação simbiótica e uma “comunicação etérea”; neste sentido haverá máquinas-órgãos para manipular e reparar outros órgãos-máquinas. Os seres humanos vindouros serão produzidos por via ectogenética e terão duas fases de existência, uma “larval”, não especializada, semelhante à nossa, e uma de “crisálida” em que subirão à instalação de novos órgãos e de novos sentidos, fase completada por uma reeducação. A visão do Bernal é interessante no que tem de antecipação das mais recentes propostas H+. Pois imagina um pluralismo existencial em que cada indivíduo poderá escolher as possibilidades evolutivas e as melhorias que mais lhe agradam. Pode acontecer, continua Bernal, que nem todos aceitem o facto de o humano natural ser um beco evolutivo sem saída e, em consequência disso, seguir-se-á um cisma entre os “humanizadores” e os “mecanizadores”. Estes últimos, prosseguindo a própria evolução tecno-orgânica no espaço, acabarão por olhar a Terra como um “zoo humano”. Nesta ascensão do ciborgue os cérebros conectar-se-ão até criar um organismo colectivo em que as lembranças serão partilhadas e a comunicação deixará de enfrentar os obstáculos da linguagem. As emoções serão finalmente controladas e induzidas voluntariamente de forma a favorecer o desempenho das diversas tarefas. Como Trotskij, também Bernal, recolhendo o legado da tradição racionalista do iluminismo, vai apontar nos sentimentos escatológicos expressos na religião uma das grandes limitações humanas que é preciso ultrapassar por meios tecnocientíficos. Agora, bastante curioso, é de notar como, inadvertidamente, o materialista marxista acabe por imaginar o desfecho do percurso evolutivo como dando, à maneira do jesuíta de Chardin, em seres “etéreos”, massa de átomos a comunicar por radiações, até que finalmente dissolver-se-ão em pura luz…
Foi com o vislumbrar destes imaginários que Aldous Huxley (1894-1963), irmão do Julian e amigo do Haldane, concebeu a sua novela distópica O admirável mundo novo (1932): a engenharia social dos “dez governadores do mundo” seguram o conformismo da população, mantida apaziguada e contente com o condicionamento psicológico e com as biotecnologias, a começar pela gestação artificial das crianças em “clínicas da fertilidade” nas quais, aos membros das castas inferiores, durante o crescimento, lhes é limitado o desenvolvimento físico e intelectual mediante uma calibrada falta de oxigénio. Além disso, a propaganda age durante o sono através de vozes gravadas que repetem os mandamentos da religião fordista da eficiência, e todos são persuadidos a acreditar que a casta à qual pertencem é a melhor; e por fim, há drogas diversificadas para todas as circunstâncias, tanto produtivas quanto lúdicas.
Mas os proclamados ciber-artistas e bio-artistas de hoje sugerem-nos ir procurar no movimento futurista do começo do século XX uma outra fase de gestação do H+. Antecipando a cultura da propaganda mediática e da publicidade, os futuristas italianos cunharam frases altissonantes do tipo “lançar o desafio às estrelas”, “reconstruir o universo”, “criar o homem mecânico com partes intercambiáveis”. Em 1910, num período em que os efeitos cumulativos do desenvolvimento tecnológico já eram espantosos, sai L’Uomo Moltiplicato ed il Regno della Macchina, no qual Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), que posteriormente aderirá ao fascismo, descreve como objectivo dos futuristas “preparar a iminente e inevitável identificação do homem com o motor”, num mundo porvir em que a velocidade levará o ser humano a dotar-se de “órgãos inesperados, adaptados a um ambiente feito de choques”. Marinetti, com outros, almejava a realização dum “antropóide mecânico” que conjugue instintividade dionisíaca e progresso tecnológico, um homem-máquina “sem desgaste, quase eterno”, libertado das exigências, tarefas, e limites intrínsecos da condição biológica: “para preparar a formação do tipo não humano e mecânico do homem multiplicado mediante a exteriorização da sua vontade, é preciso diminuir a necessidade de afeito”, pois o ciborgue “será naturalmente cruel, omnisciente e combativo”. No Manifesto della ricostruzione futurista dell’Universo (1915), Giacomo Balla e Fortunato Deplero afirmaram que irão “encontrar os equivalentes abstractos de todas as formas e de todos os elementos do universo, e logo os combinaremos segundo os caprichos da nossa inspiração”, construindo “milhões de animais mecânicos, para a maior das guerras”.
No horizonte actual a hibridação bio-mecânica, sobretudo bio-informática, largou as amarras do imaginário literário e artístico para entrar a fazer parte dos objectivos declarados de numerosos programas de investigação científica. A possibilidade de ligar ou inserir no “suporte biológico” do corpo vários tipos de dispositivos tecnológicos é vista por muitos como uma práctica desejável. Levantam-se, contudo, questões e inquietações pelo facto de o estatuto da prática médica se estar a transformar de uma abordagem preventiva, como no caso da medicina chinesa, ou de uma abordagem terapêutica, numa abordagem onde aquilo que se ambiciona é remediar os danos ocorridos e reduzir o sofrimento do doente, em um tipo de intervencionismo melhorativo que, segundo a estratégia retórica utilizada das pares oportunidades, estará ao dispor dos indivíduos-consumidores, deixados livres de aceder ao mercado do potenciamento bio-tecnológico, e que na práctica estará apenas ao alcance da minoria dos mais abastados, além dos fanáticos e dos mercenários. Perante o actual contexto de desmoronamento do estado social e dos sentimentos de solidariedade – contexto em que há sempre mais pessoas a verem-lhes negados os cuidados de saúde básicos – e perante as multidões de pessoas que ainda morrem pelo mundo fora por causa das doenças da miséria artificialmente produzida, as ulteriores desigualdades acarretadas pelas clínicas-oficinas da tecno-medicina neoliberal deixam entrever cenários ainda mais sombrios. Além disso, num panorama em que as agências militares governativas, como a DARPA, e os centros de I&D (Investigação e Desenvolvimento) multiplicam o panteão de drones e máquinas robóticas, assim como as experiências de manipulação genética e de hibridação tecno-orgânica, a complacência dos artistas contemporâneos com as instituições parece-nos dar mais um contributo corporativo à irradiação e à aceitação conformista do imaginário H+.
κοινωνία
(ilustrações de Catarina Santos)