Discutir “turistificação” também é discutir o direito à habitação
“Gentrifica-mos”, lê-se num cartão pousado nas escadas da estátua de Almeida Garrett, orgulhosa guardiã da Câmara Municipal do Porto. Ao seu redor, há fitas com a palavra “frágil” a vedar simbolicamente o acesso ao edifício municipal. Reúnem-se cerca de 150 pessoas na manifestação “O Porto não se vende, ponto!”, que assinala a passagem da Caravana da Habitação pela cidade.
A passo e passo, manifestantes de todas as origens sociais e com diferentes histórias vão subindo as escadas que servem de palco à manifestação. Os episódios que contam partilham alguns denominadores comuns. Alguns contam como, quando as casas e a cidade estavam degradadas e entregues ao abandono, poucos ou nenhuns se preocupavam com o estado dos imóveis, senhorios incluídos. Mas o Novo Regime de Arrendamento Urbano e o recente interesse do capital imobiliário na cidade reacenderam a atenção dada à cidade. Agora, os inquilinos que durante anos, ou décadas, arrendaram casas que pela sua mão foram arranjando e mantendo conforme podiam, estão a ser convidados e assediados a saírem de lá, para darem lugar a novos empreendimentos e inquilinos.
Essa é a história de um dos manifestantes que sobe a escadaria onde se agregram os restantes. Conta que vive na Rua do Almada há oito anos, rua essa onde o seu sogro tem uma loja de comércio tradicional, e que há aproximadamente dois anos terá começado o assédio por parte de agências imobiliárias. Em dada ocasião, o senhorio do prédio ter-se-á deslocado ao estabelecimento para lhe comunicar que “queria ali um negócio mais bonito, uma hamburgueria gourmet”, conta o manifestante. E enche o peito de orgulho quando diz, alto e bom som, que o sogro lhe respondeu em jeito de desafio que “aqui somos tripeiros, é tripas que comemos”.
“Não é a saudadezinha”
Tatiana, que ajudou a mobilizar a manifestação e integra a Caravana da Habitação, assinala que isto já se viu “em muitas cidades, sabemos qual é o processo”. Conta como a Caravana passou por alguns bairros do Porto que começam a ser afectados pela crescente turistifcação da cidade, e se cruzou com “situações desumanas”. Uma das histórias que ressalva é a de uma moradora de Miragaia, que investiu 44 mil euros na reparação da casa que arrendava, e que vivia com uma reforma de 600€. Quando o seu senhorio, também idoso, faleceu, os herdeiros venderam o prédio onde ela vivia. “Tem dois anos para sair daquela casa”, diz Tatiana, quase entredentes. “É verdade que as pessoas pagavam rendas baixas, mas viviam em condições miseráveis”.
Também ela moradora no Porto, Tatiana perdeu a sua casa para alojamento local, mas conseguiu encontrar outra habitação ainda no centro da cidade. Sublinha que “tirar as lojas daqui não é saudadezinha”, é um fenómeno que leva a que as pessoas se afastem das suas ruas e dos seus bairros. Fechando as padarias, as lojas de ferragens, as drogarias e mercearias, as pessoas que nelas trabalham perdem o seu sustento e têm de se afastar, porque não conseguem fazer frente às rendas. E as pessoas que delas se serviam, a clientela, perdem os seus referentes e a sua comunidade.
Diferentes cidades, diferentes problemas, a mesma ameaça
“É sempre o direito à habitação que está em causa”, garante Maria João Costa, da Habita Lisboa, “portuense a viver em Lisboa há muitos anos”, como a própria se descreve. Falar sobre problemas habitacionais no Porto e na Amadora, por exemplo, é falar de problemas diferentes, mas há uma questão subjacente a todos. O direito à habitação, contemplado na Constituição da República Portuguesa, fica suspenso à entrada de bairros como o 6 de Maio e o Casal da Boba, na Amadora.
“Degradação das habitações, falta de transportes, demolições, sobrelotação” são alguns dos problemas que Maria João aponta quando fala sobre as questões habitacionais nesses bairros da periferia lisboeta. “As rendas aumentaram, até na habitação social. Foi um processo que depois se reverteu, mas as dívidas acumularam na mesma”.
Antes de chegar ao Porto, a Caravana da Habitação passou em Lisboa, Amadora, Beja e Loures, e ainda ia seguir para Coimbra. Em cada cidade, ouviram histórias diferentes, mas Maria João afirma que ouviu em Lisboa as mesmas coisas que veio ouvir depois na Avenida dos Aliados. Quando se fala sobre Lisboa central e Porto central, o problema prende-se com uma mesma causa subjacente: a especulação imobiliária e a turistificação das cidades. Mas não são só essas as histórias que Maria João conhece e enumera.
Em Loures, no Bairro da Torre, os moradores ficaram sem luz durante um ano. Por serem construções ilegais e precárias, a EDP “desfez algumas ligações elétricas ilegais em habitações ilegais”, uma vez que “podiam colocar em causa a segurança das pessoas e bens”, lia-se em comunicado enviado à agência Lusa em Dezembro de 2016. No Bairro da Jamaica, no Seixal, as famílias residentes “estão na iminência de ficarem sem luz também”, conta Maria João. No Bairro 6 de Maio, na Amadora, as demolições são constantes.
Soleiman Bamba, morador do 6 de Maio há 32 anos, foi um dos afectados pelas demolições. Continua a viver no bairro, na casa de um familiar, mas a sua casa “também veio abaixo”, conta. Fala sobre o despejo e demolição da sua casa com uma expressão imperturbável, e apenas lhe treme a voz quando levanta o dedo e sublinha “cheguei a Lisboa em 1985 e fiz tropa portuguesa”.
Não é só nas periferias que estes problemas tão crus existem, no entanto. Daniela Alves Ribeiro, da Habita Porto, aponta o dedo às situações extremas que se vivem na zona leste do Porto. “Há um reconhecimento do que se passa no Porto até Campanhã, a monofuncionalização ligada ao turismo, mas mais para oriente não há noção da realidade”, critica. “Mesmo nestas manifestações, essas pessoas são deixadas de fora”. Daniela fala sobre como a classe política do Porto gosta de dizer que não há bairros de barracas na cidade, mas sabe que isso não é verdade. Na zona Oriental da cidade, há pessoas a viver em situações de profundo isolamento, e não há equipamentos que as apoiem.
Portanto, falar sobre o problema da habitação em Porto e Lisboa não é só discutir a crescente gentrificação e especulação imobiliária que envolvem as cidades: é discutir, também, o direito a nelas habitar com dignidade. Seja nos centros altamente turistificados, ou nas periferias profundamente abandonadas.