Hibridando arte e ciência para uma resistência cultural

18 de Maio de 2017
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O coletivo Critical Art Ensemble foi fundado em Talahasse na Florida, em 1987 por um colectivo de artistas, performers, web designers, fotógrafos. Desde a sua criação, pratica aquilo a que chama Recombinant Theatre, uma hibridação de performatividade artística, activismo político radical e teoria crítica da sociedade tecnológica. Através da sua intervenção cultural, o CAE ambiciona contribuir para a emergência de um tactical media movement, um movimento cultural organizado, antagonista ao “pancapitalismo”, que ponha em prática uma reapropriação criativa e subversiva dos meios de comunicação e uma real socialização dos saberes tecnocientíficos.

Com certas afinidades com o détournement situacionista e partilhando algumas das inquietações e estratégias dos San Francisco Diggers, de Augusto Boal e o Teatro do Oprimido, do Living Theater ou das performances surgidas no âmago dos movimentos feministas dos anos 70, “o media táctico é anti-monumental, desterritorializante”. O teatro tecnoactivista pretende “mostrar como os instrumentos da opressão podem ser usados para a libertação” e para a “resistência cultural” (outros grupos, referidos pelo CAE, que trabalham com media tácticos são os Institute for Applied Autonomy, The Yes Men, Carbon Defense League, Finishing School, Temporary Services, Preemptive Media Collective, My Dad’s Strip Club, Space Hijackers, Conglomco.org, irational.org, Bureau of Inverse Technology…).

Depois de se terem dedicado à  “resistência digital”, com uma forma de guerilha teatral em que a prática artística se misturava com as mais recentes tecnologias informáticas em acções de sabotagem electrónica, que foram acompanhadas pela publicação do livro Civil Electronic Disobiedience (com o famoso apelo Cyber Rights Now!), o CAE tem passado à “bio-resistência”: “Assim como se combate um poder nómada (virtual) com tácticas nómadas, a moderna invasão molecular deve ser combatida no âmbito molecular, o seu campo de batalha. É preciso desenvolver laboratórios rebeldes e pessoal sedicioso para que a resistência possa progredir a um nível credível e eficaz”. Com efeito, as suas últimas performances, acompanhadas por laboratórios móveis montados “em qualquer lugar desde que as pessoas lá vão para fazer algo e não apenas para ver algo”, enfrentam vários temas concernentes às biotecnologias, contestando as modalidades científicas da pesquisa biológica actual, assim como a ausência de controlo por parte de agências independentes, os excessos na experimentação selvagem, a falta de critérios razoáveis para a avaliação dos riscos ambientais e sociais, os interesses militares e as especulações económicas por parte de multinacionais farmacêuticas e alimentares. Encenações teatrais, palestras informativas de divulgação científica e experiências biotécnicas, como a análise dos alimentos para identificar a presença de OGM, a fertilização em vidro, ou a manipulação de bactérias fazem parte de eventos performativos como o Free Range Grains, Molecular Invasion, GenTerra, Germs of Deception ou Marching Plague. O CAE tem como objectivo desmistificar a retórica utopista, usada como propaganda pelo oligopólio tecnocrático, e criar uma cultura popular capaz de avaliar e influenciar os êxitos da actividade científica: “Não podemos permitir que estes instrumentos de poder se tornem propriedade exclusiva de militares e corporações. […] Se um produto ou um processo é uma ameaça ou uma fortuna, isso deve ser examinado caso a caso. Não existe uma posição geral. […] Dada a natureza predatória do capitalismo quase qualquer coisa pode ser uma ameaça: é o sistema que deve ser mudado e não a ciência”.

No livro The Molecular Invasion (copyleft 2001), o CAE propõe-se a sete objectivos estratégicos: “1. Desmistificar a produção e os produtos transgénicos; 2. Neutralizar o medo público; 3. Promover o pensamento crítico; 4. Minar e atacar a retórica edénica utopista; 5. Abrir os gabinetes da ciência; 6. Dissolver os confins culturais da especialização; 7. Afirmar o respeito pelo diletantismo”. A respeito das biotecnologias, a primeira tarefa é construir um discurso público informado, que evite as posições extremas, igualmente emotivas, entre a confiança cega no progresso tecnológico enquanto fonte automática de bem-estar e o receio derivante da secular ideologia da autenticidade, que vê no monstruoso a consequência da impureza recombinante: “A representação contestatária precisa de abraçar as informações, complexas mas acessíveis, sobre a natureza dos projectos biotecnológicos, antes de assumir a política muitas vezes reaccionária dos movimentos ambientalistas”. Se por um lado é preciso reconhecer que nem todos os avanços biotecnológicos são desastrosos, a outra face da acção pedagógica perseguida pelo CAE é denunciar a falsidade do mito edénico da abundância, que serve a opressão: “O mundo podia ser desfomeado antes da chegada das biotecnologias. […] a fome tem sido pouco mais que uma táctica militar para repor na linha as nações mais rebeldes ou para eliminar os excessos de população”.

O que faz falta é tranformar as dúvidas e as reacções emotivas em instâncias críticas, dotadas de “instrumentos simples e práticos para avaliar o risco, baseados na ciência e inseridos no contexto histórico e cultural”, “abrindo as portas à participação dos indivíduos na formação das políticas, das leis, dos produtos, etc. relativos às biotecnologias”.

O capítulo intitulado “Sabotagem biológica «fuzzy»”, começa afirmando que “se a esquerda tem aprendido alguma coisa na resistência contra a tecnocracia capitalista, é que os processos democráticos funcionam só no mínimo, quando se trata de travar a máquina do lucro pancapitalista”. Querendo interferir nos mecanismos de produção e distribuição capitalista, “a cultura resistente deve sempre encontrar o modo de responder ao fogo com o fogo” sem “tornar demasiado fácil ao espectáculo capitalista aplicar a quem resiste a etiqueta de sabotador ou pior, de eco-terrorista, termos que a autoridade usa generosamente e que tendem a ter um efeito profundamente negativo na opinião pública”. Por um lado, as “tácticas tradicionais”, como a desobediência civil electrónica devem entrar numa fase “dura” (bloqueios de sistemas de comunicação internas, bloqueios de bases de dados, desarticulação de routers, etc.), aumentando o nível de distúrbio nos serviços informáticos sobre os quais se apoiam as clínicas comerciais ou instituições tecnocientíficas mercantis. Por outro lado, “o modelo de acção biológica directa” que o CAE e outros “cientistas-patifes” têm desenvolvido, a sabotagem fuzzy (indistinta, vaga), consiste em procurar e aproveitar as falhas do sistema, com acções no limiar entre o legal e o ilegal, “brincadeiras” postas em acção mediante organismos viventes ou os seus constituintes e funcionalidades, utilizados como “agentes de desordem”: “microrganismos, plantas, insectos, répteis, mamíferos, OGM tácticos e compostos orgânicos podem todos fazer parte da resistência”. Por exemplo, sugere o CAE, adquirir ou criar mosquitos mutantes não perigosos é relativamente barato e, uma vez espalhados nas redondezas de um laboratório de pesquisa ou de uma central nuclear, podem desencadear um alarme que leve a uma investigação sobre a sua origem, implicando custos financeiros e atrasos na agenda das estruturas tecnocientíficas. E isto tudo sem grandes riscos para os activistas, os trabalhadores ou os vizinhos.

No dia 11 de Maio de 2004, aquando da morte por ataque cardíaco da sua mulher Hope, Steve Kurtz chamara a polícia que, alarmada pela presença em sua casa de culturas de bactérias, não nocivas, e de aparelhos científicos para testar comida geneticamente modificada, resolveu detê-lo ilegalmente no dia seguinte, durante 22 horas. O FBI e a Task Force anti-terrorismo informaram Steve que estava a ser investigado por “bioterrorismo”. Depois desta acusação ter caído, Steve juntamente com Robert Ferrel (primeiro presidente do Departamento de Genética da Universidade Graduate School of Public Health de Pittsburgh e colaborador do CAE), foi acusado de “fraude fiscal”, arriscando conforme o estabelecido no USA Patriot Act, uma condenação de 20 anos, tal como a implicada por “bioterrorismo”: “O caso ameaçou criar um precedente muito perigoso, desbastando os confins entre direito civil e criminal e criminalizando aqueles que ousaram julgar a política governativa. […] ameaça interromper a pesquisa independente e dana seriamente a capacidade pública de criticar corporações económicas e instituições militares, os quais exercerão um cada vez mais restrito controlo do conhecimento científico
(para mais info sobre este caso: www.caedefensefund.org).

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