Felizmente continua a haver luar (Julho 2016)
Para o Júlio Carrapato.
Companheiro de bons momentos, de conversas, de acordos, de desacordos também… Anarquista alérgico a compromissos, concessões e outras meias tintas, homem íntegro invulgar, de trato nem sempre fácil mas sempre de fundo generoso e humanista, fiel na amizade, desde Maio 68 em Paris até 22 de Junho 2016, em Faro, quando, com a sua coragem e coerência determinada, decidiu deixar-nos.
Não temos medo do futuro, é o futuro que tem medo de nós!
Nuit debout durou em França mais de três meses. Foi uma mobilização social espontânea de um tipo novo, próxima dos movimentos Occupy e do 15M espanhol, que ganhou uma dimensão inesperada ao mesmo tempo que tomou características especificamente francesas (1).
Nos últimos anos, a sociedade francesa tem vivido numa atmosfera abafada e paralisante, submetida às violências impostas pelo actual governo socialista. Este, tal como os precedentes governos de direita, está totalmente submetido às orientações económicas liberais. A violência é a da crise económica, da precaridade e do empobrecimento dos trabalhadores, da baixa dos níveis de vida, da destruição e desorganização dos serviços públicos, do abandono da juventude dos bairros pobres corroída pela exclusão e pela repressão policial. À impotência, ao medo e à angústia deste presente sem fim veio juntar-se o horror dos atentados terroristas. A instauração do estado de emergência pelos responsáveis da situação criou uma situação ainda mais opressiva. Tendo o espaço das reformas entretanto desaparecido num sistema em recessão permanente, apenas o reforço da repressão de Estado pode tranquilizar o cidadão assustado. Tal é a natureza das novas democracias autoritárias. Quando, em Dezembro 2015, as calmas manifestações contra a grande missa ecológica da COP21 foram energicamente reprimidas, confirmou-se que o estado de emergência era sobretudo destinado a manter a paz social e não a prevenir as acções sangrentas dos inimigos do Estado francês. Contra as quais o mesmo Estado e as suas medidas repressivas tem demonstrado a maior ineficácia, como provam as investigações sobre os atentados terroristas e o recente massacre de Nice, “a cidade mais segura no mundo”, segundo a formula do seu presidente da Câmara e amigo de Sarkozy (2).
Nuit debout começou em Paris após as primeiras grandes manifestações estudantis contra a Loi Travail, identificada como uma lei para aumentar a precaridade do trabalho, em particular dos jovens. No dia 31 de Março, uma multidão entusiasta ocupou a Place de la République. A iniciativa partiu de algumas pessoas, fora das grandes organizações, partidos e sindicatos, e desde os primeiros dias o acontecimento conseguiu romper a carapaça opressiva do estado de emergência, afastando medos e paralisias. A palavra foi libertada e a satisfação era evidente nas manifestações e nos debates de rua.
Após anos de «reformas» destinadas a beneficiar a classe capitalista, o anúncio desta nova lei foi a gota que fez transbordar o copo. Os políticos socialistas defenderam cinicamente o projecto como uma «lei progressista». Segundo eles «facilitar o despedimento facilita também a criação de novos postos de trabalho»?! Sem querer, o governo acordou a revolta social, provocando importantes manifestações em todo o país e suscitando mesmo uma oposição nas fileiras do partido socialista já fragilizado. Nas ruas, os tristes desfiles clássicos foram substituídos por multidões que se reclamavam mais do espírito e dos slogans de Nuit Debout que dos slogans sindicais. Apesar de ter conseguido o apoio de uns sindicatos minoritários, o governo viu-se minoritário e acabou por promulgar a lei sem passar pelo voto do parlamento. Uma prova adicional do sentimento autoritário que anima a social-democracia.
O movimento nas praças foi diverso e confuso, o que provava justamente a sua riqueza. Em Paris, a ocupação da Place de la République tomou a forma de uma Ágora, com discussões intermináveis e um fetichismo democrático circunscrito ao debate, sem que fossem tomadas decisões precisas. O que era decerto inevitável, considerando a crise da representação democrática e o crescente autoritarismo da vida política. Nuit debout tornou-se num lugar de passagem quotidiano para milhares de parisienses e gente vinda dos arredores da cidade, assalariados, desempregados, jovens e menos jovens. Gente que vinha ouvir e conversar, discutir, informar-se. Na praça cruzavam-se seitas políticas, «teóricos» e gurus autoproclamados que ofereciam projectos para o futuro. Mas as intervenções de grupos políticos fizeram-se sempre de maneira encoberta, tão forte é a rejeição da manipulação. Havia obviamente militantes de organizações políticas com um projecto de tipo Podemos, mas sentia-se que só após o fim das mobilizações eles poderiam agir nesse sentido. Os dias iam passando e o fetichismo democrático levava ao imobilismo, na medida em que a democracia de base não desembocava na capacidade de agir. O que não impediu que algumas acções imaginativas tenham sido realizadas a partir das praças. Na altura, era já manifesto que a polícia estava preparada para actuar de forma muito violenta, nos liceus, nas universidades e nas ruas, empurrando largos sectores da juventude para afrontamentos sucessivos.
Depois, Nuit debout estendeu-se a outras regiões. Em grandes cidades como Nantes, Toulouse e Rennes, as mobilizações foram importantes e muitas acções directas foram organizadas a partir de lugares ocupados. Nestes casos, a democracia de base foi mais do que um simples formalismo, foi um momento da tomada de decisões. O mesmo se passou noutros lugares e mesmo em pequenas localidades onde houve acções imaginativas de bloqueio e de agitação. Como diz um amigo: «O movimento das praças ocupadas e o movimento nas ruas contra a lei foram interdependentes; com as suas singularidades eles alimentaram-se mutualmente. As praças ocupadas constituíram uma base para os movimentos de rua, mas, inversamente, sem estes movimentos o que nelas se passava teria perdido em intensidade.»
Mais frutuoso para o futuro foi o laço estabelecido com lutas e greves cujos representantes vieram exprimir-se nas praças, onde as assembleias quotidianas insistiam sempre na necessidade de ir ao encontro das lutas, dos refugiados abandonados no isolamento da selva urbana, dos grevistas ignorados das pequenas empresas, dos trabalhadores dos hospitais e dos ferroviários em luta contra a destruição dos seus estatutos. Os contactos foram sempre excelentes, mesmo se era óbvio que a grande maioria dos trabalhadores continuavam limitados por uma atitude reivindicativa e não pareciam decididos a juntar-se a um movimento cujos objectivos e formas de acção lhes pareciam estranhos. Este esforço para sair das praças, para contaminar outros sectores da sociedade, acabou por ser a dinâmica principal de Nuit debout. Havia consciência do facto de a ocupação das praças ser importante mas insuficiente, e de que era necessário atacar o sistema nos locais onde ele se reproduz. Foi também com esta visão que, em Paris, Nuit debout tentou alargar o movimento aos bairros periféricos, onde vivem as classes trabalhadoras, realizou assembleias interprofissionais, abertas a sindicalistas e não sindicalistas, criou comités de apoio e fundos de greve.
É impossível analisar com precisão como as ideias e o espírito de Nuit debout se transmitiram a outros sectores da sociedade. O facto é que a contestação dos valores do sistema se colou perfeitamente ao descontentamento crítico do momento. Assim, Nuit debout elevou-se contra a ideologia do realismo na política e na economia. «Economistas=tristes» lia-se num cartaz. E ao slogan «É neste mundo que queremos realmente viver?» respondia um outro: «Não temos medo do futuro, é o futuro que tem medo de nós!»
A grande força de Nuit debout foi a de voltar a pôr em evidência a questão social. Em poucos meses, passámos do «Eu sou Charlie» e dos aplausos à polícia para as manifestações onde se gritava «Toda a gente detesta o trabalho e a sua polícia». O poder político tentou responder com campanhas de propaganda revalorizando a ideia do Estado protector e a imagem da polícia. Só que, entretanto, o número de pessoas feridas e presas durante as manifestações continuava a aumentar (3). Em meados de Maio, os dois grandes sindicatos, FO e CGT, decidiram lançar um movimento de greves com o apoio de sindicatos combativos como Solidários Unitários Democráticos (SUD), cujos militantes estavam presentes desde o início nas praças e nas manifestações. De facto, a lei do trabalho introduz disposições que fragilizam o poder dos grandes sindicatos, em particular a que permite decidir («negociar», diz o governo) a duração do tempo de trabalho empresa por empresa, sem passar pelos acordos e convenções colectivas de sector. O que, obviamente, no período actual de recessão, abre as portas à chantagem dos patrões que prometem a salvaguarda dos empregos em troca de concessões e em função das condições locais mais ou menos desfavoráveis aos trabalhadores. Reduzindo, em consequência, o poder negociador dos grandes sindicatos no plano nacional e a sua implantação.
Esta greve política levantou de imediato questões contraditórias. A CGT respondia indirectamente aos desejos expressos nas assembleias de Nuit debout de alargar a mobilização e bloquear a sociedade, de avançar para uma greve geral. Com esta decisão, o sindicato colocou-se à cabeça de uma contestação que lhe escapava desde o início, tentando recuperar a sua imagem junto dos militantes de base que se tinham aproximado da juventude em revolta e do espírito de Nuit debout. Mas esta manobra sindical neutralizou em parte os conteúdos radicais que se exprimiam nas praças e na sociedade. Voltávamos ao velho esquema da negociação política, marginalizando os aspectos subversivos de crítica do sistema.
Para a CGT, a aposta era arriscada. Teria a direcção capacidade para enquadrar a fúria da base, levar a cabo a operação? Porque a CGT de hoje não é a mesma do passado. A direcção do sindicato continua a estar nas mãos de funcionários ligados ao partido comunista. Mas o partido está em estado de implosão, não é hoje mais que uma federação de tendências reformistas e de poderes municipais. Não seria mesmo exagerado perguntar-se se é o partido que domina a CGT ou o contrário… O sindicato mudou porque a sua base mudou, a sociologia dos militantes alterou-se. Eles são hoje mais combativos e determinados, decididos a assumir acções directas de confrontação. São militantes com uma nova independência de pensamento e de acção, que dão provas de espírito de iniciativa, que discutem abertamente as ordens vindas de cima. As ideias de Nuit debout, a exigência de democracia de base, a rejeição do sistema capitalista, encontram eco nos sectores da base sindical que se misturaram com os jovens radicalizados nos piquetes que se formaram por todo o país, bloqueando as estradas, as empresas, os aeroportos e os centros comerciais. Um número cada vez maior de sindicalistas não hesitava em manifestar-se ao lado dos jovens que afrontavam a polícia nas ruas (4). Enfim, outro elemento a ter em conta na modificação da paisagem sindical é o facto de que, nos últimos anos, a CGT se ter visto em alguns sectores importantes (os transportes, a metalurgia ou o ensino) em concorrência com um novo sindicalismo representado pelo sindicato SUD que é sensível a práticas radicais e mesmo a ideias do sindicalismo revolucionário. O que incita o governo socialista a manobrar para aumentar a fragilidade dos velhos sindicatos, oferecendo assim um bónus suplementar ao patronato, o qual, por seu lado, não hesita em tratar os sindicalistas militantes de terroristas.
O empenhamento da base sindical na greve foi acolhido com satisfação para quem viu na Nuit debout uma revigorante corrente de ar fresco. Não obstante, era claro que os interesses burocráticos da CGT ficavam bem aquém das aspirações que se exprimiam no movimento das praças. Nuit debout foi uma destas novas mobilizações que procura, com insuficiências e contradições evidentes, encontrar uma saída para o pesadelo do capitalismo e a paralisia do sistema de representação. A CGT, por seu lado, é uma instituição do velho mundo que reivindica a melhoria do sistema. A aproximação dos dois foi um casamento de circunstância. No entanto, como sabemos e muitos militantes da CGT também, sem o movimento Nuit debout nunca esta greve teria tido a determinação que teve.
Dizia-me um amigo implicado nas mobilizações: «O que me parece formidável na determinação e na energia do movimento actual é que ninguém imagina que isto possa acabar bem.» Na verdade, o estado do sistema político, a crise das formas de representação, os imperativos da crise da economia e a violência do mundo, desde os locais de trabalho até aos territórios em guerra, tudo incita a deitar um olhar lúcido sobre o período em que vivemos. Nada de positivo sairá do realismo razoável. A partir de agora, o novo realismo consiste em pensar os impossíveis. Nesta perspectiva, a radicalização de importantes sectores da classe assalariada é um elemento crucial. Até que ponto esta evolução traduz uma nova vontade de luta contra o sistema? Em que medida estas forças serão capazes de ir para além dos cálculos dos chefes sindicais e de construir novas relações de afrontamento com os exploradores, fazer germinar algumas das sementes de Nuit debout? A paisagem política esta a mudar em França e esta Primavera agitada deixou para trás os cinzentos quotidianos de fatalidade. Uma mensagem escrita numa parede de Paris dizia: «Liberdade ilusória, igualdade irrisória, fraternidade aleatória». Isto está claro. Trata-se agora de ir mais longe.
Notas finais sobre uma situação inacabada
A partir do momento em que as organizações sindicais se puseram à cabeça do movimento contra a lei do trabalho, este ficou entalado entre duas perspectivas limitadas: a da negociação inevitável e a das manifestações de rua cada vez mais reprimidas. As praças ocupadas continuaram a ser lugares de debate e de reunião após as manifestações, mas perderam importância. Os chefes sindicais mostraram ser sensíveis à radicalização das suas bases, que eles sabem serem mais rebeldes e incontroláveis que no passado. Como ficou provado pelas diversas acções ilegais levadas a cabo: distribuição de electricidade a tarifa reduzida para um milhão de pessoas nas periferias populares de Paris, sabotagens nos transportes, acções directas contra alvos inimigos tais como sedes do partido socialista, associações patronais e sindicatos submetidos à nova lei, residências luxuosas de patrões conhecidos, etc. As burocracias sindicais sabem que é necessário dar tempo ao tempo para calmar esta revolta e que esse tempo deve ser negociado nos bastidores com o governo. Condição da sobrevivência do sindicalismo que a classe dirigente sabe ser uma instituição indispensável à paz social.
Ao mesmo tempo, o poder político manteve a repressão na rua com o objectivo de isolar a massa dos sindicalistas dos elementos mais revoltados. A propaganda e a mentira mediática sobre os manifestantes e sobre as suas acções cresceu também. Apresentaram-se sistematicamente os manifestantes como grupos de «selvagens», destruidores de bens públicos. O auge foi a invenção de um «ataque» de manifestantes a um hospital, quando na verdade se tratou de uma provocação da polícia que atacou a manifestação com gazes a partir do hospital em questão provocando em resposta umas pedradas e marteladas que partiram alguns vidros (5).
Em França, as organizações sindicais têm uma velha experiência da táctica de repetição das manifestações, tradicionalmente utilizada para cansar os movimentos. Confirmou-se também uma outra velha regra. Quanto mais manifestações os sindicatos organizavam, mais o movimento de greve perdia força, e o poder político não mentia quando afirmava com arrogância que «finalmente a sociedade não está bloqueada pelas greves». No entanto, a insatisfação social que se exprimiu nesta longa revolta terá decerto consequências políticas. Que podem ser resumidas na frase escrita nas paredes: «A esquerda está morta, nós não!»
Todo o movimento social que é incapaz de construir uma situação nova está condenado a desaparecer. A persistência da luta, a afirmação de valores de autonomia numa sociedade quadrilhada por uma intensa repressão e submetida aos medos do terrorismo foi, por si só, uma vitória. Mas este longo movimento construiu algo de importante. Ele criou um sentimento de solidariedade e de colectividade, temporário obviamente, entre os sectores mais revoltados da sociedade, onde se misturam trabalhadores, sindicalizados ou não, desempregados e jovens, estudantes e trabalhadores precários, radicalizados numa mesma rejeição da situação actual e numa vontade determinada de enfrentar o sistema capitalista. Num futuro imprevisível esta vontade reaparecerá e tentará de novo tornar-se numa força de subversão da ordem capitalista. Há sempre um momento em que o cansaço e a lassidão acabam por dominar. Não é um sinal de derrota, é a necessidade de retomar fôlego e recompor as forças na perspectiva de voltar ao combate mais tarde, em breve.
(ilustrações de José Smith Vargas)
NOTAS
(1) Entre os inúmeros textos publicados em França, aconselha-se a leitura de Ferdinand Cazalis et Emilien Bernard, CQFD, n°143, Maio 2016. O blog Lundi matin, publica textos das tendências mais radicais do movimento das praças.
(2) A comissão parlamentar, sobre o atentado do Bataclan, reconheceu que os mercenários do Estado Islâmico eram superconhecidos dos serviços de polícia, que os deixaram movimentar à vontade. Por seu lado, Nice possui a maior força de polícia municipal em França (400 homens) e uma gigantesca rede de vídeo policial (mais de 1200 câmaras)… O que nada impediu.
(3) Segundo a própria polícia, até meados de Maio mais de 1500 pessoas tinham sido presas e o número duplica até fins de Junho. Entre os feridos graves, um pelo menos ficou entre a vida e a morte durante semanas. Recorde-se que, em França e em situação «normal», mais de 50 pessoas são mortas cada ano pela polícia. E nem um só polícia é inculpado.
(4) Um número importante de manifestantes que foram presos durante as manifestações era constituído por militantes sindicais.
(5) Mentira que teve imediatamente eco na saloia imprensa lusitana. Leia-se, no Público, de 23 de Junho 2016, o artigo assinado pela senhora Clara Barata. Quando da manifestação do 14 de Junho, ter-se-iam verificado, escreve ela, actos de violência cometidos por «800 agressores» e teria mesmo sido «atacado o Hospital pediátrico Necker». Não se sabe onde a senhora foi buscar os números e a mentira. Mistérios da miséria jornalística, ofício de charlatões. Um testemunho ocular do caso, aqui.