Felizmente continua a haver luar (Janeiro 2017)
Carta ao meu vizinho que fez a guerra colonial
Caro Senhor,
Somos da mesma geração e cruzamo-nos na vida de cada dia sem no entanto trocarmos muitas palavras. Bom dia, boa tarde, uns comentários sobre o sol e a chuva, por vezes umas rápidas alusões ao passado que vai escorrendo para o esquecimento. Não completamente, porque há algo do nosso passado comum que parece estar envolvido num nevoeiro inconfortável. Conhecemo-nos mal, embora haja uma certa empatia e cordialidade entre nós.
Acontecimentos recentes provocaram em si um certo mal-estar e uma modificação do seu comportamento para comigo. Parece ter-se instalado uma certa distância. Tudo começou com a publicação de um livro, Exílios, testemunhos de exilados e desertores portugueses na Europa (1961-1974) (1), facto ao qual o senhor esteve totalmente alheio. Até que um dia… no elevador, os seus olhos se fixaram com espanto na capa do exemplar que eu andava a ler. Nesse preciso momento, localizei o problema e rompeu-se o nevoeiro sobre o nosso passado comum.
Estou evidentemente a falar dos anos entre 1961 a 1974. Que foram os anos da guerra colonial e das posições que tivemos de tomar na altura e que deixaram marcas profundas na vida de cada um de nós. Por algumas alusões rápidas, sabia que o senhor fez o serviço militar e a guerra. Por seu lado, não duvido que já tenha percebido que eu fiz parte dos que se exilaram para não fazer a guerra, que desertaram ou foram refractários.
Podíamos ter ficado por ali, com silêncios e distância civilizada, navegando entre o nevoeiro. Mas o caso tomou outra dimensão quando a comunicação social começou a dar visibilidade à questão. E foi assim que, num belo dia de Primavera, o meu amigo — desculpe, mas acho que vamos ter que utilizar esta expressão coloquial para melhor desbobinar a nossa conversa — descobriu no quiosque da rua a primeira página do jornal Público [21/04/16], com uma fotografia do Fernando Cardoso — um dos editores do livro mencionado — afirmando com um ar tranquilo à jornalista Catarina Gomes: «Eu fui desertor. Digo-o com todo o gosto». Pressenti que a manchete não lhe caiu nada bem e que se sentiu destabilizado. Imagino a sua reacção: «Só faltava mais esta, que se dê agora a palavra a esta gente!». Como suponho que o alarido provocado, as reacções indignadas no correio dos leitores, acalmaram momentaneamente a sua irritação: traidores à pátria, cobardes, filhos de gente bem, etc. e tal. E pouco tempo depois, uma instituição universitária, uma faculdade qualquer, tem o desplante de organizar um colóquio sobre o assunto?! «Que diabo, a deserção é agora um assunto científico?!» E a comunicação social que recomeça a falar nesta história que o importuna, ao ponto de agravar os seus problemas gástricos e a fazer regressar os pesadelos nocturnos que se tinham vindo a acalmar de uns anos a esta parte.
Pensei então que o momento tinha chegado para abordar consigo esta questão melindrosa que nos separa em silêncio.
Sei que está convencido de que a participação na guerra no Ultramar — imagino que a palavra colonial é suspeita de conteúdo subversivo — foi a atitude correcta a tomar, indiscutível mesmo, para defender esta identidade abstracta da pátria com a qual se vive desde pequenino e que dá sentido à vida pacata de todo bom pai de família. Mas suspeito também que, lá bem no fundo, umas dúvidas torturam o meu amigo, que é uma pessoa inteligente e sensível. Tanto mais que a algazarra histérica que inunda o correio dos leitores, um mata-e-esfola sem pés nem cabeça, revela que há algo que não está bem digerido.
Percebo o incómodo do meu amigo. Fizeram-se monumentos aos heróis da guerra, no Ultramar claro está, deu-se um novo verniz incolor ao discurso sobre a guerra e sobre o período colonial — que, bem-feitas as contas, corresponde a mais de metade do livro de história do país —, publicaram-se álbuns fotográficos com as gloriosas tropas no meio da vegetação luxuriante e pensava-se que o assunto estava encerrado. Enfim, à boa maneira portuguesa, estávamos a esquecer lentamente, suavemente, harmoniosamente o que devia ser esquecido. Nada feito! Cá voltamos hoje de novo ao tema da guerra!
Sem querer parecer presunçoso, tenho uma resposta às suas interrogações. Na verdade, fala-se pouco ou nada da guerra, o assunto é mesmo de evitar sobretudo nos jantares de família e em presença das crianças. Talvez porque, finalmente, a guerra que o meu amigo fez com muitos outros, nunca foi assim tão popular. E que foi terrível, como todas as guerras. Já reparou que, mesmo entre os que vomitam ódio para cima dos desertores e refractários, há sempre alguém que soube de alguém que não fez a guerra, que fugiu, que desertou? Mais ainda, também já reparou que estes patriotas agitados são todos homens? Como se fosse um assunto de homens, como se as mulheres deste país não tivessem vivido esses treze anos de guerra a vê-los partir, filhos, amantes, maridos, pais e irmãos, a vê-los regressar, em caixas de madeira ou com o cérebro às avessas e o sono devastado. Enfim, se o assunto vem de novo à luz do dia é justamente porque ele teve uma dimensão enorme e traumática que até hoje se tentou esconder. A revalorização das forças armadas através do 25 de Abril teve a sua importância neste processo.
O Miguel Cardina e a Suzana Martins — dois jovens estudiosos citados nos meios de comunicação sobre o assunto e que acabaram por ter acesso a algumas fontes da instituição militar — apresentam uma fotografia impressionante da situação. Entre 1961 e 1973, só no Exército, teria havido mais de 8.000 desertores e dois por cento dos jovens chamados à inspecção foram refractários, isto é, não se apresentaram à incorporação. Ainda mais significativa é a enorme percentagem dos que nem sequer se apresentaram à inspecção, chegando a cerca de vinte por cento na década de 1970. A própria instituição militar considera que cerca de 200 mil jovens terão abandonado o país para não fazer o serviço militar. E como estas instituições não são muito boas a fazer contas, podemos concluir que o número real será bem maior. Estou já a ver o meu amigo a argumentar: muitos desses jovens fugiam do país por razões económicas, mais do que políticas. Discordo desta separação conceptual que cheira a politiquices. Porque ter de emigrar para comer e preferir a emigração à «guerra pela pátria» não são atitudes políticas?! Partir nestas circunstâncias significava claramente que o pessoal se estava nas tintas para o tal valor patriótico que não dava de comer a ninguém e só criava chatices a todos. Concluindo: a dimensão do fenómeno foi tal que se pode falar de um movimento espontâneo, não organizado nem teorizado, mas real, contra a guerra e o regime.
Interessante também no estudo do Miguel Cardina e da Suzana Martins é o que eles dizem das consequências deste movimento sobre dois acontecimentos notáveis da história recente da sociedade lusitana, o 25 de Abril e a descolonização forçada. Está claríssimo: os números mencionados são a expressão de uma crise profunda da instituição militar que se encontrava assim destabilizada e desorganizada, progressivamente incapacitada de assumir as suas funções guerreiras. A ruptura de uma parte da hierarquia militar com o regime, a formação do MFA e a revolta militar do 25 de Abril, foram consequências directas deste estado de coisas, da guerra e da recusa massiva da guerra. Ruptura que permitiu também — aspecto que não deve ser ignorado e que já mencionei acima — restaurar a imagem de uma instituição que estava intimamente ligada ao velho sistema colonial e ao regime fascista. Na realidade, não eram só os que fugiam à guerra que punham problemas à instituição militar. Sabemos, e não é o meu amigo que me vai contradizer, que muitos dos que iam à guerra tinham perdido, ou perderam no decurso da aventura forçada, o respeito pela alta e média hierarquia militar que os enviava para o mato, para matar ou morrer. Vamos lá falar a sério: o objectivo do pessoal era regressar vivo, inteiro se possível. O meu amigo já leu as Cartas da Guerra, do António Lobo Antunes, que foram agora adaptadas ao cinema pelo Ivo M. Ferreira? O escritor mostra bem que o espírito reinante na tropa colonial não era o patriotismo nem a defesa do Império, mas sim a da própria pele. E, no dia seguinte ao 25 de Abril, ninguém mais combateu! O que põe a descoberto a mentira de toda esta gritaria patrioteira que submerge o correio dos leitores dos jornais cada vez que se fala em desertores.
Um outro aspecto realçado pelos nossos estudiosos é menos conhecido. Trata-se das consequências da recusa da guerra na modificação da estrutura militar, na incorporação de muitos africanos para compensar a falta de carne para canhão branca. Esta africanização das tropas coloniais criou um novo fluxo de deserções, nas próprias frentes de combate, reforçando as guerrilhas das organizações nacionalistas. E é normal que seja mal conhecido, pois os debates sobre a guerra continuam a ser marcados com o selo do racismo colonial. Quando se fala dos 8.831 mortos e dos 20.000 feridos, fala-se dos soldados brancos. O número de africanos mortos, feridos e desaparecidos fica fora dos radares. Como o dos desertores africanos. Essa humanidade não entrava nas estatísticas do Estado colonial salazarista! Como continua a não entrar na do Estado democrático.
Conclusão: o importante movimento de recusa da guerra pesou determinantemente na queda do regime fascista, reforçou os movimentos anticoloniais e acelerou o fim do colonialismo lusitano. Foi um movimento não explicitamente político, mas decisivo. Assim é a história das sociedades.
Se ainda não o cansei com o meu palavreado, gostava de voltar aos ataques que são feitos aos que recusaram a guerra. A começar pelo chavão dos «traidores à pátria». O meu amigo compreenderá que a expressão só tem sentido para quem acredita na existência da dita pátria. Trata-se de um conceito fabricado pelos DDT (donos disto tudo) e destinado a convencer os DDN (donos de nada) do dever que têm de defender os interesses dos DDT. Se hoje em dia «pátria» é coisa de futebol, ontem o termo era evidentemente rejeitado pela grande maioria do pessoal que recusava a guerra, estava intimamente associado às rezas do regime fascista que o utilizava para legitimar as suas actividades e negociatas. Portanto, o insulto não resulta, não insulta, é vazio de sentido. Recusar a guerra não era traição a nada nem a ninguém, era uma rejeição do regime colonial. Também a palavra «cobardia» tem muito que se lhe diga. A «coragem» mais não é que o medo sentido por quem é colocado em situações que não escolheu. Como o meu amigo sabe e provavelmente viveu, muitos dos que aceitavam partir para a guerra partiam com o medo de uma situação que lhes era imposta e era a submissão a esse medo a que os chefes davam o nome de coragem. Em suma, é uma palavra do inimigo que não deve ser utilizada. Os que recusavam esse medo tinham de assumir uma situação de afastamento, de exílio, com as dificuldades materiais, culturais e espirituais a ela inerentes e que comportavam outros medos, ou outras coragens se prefere… Resumindo, só os odiados que apoiavam o salazarismo e os coitados com a cabeça em parafuso aceitavam de fazer a guerra de maneira voluntária. E há que reconhecer que os havia. A verdadeira linha de separação será, portanto, ontem como hoje, entre os que apoiam um regime fascista e colonial e os outros. A guerra colonial foi apenas um aspecto desse regime. Sabemos todos que, entre os que não apoiavam o regime, muitos houve que, por razões diversas, relacionais, morais, materiais, se resignaram a fazer a guerra. Não há nada a dizer e há que respeitar. Deixo para o fim a curiosa dica segundo a qual foram os filhos de ricos e abastados que recusaram a guerra. Mas onde é que esta gente vai buscar tanta parvoíce?! Obviamente que os filhos dos DDT não fazem as guerras. Como disse, foi para isso mesmo que se criou o conceito de «pátria», que permite fazer morrer uns coitados na defesa dos interesses que não são os deles. Límpida foi a expressão do escritor Anatole France a propósito dos massacres da primeira guerra mundial: «Pensa-se morrer pela pátria e afinal morre-se pelos industriais!» A lógica não mudou até hoje e não mudará, ela é intrínseca ao funcionamento do sistema. O Champalimaud conhece o assunto. Mas mesmo se descermos na pirâmide das classes sociais a parvoíce confirma-se. A maioria dos desertores, refractários e fugidos ao serviço militar eram jovens das classes médias e baixas, trabalhadores e desempregados. Obcecados pelo caso do Alegre que teve o mau gosto de trocar a poesia pela política, os patriotas de serviço enganam-se de realidade. Se o meu amigo me permite, trago aqui à baila a minha limitada experiência pessoal. Eu, jovem oriundo da pequena classe média assalariada, desertei de uma escola que formava quadros da instituição militar, a Marinha, para ser mais preciso. O que observei foi que, salvo notáveis excepções, os elementos mais activamente patrióticos e bufos eram justamente os rapazes ligados às famílias abastadas e próximas dos interesses dos DDT. O que não quer dizer que eles estivessem prontos para morrer; estavam, isso sim, bem decididos a fazer morrer os outros. E já que estou a falar do meu passado aqui fica outro exemplo da hipocrisia do heróico discurso patriótico: eram enviados para o corpo de fuzileiros, que estava directamente envolvido nas frentes de combate, os jovens oficiais com as piores notas. Isto é, não era uma honra afrontar o perigo, mas uma punição. Só não percebia quem não queria perceber.
Enfim, tirando uma mão cheia de doentes nostálgicos do regime do beato de Santa Comba Dão, tenho para mim que muitos dos que fizeram a guerra ainda hoje se interrogam porque diabo a fizeram! E, como é difícil viver com esta pergunta, vêm depois as justificações e as frustrações. Obviamente, qualquer menção aos que não a fizeram envia uma mensagem desagradável, abre uma ferida, funciona como um espelho. Porque não reconhecer que este foi um tempo de vida perdido, a frustração de o ter aceitado? Por que razão aceitar os discursos dos que foram responsáveis desta perda? E porquê a irritação e a violência contra os que rejeitaram a guerra e o regime? Mais uma recordação pessoal que me é muito querida. Voltei a Portugal no dia 3 de Maio de 1974. O Sud-express parou em Vilar Formoso e uns soldados entraram na carruagem para nos dar as boas vindas e informar que a PIDE tinha heroicamente desaparecido. Perguntou-me um deles por que razão eu estava em França. «Desertei da guerra colonial», disse. E ele, com um olhar franco de fraternidade e um sorriso cúmplice respondeu: «Você fez bem!». Não sei onde anda hoje esse homem, mas o que sei, com certeza, é que ele não é dos que escrevem no correio dos leitores para insultar os desertores.
O meu amigo já percebeu que não revindico erigir a escolha que fizemos na posição moral arrogante dos que tiveram razão. Não se trata de construir um monumento aos que recusaram a guerra, tão pouco se trata de criar uma associação de desertores e refractários no modelo da dos antigos combatentes. Com efeito, se estas atitudes tiveram um sentido na altura em que foram tomadas, infelizmente não garantem os comportamentos futuros de quem as tomou. O que me desola, pois foram escolhas fortes que deviam marcar para sempre uma vida. Desertor um dia, desertor deste mundo sempre. Mas a vida dá as suas voltas e somos pouco vigilantes para com as forças do mundo em que vivemos. Revindicar hoje a nossa atitude passada só tem sentido se for para reafirmar a nossa oposição ao sistema em que vivemos, que mudou de forma para continuar a ser o mesmo.
Talvez esta carta possa ajudar-nos a encarar as nossas relações com mais serenidade. Porque finalmente é de um passado comum que se trata e, bem pesadas as coisas, a nossas escolhas não são assim tão opostas como parecem. Fomos os dois vítimas de uma mesma situação que não dominávamos e de que não éramos responsáveis. E se eu compreendo a sua decisão de não recusar, por que razão o meu amigo não compreenderá a minha recusa? Seria uma bela ocasião para juntarmos forças e pedir contas aos que foram os responsáveis dessa imensa tragédia histórica.
Antes de acabar queria prevenir o meu amigo que o pior ainda está para vir. Se a água da torneira vai continuar a correr, ela vai ter cada vez mais a cor do sangue. Porque depois deste tema, um outro acabará inevitavelmente por sair do nevoeiro. Estou a referir-me aos horrores concretos cometidos no decurso da guerra, massacres, assassinatos, barbaridades diversas, enfim, tudo o que povoa ainda hoje os pesadelos de muitos dos homens que por lá andaram, ou, melhor, que para lá foram mandados. A publicação do livro de Mustafah Dhada sobre o massacre de Wiriamu em Moçambique, em Dezembro de 1972 (2), anuncia o que se segue. Um capítulo que também tem sido ocultado e que vai ser difícil de abrir. Porque desta vez o sujeito não somos nós, mas a própria instituição militar.
Receba, caro vizinho, as minhas sinceras saudações antimilitaristas.
NOTAS
(1) Exílios, Testemunhos de exilados e desertores portugueses na Europa (1961-1974), AEP61-74, Rua Ilha de S. Jorge, n°140-3°Dt. – Quinta da Bela Vista Sassoeiros, 2775-595 Carcavelos. O número 4 da revista Flauta de Luz insere uma nota crítica sobre o livro, assim como um dossier sobre a questão colonial.
(2) Mustafah Dhada, O Massacre Português de Wiriamu, Tinta da China, 2016.