Para lá do 8 de Março, o feminismo faz-se todos os dias
Em Coimbra e Porto, o Dia Internacional da Mulher foi assinalado, como o é todos os anos, trazendo para a praça pública a discussão sobre a violência de género e os direitos das mulheres e das pessoas LGBT. Mas, para lá desta data, o feminismo constrói-se diariamente por múltiplos colectivos e iniciativas.
Em frente à Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, desenha-se um cenário diferente do habitual. Estamos em Março, mas ainda se assam castanhas ao largo da pequena fonte do Largo 8 de Maio. Há movimentação na praça e nas ruas em redor e uma cacofonia de vozes, guitarras e pandeiretas. Estendem-se cartazes coloridos pelas escadas em frente à igreja, onde se lê “Me teneis hasta el coño!” e “Educação Feminista, para que sejamos livres e não valentes”.
Em Coimbra, como em centos de outras cidades pelo mundo, o 8 de Março é assinalado com uma manifestação pelos direitos das mulheres – trabalhadoras, lésbicas, desempregadas, imigrantes, transexuais, presas, mortas. Pelos rostos das mulheres no Largo 8 de Maio vê-se pintado “Ni Una Menos” – mote cunhado pelas feministas argentinas, que denunciam um femicídio a cada 30 horas no seu país.
Um pouco por todo o mundo, àquela data e hora, estava a acontecer a Greve Global de Mulheres. Uma ideia que surgiu da coordenação de mulheres polacas, argentinas e americanas espalhou-se pelo mapa e chegou também a Portugal. A convocatória à greve incitava todas as mulheres a que parassem o trabalho profissional, doméstico e social. Aconteceu em 58 países do mundo e, chegada a Coimbra, a Greve Global de Mulheres e a manifestação que todos os anos assinala o dia 8 de Março foram particularmente pautadas pela solidariedade com as mulheres curdas e o Curdistão. Frequentemente, elevavam-se as vozes num uníssono “Jin, Jyian, Azadi!” – “Mulheres, Vida, Liberdade”.
Na parede entre a Igreja de Santa Cruz e a Câmara Municipal de Coimbra há folhas de papel com algumas das reivindicações que depois seriamlidas no Manifesto da Assembleia Feminista de Coimbra, formada um ano antes na mesma cidade – “pelo fim da cultura de estupro”, “por mim, pela minha mãe, pela minha irmã, por todas as mulheres”. Ao lado, cartolinas amarelas com desenhos feitos por alunos de 7º ano de uma escola local. Ilustram a mulher como entendem que ela pode ser: mecânica, construtora, deputada, bombeira. E rematam: “O dia das mulheres é todos os dias”.
A marcha arrancou do Largo 8 de Maio em direcção à Praça da República, com cerca de 150 pessoas a comporem a coluna que percorreu a Avenida Sá da Bandeira. Erguiam-se bandeiras arco-íris e cartazes com palavras de ordem, nas faixas liam-se reivindicações. A manifestação terminou com uma roda de intervenções na Praça da República, onde se releu o Manifesto e se leram poemas, testemunhos e reivindicações. O manifesto redigido pela Assembleia Feminista de Coimbra ressalvava o papel que a crise e austeridade imposta ao largo dos últimos anos tiveram na vida das mulheres e a vulnerabilidade para que isso as remeteu. Reivindicaram o acesso “à terra, à água, às sementes, aos meios de produção orgânica, à nossa soberania alimentar”, e questionaram o poder das grandes indústrias agropecuárias.
Mas o que culminou numa roda de sororidade e apoio exigiu muitas semanas de preparação, revela uma das activistas da Assembleia. “Temos reuniões todo o ano, mas só no 8 de Março é que aparece toda a gente”. A par das actividades do 25 de Novembro, Dia Internacional pelo Fim da Violência contra a Mulher, os dias anteriores e seguintes a cada data são marcados por actividades organizadas por este e outros grupos que se dinamizem, como, por exemplo, a República Rosa Luxemburgo.
“Quero influenciar o mundo lá fora como sou influenciada cá dentro”
Com vista sobre o Jardim da Sereia e a Penitenciária, uma casa de paredes cor-de-rosa ergue-se altivamente sobre a cidade. A República Rosa Luxemburgo, fundada em 1972, sempre se pautou por uma posição dissidente face ao imposto pelo status quo académico e social. Pintado numa parede da colorida sala está o nome de Fernanda Mateus, “A Bombista”, o maior dos nomes daquela República de estudantes. Assim apelidada por levar consigo para todos os lados uma mala cheia de incendiários panfletos contra o regime, a Nandinha (como as Rosas tendem a falar dela) funda a que é a primeira República feminina de Coimbra. As Repúblicas são espaços comunitários e de auto-gestão, sendo que actualmente existem 25 em Coimbra, cada qual com sua história, nome e identidade próprios.
Sentadas numa sala quase sem mobília, Diana, Helena e Raquel descansam um pouco da azáfama do Mês Rosa. Daí a umas horas, a casa irá encher-se de gente para mais uma festa e os preparativos estão quase terminados. Esta festa é só mais uma das múltiplas actividades que estas estudantes têm vindo a promover.
Diana Martins é, actualmente, quem há mais tempo vive na casa. É estudante de Antropologia Social e Cultural e diz que, apesar de já conhecer o movimento, não era o que é hoje. Aprendeu o feminismo na prática e não tanto na teoria e teve “espaço para desenvolver um pensamento crítico num espaço heterogéneo”.
As outras duas jovens na sala chegaram às Rosas mais ou menos como Diana chegou: por acaso, e porque já lá teriam uma amiga. E ambas partilham de um sentimento que parece ser geral. Ao entrarem, sentiram-se seguras e em casa. E Helena acrescenta: “estou aqui há cinco meses e já sinto uma diferença radical. Quero influenciar o mundo lá fora como sou influenciada cá dentro”.
Começaram a planear o Mês Rosa em Dezembro passado, depois de um projecto semelhante no ano anterior. Explicam a necessidade deste tipo de iniciativas com a falta de projectos semelhantes na realidade conimbricense, fora do circuito das Repúblicas. Diana fala nas “grandes datas, o 25 de Novembro e o 8 de Março” e da Assembleia Feminista de Coimbra, mas acrescenta que, para lá disso, “não há muita coisa a acontecer”. Em 2016, em conjunto com a República das Marias e a UMAR, montaram uma zine a que chamaram “Des(a)fiar a violência sexual” cujo lançamento está previsto para o final do mês de Abril.
“O movimento está aí, há reuniões da Assembleia durante todo o ano”, explica Diana, “mas as reuniões são para organizar o 25N e o 8M, não se fazem coisas espontâneas” como projecções de filmes ou conferências. Relembra uma conversa que houve sobre consumos de drogas e que, apesar de não ter “directamente a ver com o feminismo, aprendeu-se imenso, até sobre Coimbra”. E remata: “o feminismo continua a ser quase um tabu, continua a ser mistificado”.
As três estudantes garantem que há mulheres de fora do circuito das Repúblicas que ocasionalmente as procuram, mas são essencialmente mulheres estrangeiras. Uns dias antes, projectaram um documentário sobre o Curdistão e as mulheres curdas e, nessa sessão, tiveram casa cheia. Relembram a presença de uma jovem curda, que apareceu “sozinha, super envergonhada”, mas que não se inibiu de demonstrar a sua surpresa por ver iniciativas deste género numa cidade onde considera que “o movimento estudantil estava morto”, relata Diana. Explicam que a questão curda está muito presente nos círculos mais activistas de Coimbra e garantem que têm aprendido bastante com os documentários e as conversas sobre o Curdistão e as mulheres curdas que se têm organizado ao longo dos meses.
Contam algumas histórias em que directamente se viram confrontadas com o que consideram ser abuso de poder, mas consideram que é complicado atrair raparigas novas para a casa, “porque continua a haver um estigma contra as Repúblicas”. E acrescido ao estigma que há contra as Repúblicas, explicam as Rosas, há um estigma associado ao feminismo – “para além das drogas, somos todas umas feminazis”, graceja Helena. Não obstante, não sentiram que esses estigmas tivessem afectado as actividades do Mês Rosa.
Enquanto decorre a conversa, continuam os preparativos para a festa, que não vai ser só mais uma noite de folia. “Como se já não fosse óbvio o suficiente, decidimos criar um protocolo contra agressões sexistas”, explica Diana. “O facto de alguém estar sob efeito de álcool ou de drogas não desculpabiliza a agressão. E quem agredir será expulso da casa”. Helena acrescenta que este documento “mais formal” também serve para que as pessoas na festa saibam que estão num ambiente seguro.
Adiantam que a outra República feminista de Coimbra, as Marias do Loureiro, está a preparar um documento para apresentar em Conselho de Repúblicas – órgão informal que inclui todas as Repúblicas e no qual todas as decisões são tomadas de forma assembleária e por unanimidade – que contemple a questão da violência sexista dentro das Repúblicas, à semelhança do que as Rosas iriam apresentar umas horas depois. Diz Diana que o ambiente nas Repúblicas “não é inseguro, mas não é tão seguro quanto pensamos” e que “o carácter formal deste protocolo inter e intra-Repúblicas pode ter um efeito dissuasor”.
Entretanto, entra Ana Rui, antiga residente das Rosas, mas ainda muito presente na vida da casa e das mulheres que lá vivem. Há abraços apertados, reencontros, “que saudades!”. Agora que Ana Rui se juntou, ela e Diana explicam que o paradigma da casa mudou no ano anterior: se desde 1972 a casa era tão somente uma casa feminina, na qual não viviam homens, desde o ano passado que a República assume uma postura feminista, mas admitindo a residência de homens. “A oficialização da coisa tem a ver com o passado histórico da casa, e com querermos assumir a nossa posição ideológica de forma oficial”, explica Ana Rui.
Percebeu, ao chegar às Rosas, que aquele era um local de múltiplos feminismos, onde teria espaço para desenvolver o seu próprio feminismo e um pensamento crítico acerca do mundo e das próprias correntes feministas. Fala em duas antigas residentes e em como elas próprias encontraram os feminismos que mais sentido lhes faziam, como são o eco-feminismo e o feminismo negro, e assegura que fica “muito feliz por saber que esses processos começaram aqui”. Caracteriza as Rosas como um espaço de diálogo e crescimento.
Helena fala “numa força maior” e quer acreditar que ali, nas Rosas, essa força maior existe. E existe todo o ano, porque é todo o ano que elas vivem naquela casa cor-de-rosa, no alto de Coimbra, com vista sobre a Sereia e sobre a cidade do Porto, onde o mês de Março é bem parecido com o Mês Rosa.
“Não nos vemos a institucionalizar-nos”
Já a Primavera se tinha anunciado nos calendários, mas ainda não se fazia sentir verdadeiramente. Final de Março, céu cinzento, chuva miudinha e constante, bem à moda do Porto. No Gato Vadio, já há chávenas de chá quente a saírem de trás do pequeno balcão de madeira, e sacodem-se cabelos e casacos molhados. Há uma tela pendurada no fundo da sala e as mesas estão dispostas para receber mais uma projecção promovida pelo Festival Feminista do Porto, na sua segunda edição. Está preparado o documentário “Women, Art, Revolution”, sobre as mulheres responsáveis pelo movimento feminista na arte nas décadas de 60 e 70.
Mas antes, Raquel Silva está ao leme da sessão, rodeada de zines e com um provocador pin na lapela do casaco – um triângulo cor-de-rosa, e lê-se “CUNT”. Veio para apresentar a zine que edita desde 2011, Cuntroll. A Cuntroll é mais ou menos uma “one-woman band”, já que Raquel é a única pessoa por trás dela desde o início. Recorre a open calls e tem múltiplas colaboradoras, mas tudo volta a ela.
Sentia que havia uma lacuna nas publicações independentes em Portugal que se focassem especificamente nas questões queer e de género, e por isso nasce a Cuntroll, tão ligada à tradição punk das zines. “Punk, feminismo, DIY, riot grrl!”, são algumas das influências que Raquel reconhece na publicação. Acima de tudo, é uma questão de auto-expressão, para ela e para outras: “um espaço livre, sem filtros”, descreve.
Raquel planeia manter a Cuntroll no registo em que tem funcionado desde a sua fundação. Sente que, agora, o feminismo é “mais trendy”, mas quando a Cuntroll surgiu “não dizia que era uma zine feminista, senão era olhada de lado”. Isso pode não ser necessariamente mau, mas sente que têm surgido múltiplos projectos feministas que são “motivados pelo capitalismo, quando esse não deve ser de todo o motivo basilar”.
Não é a primeira nem segunda vez que este espaço de associação cultural recebe as actividades do Festival Feminista. Nesta edição, contou com múltiplas tertúlias e projecções e, na anterior, foi o mesmo. A primeira edição deste evento coincidiu com a passagem da Caravana Feminista por Portugal, em Outubro de 2015, e é na sequência do Festival que se junta o Colectivo Feminista do Porto.
Alicia, de óculos redondos empinados na ponta do nariz e um pin igual ao de Raquel, conta como se cruzou com o Festival, há ano e meio atrás, através de um cartaz afixado na rua. Brasileira e a viver no Porto há três anos, é doutoranda na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e conta que teve de colocar as aulas mais ou menos on hold para se poder dedicar à segunda edição do Festival. Integra o Colectivo desde o final do Festival Feminista de 2015, quando se faz uma chamada colectiva a quem tivesse vontade de fazer nascer esse projecto.
Frisa que o Colectivo e o Festival não são uma e a mesma coisa: “o Festival é maior que o colectivo e o colectivo não vê o festival como seu”. Se o colectivo conta com um núcleo duro de mais ou menos 10 pessoas, o do festival era sensivelmente o dobro. Mas também sublinha que, quando não estão a trabalhar para o Festival, estão a trabalhar em formas de garantir a sustentabilidade do mesmo. Alicia explica que estas cinco semanas de eventos funcionam numa lógica de auto-gestão e sustentabilidade, sem qualquer objectivo de lucro: todas as actividades são gratuitas. E acrescenta: “Não nos vemos a institucionalizar-nos”.
Nisto, junta-se Natasha, freelancer e “muito grávida de seis meses”, diz, ao sentar-se e acariciar a barriga. Ao que já Alicia ia dizendo, Natasha acrescenta que receia “perder a liberdade que se quer ter” se o festival efectivamente se institucionalizasse.
Explicam que, se em Outubro de 2015, o Festival surgiu de uma forma orgânica e espontânea, numa recepção à Caravana Feminista que se foi alongando por um mês, a opção da organização do festival em fazerem a segunda edição em Março de 2017 prendeu-se com o facto de o colectivo se ter recém-formado após a passagem da Caravana. “Pensámos manter o festival em Outubro, para fugir da ideia do mês das mulheres”, esclarece Alicia. Não obstante, queriam ter “um mês de discussão política que contrariasse a romantização banal do mês das mulheres”.
Assim, um Colectivo que nasce no final de 2015 foi crescendo de forma assembleária, “100% horizontal”, sublinha Natasha, resulta num grupo maior que em 2017 promove a segunda edição do Festival Feminista do Porto. “Estamos a gostar muito de trabalhar juntas”, acrescenta. “Há um carinho muito grande de todas”. Mas nem só de tertúlias e projecções de documentários se fez este Festival.
“Os dois workshops de auto-defesa esgotaram, ficámos com gente em fila de espera” e isso é revelador de algo, diz Alicia. E, para lá das actividades que foram promovidas, houve duas iniciativas que se estenderam por todo o festival, demonstradoras da sororidade que deveria marcá-lo. Em todo os momentos, as participantes podiam deixar produtos de higiene íntima nos locais onde decorressem as actividades, que depois viriam a ser distribuídos por mulheres sem-abrigo.
E uma das preocupações das organizadoras do festival era que algumas mães ou pais não pudessem comparecer a determinadas actividades por terem de cuidar dos filhos. Por isso mesmo, para além das actividades destinadas a crianças, proporcionavam a possibilidade de “arranjar uma solução para quem não pudesse vir pelos filhos”, ao disponibilizarem ajuda para cuidar dos pequenos.
O Festival já terminou, mas o trabalho do Colectivo irá continuar. Não lhes tem sobrado muito tempo para olharem para o futuro, gracejam as duas mulheres, mas há planos e há vontade. E há mulheres com garra para levarem o futuro adiante, sem se prenderem a um dia, instituição ou efeméride – afinal, o feminismo faz-se todos os dias.