A Lei (da degeneração) dos Baldios
Ao falarmos de baldios em 2015 a pergunta é: como poderá a nova Lei dos Baldios transformar a realidade dos territórios comunitários em Portugal?
O problema está na principal meta desta nova investida legislativa: a privatização dos baldios pela facilitação da sua abertura ao comércio jurídico. Isto é, promovendo parcerias público-privadas sobre os baldios, com a liberalização e substituição da acção do estado (no quadro legal pós revolucionário de 1976, 80% dos baldios reconhecidos nessa fase ficaram em regime de Co-gestão entre compartes e estado) pelos actores e interesses do sector privado. Sob a opção da gestão exclusiva pelos compartes (provavelmente a mais defensável) vem a nova Lei colocar entraves neste sentido, por exemplo quando obriga os compartes a ressarcirem o parceiro estado relativamente a investimentos feitos no baldio. É por isso notícia, uma vez mais, na já longa história da relação dos baldios com o estado, o “roubo dos baldios aos povos”.
Em causa está o perigo de comprometimento da essência dos baldios e a diminuição das áreas comunais pela expropriação de terras que não estejam a produzir. A extinção do baldio pelo princípio do não uso pela omnipotência do critério de produtividade, que vem, também, justificar a sua inclusão na Bolsa Nacional de Terras. Esta outra estratégia, que deve ser lida em articulação com a Lei dos Baldios e com a legislação que se associa à política florestal, e que é obrigatório assinalar entre as políticas territoriais ditadas pelo cânone sagrado do empreendedorismo privado. Já em 2012, a propósito da Bolsa de Terras, João Diniz da Confederação Nacional de Agricultores receava “que este tipo de pequenas políticas acabe por servir grandes interesses económicos”, “grandes empresas agro-florestais e grandes empresas financeiras do negócio agrícola”.
Ao mesmo tempo não podemos esquecer como nas últimas décadas as questões da estratégia nacional para as florestas, traduziram um evidente desfasamento face ao contexto específico dos baldios, entre o imobilismo e a prepotência, respondendo a uma política florestal muitas vezes inoperante. No contexto da Lei dos Baldios, a passagem dos Planos de Utilização do Baldio a Planos de Gestão Florestal (PGF), promove simplesmente uma subjugação em definitivo aos objectivos florestais condicionando as opções e em última análise a própria autonomia dos baldios (os PGF dependem da aprovação por organismos do poder central).
Ao longo do último ano as reacções foram dominadas pela tónica da inconstitucionalidade da Lei, em vários dos seus aspectos, razão que acabou por conduzi-la ao Tribunal Constitucional, em março deste ano. Mas o que há que frisar no debate sobre a Lei dos Baldios é esse pano de fundo que resulta de uma perspectiva impositiva do estado como decisor (através de um sem fim de normativas técnicas e instrumentos legais) e uma asserção usurpadora do baldio que se entende mais como área pública e não comunitária. Para entender as pressões a que os territórios baldios estão sujeitos é preciso ter noção (e o acompanhar da sua evolução histórica permite concluir isso mesmo) de que as decisões políticas (os “destinos traçados”) sobre o que deve acontecer nos baldios têm lugar muito a montante destes, importando, depois, que os mesmos simplesmente se adequem aos imperativos de cada momento.
Uma das questões mais impactantes prende-se com a definição de “comunidades locais” (a abrangência do conceito de comparte) com base nos limites administrativos e não nos usos e costumes. Na nova Lei “são compartes todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios ou que aí desenvolvam uma atividade agro-florestal ou silvo-pastoril”. Uma modificação na dimensão e dinâmica do baldio, pois os usos e costumes que antes determinavam os direitos dos compartes não coincidem necessariamente com limites administrativos. No fundo os “usos e costumes locais” são invocados meramente como muleta de expressão sem encontrarem tradução real na Lei. Se a renovação de compartes é desejável (na óptica da continuidade do próprio baldio), o modo assim imposto acarreta problemas não subestimáveis que, sobretudo, contribuem para o enfraquecimento da cooperação em nome de uma relação focada numa perspectiva individualista, que em última análise também vem contribuir para a opção de delegação de poderes de administração. A conjuntura económica tem promovido alterações relevantes nos baldios, e a tendência em muitos deles é opção por formas de exploração que promovem a obtenção de rendimentos directos (uso “rentista”) que não traduz qualquer tipo de resistência aos desígnios estabelecidos noutras instâncias. Esta forma de aproveitamento encerra uma dissimulada degeneração da propriedade comunitária que, em última análise, põe em causa a sua legitimidade, ao comprometer a sua lógica e características, indissociáveis do território e de dinâmicas sociais particulares, assentes na cooperação e participação directa. Assim, em vez de contrariar aquela que é já uma tendência nalguns casos, a Lei vem antes estimular e facilitar a transferência da gestão dos baldios para terceiros (órgãos do poder local, agentes privados, etc.), numa lógica que não contribui para contrariar a tendência para o abandono e perda das dinâmicas sociais nos territórios rurais.
O aumento da heterogeneidade do grupo contribui também para o condicionamento na tomada de decisões, assim comprometendo, a concretização da igualdade de direitos dos compartes. Esta não é uma problemática nova, nem esta nova Lei contribui para a sua superação, em particular, ao tornar comparte todo aquele ou aquela que desenvolva uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril na freguesia do baldio em questão. Na hipótese do indivíduo em causa ser detentor de uma qualquer indústria da celulose, que impacto terá este “comparte”? Sabemos que as opções das elites económicas, ou a estas favoráveis, tendem a sobrepor-se e a subordinar as escolhas do colectivo.
Outro aspecto ofensivo da Lei dos Baldios é o seu enquadramento no regime do património autónomo no que respeita à personalidade judiciária e tributária, o que nada mais é que a passagem da propriedade comunitária a uma forma de património próxima doutros tipos de propriedade privada. Algo questionável face à própria Constituição da República Portuguesa que garante a existência das três tipologias distintas de propriedade: privada, pública e comunitária.
A Lei levanta outra problemática na medida em que a aplicação de alguns dos seus artigos pressuporia a pré-existência de um levantamento exacto dos territórios baldios. Face a um processo complexo que traduz o registo matricial deste tipo de propriedade, assente em usos e costumes, podem acabar comprometidas todas as áreas que padecem desses registos. Um contra-relógio que começou a ser contabilizado desde a data da entrada em vigor da Lei. Sem esquecer que esta falta de cadastro dos baldios limita a reclamação de direitos e presta-se à sua usurpação, do que constitui exemplo, a tentativa de venda ao Grupo Sonae de parte do Monte de Santa Bárbara pela Junta de Freguesia de Souto de Lafões (Oliveira de Frades) para a construção de um empreendimento turístico.
É evidente a burocratização e formalização dos territórios comunais, que no contexto da presente Lei conduzem à perda de autonomia dos compartes e vêm reforçar uma distribuição hierárquica do poder, condicionando totalmente o florescimento de formas organizacionais mais horizontais. Vários são os aspectos em que se pode ler esta perda de autonomia decisória, seja por exemplo na aplicação de receitas que deverá ser feita “nos termos a regulamentar por decreto-lei” ou na decisão sobre quem pode assistir/participar nas assembleias de compartes, aprofundando ainda mais os constrangimentos da participação já instalados.
O foco da Lei é posto evidentemente na componente económica e torna todas as outras áreas subsidiárias desta. É particularmente gravoso a subestimação das componentes relacionais, sociais e ecológicas. A visão que subjaz à Lei é, em si, uma limitação significativa do potencial que pode associar-se aos baldios, assenta numa forma produtivista de os encarar, valorizando-os apenas como mera materialidade.
Por fim importa realçar que a nova Lei dos Baldios vem permitir e veicular a extinção dos baldios sem considerar a possibilidade de criação de novos territórios comunais. Basta “quando, por período igual ou superior a 15 anos, não forem usados, fruídos ou administrados, nomeadamente para fins agrícolas, florestais, silvo-pastoris ou para outros aproveitamentos dos recursos dos respetivos espaços rurais”. Ponto sensível, porque, desde logo, o direito de propriedade, de acordo com o ordenamento jurídico português, não se extingue pelo não uso.
Pese diferenças na estratégia, ou pelo menos no discurso, é evidente desde o 25 de Abril a tendência em todos os partidos que assumiram funções governativas, para uma abordagem que tende a subestimar a capacidade de gestão levada a cabo pelos compartes, insistindo-se ora numa perspectiva de necessária dependência destes em relação ao estado; ora numa abordagem que parece não distinguir os baldios da propriedade pública e que insiste em associar aos mesmos o espectro da produtividade. A partir de 2011, com a coligação PSD-CDS/PP acentuou-se o discurso sobre o abandono ou uso negligente, o foco na problemática do uso dos rendimentos gerados pelos territórios baldios e a importância da sua rentabilização. Exemplo expressivo do predomínio da linguagem mercantilista que se pretende conotada com a ideia de um tipo de racionalidade económica que serve como argumentação incontestável e tende a remeter para um plano bastante secundário questões sociais, éticas, culturais ou ecológicas. No fundo, importa desvirtuar até à extinção, a formulação traduzida nos baldios que permite participar na vida política e nas decisões sobre o presente e futuro dos territórios que se habitam.
P.C.