Felizmente continua a haver luar (Junho 2015)
Era uma vez, uma manhã muito cedo, numa sala de espera de um aeroporto do sul. Eu procurava um jornal do dia. A menina da loja propôs-me o único que tinha acabado de chegar. Uma coisa com o nome de Jornal de Negócios. Como é que eu posso ler um jornal com aquele nome? E não é que, na primeira página do pasquim, uma foto me atrai a atenção? A Mariana Mortágua em entrevista! Comprei! E li as duas ou três páginas da entrevista, com umas púdicas fotos glamour da deputada da extrema-esquerda à mistura. A Mariana Mortágua é uma mulher inteligente. Diz muitas coisas justas, bem ditas, fala dos bancos, da fusão entre o sistema financeiro e o mundo político. Enfim, fala do único país no mundo onde, apesar de Fátima, o espírito santo foi à falência! Ela fala pouco de capitalismo, provavelmente para não molestar os clientes do Negócio que são alérgicos a palavras feias, explica que não há que se fixar no Salgado, que não é uma questão de indivíduos, que o problema é o sistema. Tenho de reconhecer que, no pequeno país, palavras destas são raras e trazem um ar fresco agradável. No fim da leitura fica uma ideia central na qual a Mariana Mortágua acredita. A possibilidade de controlar o sistema, o mundo do lucro, de o regular, de o tornar mais justo e mais humano. Um erro que pode ser comprovado pelo movimento da História e a evolução das sociedades. O capitalismo não pode ser regulado, é um sistema desequilibrado, instável, violento. Tal é a sua dinâmica e ele nunca poderá vir a ser um sistema humano. Podemos recusá-lo, lutar contra ele e, em situações históricas particulares, participar da sua subversão. A única força que podemos pretender controlar é a da nossa própria actividade colectiva contra o sistema. A partir daí outros possíveis se abrirão. Mas acreditar que um grupo, um partido, pode influenciar as forças complexas e potentes do capitalismo, afim de modificar a sua natureza, é uma ilusão voluntarista, que se paga caro. Não há volta a dar-lhe e acaba por ser o sistema que dá a volta aos que entram nas instituições com ilusões. Como observamos hoje na Grécia. E se aqui ao lado ainda há dúvidas é justamente porque o motor de Podemos é ainda alimentado, e em parte controlado, pela energia e pela dinâmica de um movimento colectivo que revindica princípios horizontais e de democracia de base.
Mas por que razão, com que objectivo, a Mariana Mortágua anda a falar com esta gente dos negócios? Obviamente, são as necessidades da política que o explicam, a necessidade de ser reconhecida por eles como alguém sério e responsável, provar que possui os atributos que o famigerado sistema exige para fazer política no quadro que é imposto e que ela e os seus amigos aceitam. Há também a necessidade de justificar o seu trabalho de política junto dos seus eleitores. E, do outro lado da mesa, porque razão os homens dos negócios se interessam pela Mariana Mortágua? Diria eu que, paradoxalmente, também eles partilham esta mesma ideia da utopia invertida, de um bom capitalismo, justo. O que ela diz acaba por lhes servir de boa consciência a eles, eles que, no fundo, sabem que só pode ser assim e que nada mudará.
E depois, há o poder da comunicação social. Dizia um conhecedor que no meio de comunicação social a mensagem é o meio de comunicação social. Isto é, não há ali conteúdo separado da forma, e a forma do meio de comunicação social é, por si mesmo, o conteúdo do que é dito, escrito, que orienta, impõe as regras e os limites, canaliza, manipula. Falámos do Podemos. Para ilustrar a vivacidade e a vigilância que anima a base do partido, aqui deixo uma citação de um texto de uma amiga que, num dos blogues do movimento, discute justamente o papel da comunicação social na vida política: «agentes políticos de primeiro plano que impõem a ordem dos trabalhos e a hierarquia dos temas; que põem o selo da verdade em certos acontecimentos e negam a existência de outros; que dão voz a quem consideram relevante, enquanto condenam outros ao silêncio, construindo assim a realidade que nos é oferecida, o desenho imaginário do mundo em que vivemos.»
Descolagem, as nuvens, o céu azul infinito, e esqueço o Jornal de Negócios.
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O regresso à terra firme nem sempre é agradável. O exército francês está à nossa espera para nos proteger. É o que dizem! Patrulha os lugares públicos, agora também as ruas e praças, há escolas protegidas pelos paraquedistas, e o governo socialista acaba de aprovar a sua terceira lei antiterrorista em poucos anos. A última é uma imitação do «Patriot Act» que o governo americano aprovou logo após o 11 de Setembro. Como diz Henri Leclerc, um respeitável advogado humanista, é uma «lei Frankestein», uma lei onde o Estado até reconhece a necessidade de utilizar medidas ilegais para se proteger! «Trata-se de uma lei antiterrorista disfarçada, mas também de um texto sobre a manutenção da ordem em geral». Uma lei que penaliza todas as oposições contra as instituições existentes. Anarquistas, trotskistas, ecologistas e outros inimigos, ou simples agnósticos, da ordem social actual, vão ser tão bem servidos como os raros jihadistas de serviço… Entre as medidas concretas fala-se de um algoritmo que permitirá detectar, nas redes telefónicas, o que estes aprendizes de feiticeiros chamam os «sinais fracos», ou «sinais anunciadores» de actos que poderão vir a ser… Estamos submetidos ao condicional hipotético. O velho Estado de Direito da democracia da avó vai, pouco a pouco, sendo substituído por um agressivo Estado de Excepção. É a democracia de terror da época do terrorismo. De repente, volto a ruminar naquela pretensão de querer controlar o sistema capitalista! Quem, e como, vai controlar estas máquinas de terror que nos controlam, este Estado de Excepção que se instala? Como todos, este governo socialista francês governa com o discurso do medo, o medo é o seu único programa. Medo que a situação possa ser ainda pior, medo da extrema-direita, medo dos terroristas…E o medo espalha-se, cria monstros e submissão. O cartune de El Roto no El País diz tudo, «Tenho tanto medo que me escondi e nunca mais me encontrei». Assim estão os cidadãos da democracia parlamentarautoritária moderna, escondidos e perdidos de si próprios. E é o medo que dá o poder à política, aos políticos.
Desde a manipulação do «Somos todos Charlie», quando o ministério do interior francês fez desfilar centenas de milhares de pessoas atrás de um grupo internacional de grandes criminosos de guerra, as coisas têm vindo a piorar. Como se esperava… É sabido, os socialistas adoram as guerras! O massacre da primeira Grande Guerra foi a estreia deles na matéria. Depois, para continuar a falar do caso francês, tivemos a Indochina, a guerra da Argélia, as duas guerras do Golfo e agora diversas intervenções militares. Dez mil soldados franceses estão hoje em operações no exterior (o segundo maior contingente após os americanos), aviões, navios e porta-aviões estão em acção, bombardeiam, matam e destroem, para bem da democracia. Em África, as tropas francesas levam a promessa de civilização, começando por violar as crianças. Não há-de ser nada, tudo será abafado. Toda esta actividade de terror, não é terrorismo, já se vê! Porque são os que produzem terror que decretam o que é, e o que não é, terror! Assim, espetar um avião numa montanha e matar 150 pessoas é apenas uma coisa «inconcebível», quando sabotar uma máquina de obras num túnel ferroviário em construção no Val de Suza em Italia já é terrorismo. O conceito é extremamente elástico e pouco rigoroso. E se por acaso há falta momentânea de jihadistas, sempre há a possibilidade de tirar da manga os suspeitos que foram postos de reserva. Para variar o cardápio, volta-se hoje aos jovens de Tarnac e da Insurreição que Vem. Os quais, após muita expectativa, vão finalmente ser julgados por terrorismo num processo muito mal alinhavado. Porque a polícia secreta não gosta de perder a face e o governo obedece. E um governo socialista obedece ainda mais depressa e melhor.
Mas os socialistas adoram também vender armas, actividade de terror anexa. O caixeiro viajante Hollande vende aviões de morte e bombas a quem quer comprar. Actividade, diz ele, que é o sinal da retoma da economia. Enfim, o homem tem os seus limites intelectuais mas a ideia parece entusiasmá-lo. Entretanto, o desemprego continua a aumentar, os serviços públicos continuam a ser desmantelados, os pobres a empobrecer e os ricos a enriquecer, a corrupção a propagar-se, a sociedade a decompor-se, a parvoíce irracional a alastrar.
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De Baltimore, chegam-me umas reflexões sobre as revoltas na cidade que se estenderam depois a outros centro urbanos dos Estados Unidos após o assassinato do jovem Fredie Gray pela polícia local. Nos dias que correm, a sociedade norte americana parece vigilante e motivada e a recente série de assassinatos de jovens negros provocou uma revolta maciça. O facto novo é a fractura na chamada «comunidade negra». Diz o meu amigo : «Ao contrário do que se passou em Fergusson, onde assistimos a uma revolta contra um grupo dirigente predominantemente branco, em Baltimore estamos perante um grupo dirigente negro bem instalado nas instituições, consciente do seu poder e que governa a cidade e a polícia há décadas. Poder-se-á dizer que a revolta em Baltimore foi a primeira revolta importante recente contra esta liderança e é um sinal positivo que muitos dos manifestantes manifestem uma clara consciência do vazio e falsidade desta casta política negra». Isto é, são revoltas que mostram concretamente que a imagem da chamada «comunidade negra» é falsa, não corresponde à realidade. Como o confirmam os estudos recentes. Se a burguesia negra tem vindo a aproximar-se dos níveis de rendimento da burguesia e classes médias brancas, o empobrecimento da grande massa dos negros americanos nunca foi tão rápido e tão violento como durante os anos da administração Obama. O que só pode parecer contraditório para os ingénuos empedernidos. Pelo contrário, é esta evolução que caracteriza o chamado «fenómeno Obama». Estas revoltas mostram também que os efeitos do movimento Occupy são duradouros. Primeiro porque o Occupy deixou no plano nacional uma rede de ligações, contactos e referências que reaparecem ao primeiro acto de rebeldia. Mas também porque a participação importante de jovens brancos nas manifestações e nas acções prova uma clara mobilização inter-racial nos sectores menos alienados da juventude norte americana.
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A comemoração do 25 Abril é uma chatice sem fim. Pior do que um fado, é um folhetim. Uma trapalhada que continua a vender gato por lebre, a festejar o 25 Novembro com a máscara do 25 Abril. O engano, a confusão, continuam a ser destilados por tudo o que é gente de cultura, já que os políticos estão desvalorizados para o fazer. Nos últimos tempos, tivemos por terras de França a presença muito falada da escritora Lídia Jorge, que veio apresentar a tradução do seu livro Os Memoráveis. Numa entrevista para a revista La Quinzaine Littéraire, Lídia Jorge diz que escreveu o livro para os jovens que têm tendência a esquecer mas também para lembrar que o país vive uma situação de injustiça que é, em parte, o resultado de quarenta anos de «democracia imperfeita e medíocre». Bom, já se ouviu pior, mas a escritora também nos tinha habituado a melhor… O facto é que a frequentação da política limita a imaginação e não é coisa muito salutar para a criação. De repente, Lídia Jorge levanta uma questão. «É difícil aceitar a ideia que a democracia traiu a utopia». Ignoro a que utopia se refere, duvido que se trate da das ocupações de terras, das casas, das fábricas, da autogestão, do «apartidarismo» e do desejo de uma outra vida nos anos 1974-75. No que diz respeito a democracia, imagino que ela se refira à do 25 Novembro, a dos soares, dos cavacos, do BES, da corrupção arrogante das elites e castas políticas, dos salgados, dos moedas, dos sócrates, dos cheques dos submarinos. Pois claro, a questão está mal posta! A democracia e a utopia são dois conceitos antinómicos. E depois, não houve traição, houve sim concretização do projecto democrata. Era isto mesmo que estava programado, não há nada a acrescentar nem a lamentar. Houve uns desvios, uns abusos, mas, no essencial, a democracia representativa é mesmo isto. Não se lhe conhece melhor rosto e ela só se reforma para se tornar mais autoritária e menos humana, mais violenta. E é por isso mesmo que o pessoal já não quer ouvir falar destas comemorações, datas, capitães, cravos e outros objectos decorativos… Há uma overdose, só que esta gente ainda não se apercebeu. Ao contrário do que escreve a Lídia Jorge, nada está esquecido, nem na juventude nem na velhice, está só congelado, posto de lado. Esperando dias melhores. Até lá, lembremo-nos o que escrevia o Alexandre O’Neill na Feira Cabisbaixa, «ó Portugal, se fosses só três silabas, de plástico, que era mais barato!»
Cheios de boas intenções estes democratas enferrujados não sabem bem onde estão, nem de que lado vem a tempestade. Passam o tempo a semear confusão e depois arrastam uma vida de pessimismo com remorsos. O Walter Benjamin tinha outra ideia mais empolgante. Considerava que o importante é preservar a memória dos vencidos, tarefa a que ele chamava, «organizar o pessimismo». Um programa que, estou convencido, não interessa ao pessoal do Jornal de Negócios.