Bitcoin: as ilusões do preciosismo técnico
No inicio de 2014, a organização do Boom Festival anunciava que os bilhetes do evento poderiam ser comprados em Bitcoins. Habituados ao movimento de milhares de pessoas que por ali passam durante o Verão para assistir ao festival, os habitantes e produtores locais de Idanha-a-Nova terão ficado indiferentes. Provavelmente nunca tinham ouvido falar em dinheiro virtual…
Meses depois era inaugurado em Lisboa o primeiro multibanco para câmbio de Bitcoins. O Banco de Portugal (BdP) antecipou-se num comunicado, alertando os consumidores para os riscos das moedas virtuais, ausentes de qualquer supervisão ou regulação por autoridades do sistema financeiro. Isto numa altura em que a actualidade informativa era ainda marcada pela falência do Banco Espirito Santo e seus activos tóxicos, transformados em banco “mau”. Terão sido profícuos os conselhos do BdP, durante o desenrolar de mais um episódio de comprovada idoneídade institucional e financeira…
Sobre os perigos desta nova moeda tinha já aludido um conhecido politico de esquerda 1, referindo-se ao “pesadelo” dessa “velha ideia nova”, salientando ser imprescindível uma autoridade responsável pelo sistema monetário. Contrapunha assim as famosas caracteristicas da Bitcoin, nomeadamente a “criação” de moeda pelos próprios utilizadores, e a sua independência face a qualquer entidade central.
Das moedas virtuais que proliferam actualmente na internet, a Bitcoin é a mais popular. Aquilo que começou com uma experiência de programadores, depressa veio a ser o tema de moda de analistas financeiros e economistas. O leque de simpatizantes é de tal modo abranjente que inclui activistas, investidores, empresários e entusiastas da ficção científica. O mesmo acontece com os críticos que já apelidaram a volatibilidade desta moeda como a “vingança de Keynes” 2.
Dos primórdios à bolha especulativa
Em 1992, Timothy May, autor do manifesto cripto-anarquista 3, organizou um encontro para debater as questões técnicas e politicas sobre as ameaças à privacidade na internet emergente, como era a tentativa do governo americano em restringir o acesso a ferramentas criptográficas 4. No fim do encontro, os participantes 5 comprometeram-se com a defesa da privacidade no mundo digital. Este compromisso passou a incluir a possibilidade de transacções comerciais anónimas e a criação de criptomoedas. Seguiram-se algumas propostas para a sua implementação, como o B-money ou o Bit-gold.
A Bitcoin foi concebida em 2008 por Natoshi Sakamoto 6, a partir de um artigo científico publicado numa lista de discussão sobre privacidade 7. Neste artigo é descrito um sistema de transacções electrónicas e uma moeda digital que dispensa a mediação de instituições financeiras. Pouco depois começou a ser desenvolvido o software que viria a implementar os algoritmos e os protocolos necessários ao seu funcionamento. A rede Bitcoin começou a funcionar em Janeiro de 2009 com o lançamento open source (código aberto) do primeiro software cliente, permitindo a qualquer utilizador fazer parte da rede, e efectuar transacções através da sua carteira virtual (Bitcoin Wallet), ou participar no processo de “emissão” de Bitcoins. As primeiras foram geradas pelo próprio Natoshi Sakamoto.
Pelo que é conhecido, a primeira transacção envolvendo bens tangíveis foi a compra de duas pizzas 8, no valor de 10.000 BTC. Nos tempos seguintes, à medida que o software era aperfeiçoado, o número de utilizadores aumentava. Surgiam também as primeiras empresas de câmbio como a Mt. Gox, sediada no Japão. Na Dark Web 9 aparecia o SilkRoad, um dos primeiros sites para comercialização de produtos ilegais 10 fazendo uso da moeda.
No inicio de 2011 a Bitcoin movimentava uma economia que ultrapassava um milhão de dólares e a sua cotação equiparava o dólar. Com o seu valor a aumentar aparecem também as primeiras noticias de extravios, como consequência de falhas de segurança encontradas no sistema. Durante esse ano e no auge da polémica entre a Wikileaks e o governo americano, a rede Bitcoin foi utilizada para transaccionar donativos destinados à Wikileaks, furando o bloqueio económico levado a cabo por instituições financeiras como a rede VISA, MasterCard, PayPal e Western Union.
Em plena crise Cipriota, a negociação do resgate entre o governo do Chipre e a Troika previa, entre outras condições, o congelamento e a taxação de depósitos bancários acima dos 100.000 euros. Isto terá assustado aqueles que estavam habituados a ver o Chipre como um paraiso fiscal ou um oásis para a lavagem de dinheiro. A procura de soluções coincidiu com a compra massiva de Bitcoins, fazendo saltar a sua cotação nos primeiros dias de Abril de 2013, de 80 para 260 dólares. A afluência de negociantes foi de tal ordem que os servidores da MT. Gox ficaram fora de serviço, no que se pensava ser um ataque DDoS 11.
Com a detenção do suposto dono do Silkroad, acusado por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, a Bitcoin começa a ganhar a atenção dos média internacionais. Nas buscas deste processo, o FBI apreende 174.000 BTC, passando também a fazer parte da “aristocracia Bitcoin”. Este evento não terá tido impacto substâncial na flutuação dos preços de câmbio que mesmo assim continuavam instáveis. Após declarações favoráveis à moeda por um representante do banco central da China, a Bitcoin atinge um dos picos históricos da sua cotação, chegando aos 1075 dólares por unidade. Meses mais tarde o governo chinês decide proibir a utilização da moeda pelos bancos, voltando o preço a cair abruptamente.
A crise financeira global, iniciada em 2007, confirmou a dissonância entre a economia real e o sector financeiro, aumentando a desconfiança nas politicas económicas dos governos e nas decisões dos bancos centrais. Este contexto de débito, incerteza e austeridade, incentivou a procura de alternativas ao sistema monetário oficial. A ideia de uma moeda para uso comum, que não seja manipulável por políticos e banqueiros, inspirou Natoshi Sakamoto na concepção da Bitcoin, substituindo a crença nas instituições financeiras e nos governos, pela crença na transparência técnica dos algoritmos e da informática.
De forma simplificada, o sistema Bitcoin consiste num “caderno” digital de registos, designado por Block Chain (cadeia de blocos), onde são anotadas todas as transacções, bem como as quantidades de dinheiro virtual que cada utilizador possui. Esta informação é replicada por todos os nós que constituem a rede P2P (peer-to-peer 12) do sistema. As Bitcoins são “criadas” como recompensa pelo processamento disponibilizado para verificar e registar de pagamentos, num processo competitivo conhecido por “mineração” (mining). A resolução de um “desafio” matemático adicional, de elevado esforço computacional, selecciona o destinatário das novas moedas emitidas. À medida que a cadeia de blocos vai crescendo, mais dificil é a resolução do desafio, o que simula a dificuldade de extracção atribuída aos metais preciosos. Isto deu origem a uma novo negócio especializado que requer cada vez mais electricidade e investimento em tecnologia de ponta.
As transacções da Bitcoin são públicas, mas dos seus utilizadores apenas se conhece um endereço gerado por técnicas criptográficas 13. Esse é um dos objectivos das criptomoedas, a garantia de anonimato aos seus utilizadores, permitindo o comércio e a circulação de valores, evitando restrições legais. Esta característica tanto pode favorecer o multimilionário habituado aos paraisos fiscais, como a cooperativa 14 de produção e consumo sobrecarregada de impostos e fiscalizações. Escusado será dizer que aqueles que actualmente criam riqueza não são os mesmos que escondem milhões em paraísos fiscais. O interesse no anonimato e a usurpação do conceito, terá levado o banco JP Morgan a solicitar uma patente em 2013, sobre um sistema anónimo de pagamentos, funcionando através da Internet, com características recuperadas da tecnologia presente nas criptomoedas. A patente foi entretanto rejeitada.
A Bitcoin tem no seu desenho uma interpretação económica específica. Ao ser estabelecido um limite na oferta, que não poderá ultrapassar 21 milhões de unidades, ela é concebida como um bem de natureza “escassa”. Este factor e o aumento progressivo da dificuldade em “gerar” novas unidades, fazem da Bitcoin uma moeda deflaccionária. Isto fomenta a acumulação de moeda e a sua concentração, resultando em perdas de liquidez que a tornam inviável como meio de troca. Assim os produtores de bens e fornecedores de serviços são prejudicados, e os investidores favorecidos. Terá sido esta uma das razões que levou à criação da Freicoin, uma outra criptomoeda baseada na mesma tecnologia, mas que inclui no seu algoritmo uma taxa de oxidação, segundo os criadores, para prevenir os interesses usurários e facilitar a circulação.
Natoshi Sakamoto define o seu invento como “um sistema de transacções electrónicas que não depende da confiança”. Desta afirmação deduz-se que o código e os algoritmos passam a assumir o papel da lei, cuja função é garantir o cumprimentos de contratos, assegurar direitos de propriedade e regular a circulação do dinheiro. Este conceito de governo é o mesmo que está presente nas moedas convencionais, só que neste caso é o software a definir o que os utilizadores podem ou não fazer. Nesta perspectiva, a tecnologia P2P serve para fomentar uma forma de capitalismo “distribuido”, e não um sistema de crédito entre pares, baseado na confiança.
Muitos dos seus entusiastas vêem a Bitcoin como uma moeda “neutra”, sujeita apenas aos algoritmos e à lógica de mercado, independente do Estado. Isto baseia-se numa fantasia originada nos manuais da ortodoxia económica, segundo a qual o dinheiro como relação e mercadoria surgiu naturalmente da necessidade em agilizar a troca directa e ultrapassar o problema da “dupla coincidência de necessidades”. Esta perspectiva não passa de um mito. A emissão de moeda e o uso generalizado do dinheiro tornou-se dominante nas sociedades em que o Estado passou progressivamente a regulamentar toda a vida social e económica.
A cripto-revolução pariu um rato?
A história recente mostra-nos que grande parte do dinheiro investido na Bitcoin tem como objectivo explorar as flutuações do seu valor, procurando lucros fáceis e rápidos. A utilização da moeda é em grande parte motivada pela especulação, e não pela troca de bens e serviços. Se entretanto sobreviver às bolhas especulativas, na melhor das hipóteses permitirá reduzir os custos das transacções financeiras e diminuir a intermediação dos bancos, aproximando-se de um sistema alternativo de pagamentos. Para esta previsão aponta também o facto de a rede MasterCard ter reclamado recentemente a patente sobre um carrinho de compras online que inclui a possibilidade de pagamentos em Bitcoins.
As criptomoedas são uma implementação específica de um conjunto de tecnologias abertas, de acesso público, que não representa todas as suas possibilidades. As redes distribuidas, o software livre, a criptografia, poderão ser ferramentas úteis para facilitar a gestão de cooperativas, LETS (Local exchange trading system) ou sistemas de crédito, como é o exemplo do Ripple ou do CES (Community Exchange System). Este último foi mantido durante anos por um único programador, e alberga actualmente mais de 600 projectos que incluem LETS e Bancos do Tempo. Cada grupo ou comunidade gere as caracteristicas e o funcionamento da sua moeda, baseada no crédito e na interdependência dos seus membros.
A Bitcoin, por outro lado, baseia-se numa sofisticação técnica, abstraida de qualquer comunidade real. O seu potêncial de mudança não representa mais do que uma falácia, e em nada altera os fundamentos do modelo económico vigente, ou os privilégios dos seus principais beneficiários. É necessário encontrar outras formas de pensar a economia, não como ciência separada da vida, mas como manifestação desta num todo indissociável. Só a construção de relacções de confiança entre individuos e entre comunidades nos libertará da autoridade dos bancos, dos governos ou das regras impregnadas nos bits.
Notes:
- Uma velha ideia nova: uma moeda para substituir as moedas, o bitcoin. Francisco Louçã no blog inflexão ↩
- Bitcoin: el universalismo como error de diseño, David de Ugarte, El Correo de la Indias, 11-05-2014. ↩
- The Crypto-anarchist manifesto, Tim May, Usenet, 1988. ↩
- Em 1991, o programador e activista anti-nuclear, Phil Zimmerman, criou o programa informático PGP (Pretty Good Privacy), para facilitar o uso pessoal de criptografia de chave pública em emails, textos, ficheiros e directórios. O programa foi disponibilizado para download gratuitamente, junto com o código fonte. Pouco tempo depois, a encriptação PGP ficou disponível fora dos Estados Unidos, e Zimmerman tornou-se alvo de investigação criminal por “exportação de munições”. Os sistemas criptográficos com chaves superiores a 40 bits eram na altura considerados “munições”, segundo a definição da lei americana que regulava as exportações.
↩ - Autodenominados Cypherpunks. ↩
- Pseudónimo de individuo ou colectivo, que permanece anónimo até à actualidade. ↩
- Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System, Satoshi Nakamoto, The Cryptography Mailing List (metzdowd.com), 2008. ↩
- Bitcointalk (http://bitcointalk.org), laszio, 22-05-2010. ↩
- Conteúdos anónimos da Web que não estão indexados nos motores de busca convencionais e só podem ser acedidos através de software especializado. ↩
- Entre outros, canábis, cocaína e heroína. ↩
- Distributed Denial-of-Service ↩
- Arquitectura de redes de computadores, onde cada ponto (ou nó) funciona simultâneamente como cliente e servidor, sem necessidade de um servidor central, configurando uma topologia distribuida. Este conceito passou também a ser utilizado em dinâmicas sociais. ↩
- Criptografia de chave pública e hashing. ↩
- Por exemplo, a Coopperativa Integral Catalã suporta as criptomoedas e alguns dos seus membros participam no desenvolvimento do projecto DarkWallet, que tem por objectivo incrementar a privacidade da Bitcoin. ↩
PS. Podes ver aqui um resumem em vídeo realizado pela imprensa local do evento que te contava
http://lasindias.com/video-resumen-mas-alla-de-la-sharing-economy
Estimado Julio,
Sou David de Ugarte, do Grupo Cooperativo das Índias (lasindias.com e grupolasindias.coop). Gostaria de contactar contigo para comentar e te perguntar pessoalmente sobre o panorama do cooperativismo de trabalho unido ao software livre e o mundo da produção p2p em Portugal.
Depois do evento que fizemos em Gijón (Asturias, Espanha) sobre Sharing Economy em Outubro passado (ancovoligo.com), estamos a preparar fazer outro mais perto de Portugal e gostaríamos de introduzir experiências portuguesas. Mas… precisamos «mapa», não é fácil descobrir o mundo alternativo português nos meios nem na blogsfera. Poderias ajudar-nos?
Um grande abraço
David