Comunicado desde Barcelona sobre a operação policial “Pandora”

23 de Dezembro de 2014
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Comunicado enviado para a redacção do Mapa em 19-12-2014


 

A caixa de Pandora ou o baú do anti-terrorismo espanhol

A manhã de 3a feira 16 de dezembro surpreendeu-nos com uma nova vaga de registos e detenções…Surpreendeu-nos? Não vamos mentir. Comecemos de novo. A manhã de 16 de dezembro não nos surpreendeu. A polícia autónoma catalã, os Mossos de Esquadra, a Guarda Civil e agentes judiciais da Audiência Nacional assaltaram mais de 10 domicílios e alguns locais anarquistas em Barcelona, Sabadell, Manresa e Madrid, com os respectivos registos, detenções, confiscação de material propagandístico e informático, para além de aproveitar a a ocasião para alienar e saquear, utilizando todo o corpo anti-distúrbios da Brigada Móvel dos Mossos de Esquadra, a antiga Kasa de la Montaña, um espaço ocupado que acaba de cumprir 25 anos.

Segundo a imprensa, evidenciando como sempre o seu papel de voz policial, o objectivo destas detenções é desarticular “uma organização criminosa com finalidade terrorista e de carácter anarquista violento”. Ainda que soe fácil repetir uma frase feita iremos, uma vez mais, fazê-lo: a única organização criminal que procura aterrorizar a gente com o seu carácter violento é o estado e os seus tentáculos: a imprensa, o aparelho jurídico, os seus corpos repressivos e políticos, sejam de que espectro forem. Porque é que não nos surpreendeu a actuação repressiva? Porque a esperávamos.

Não se trata de jogarmos aos oráculos nem nada disso, mas sim de saber ler entre linhas e às vezes de maneira literal, os acontecimentos. Tal como aconteceu com a detenção de outros companheiros no ano passado, desde há muito tempo que se orquestram vagas como as de 3a feira contra entornos libertários e anti-autoritários e, se bem que as outras vagas não foram tão grandes, evidenciavam um horizonte com situações deste tipo.

 

Operação “à italiana”

Desde há um par de décadas que o entorno anarquista da região vizinha de Itália vive, de tempos a tempos, com mais regularidade nos últimos anos, macro operações semelhantes à de 3a feira. Não só na forma de operações simultâneas, com registos em diferentes casas mas também com a utilização de nomes sonantes fáceis de lembrar e com um certo humor negro, como nesta em particular, denomina Pandora dado que , segundo a repetição na imprensa das suas fontes judiciais “era uma caixa que apesar dos numerosos sustos que apanhávamos não havia maneira de abrir”. Com “numerosos sustos” fazem referência a diversas acções que aconteceram nos últimos anos em todo o território do estado espanhol. Voltando às operações italianas, não será preciso lembrar os nomes de algumas ocorridas nos últimos anos, como a Operação Thor, cujo nome aludia à acusação de uma série de ataques com martelos a caixeiros automáticos e outras agências bancárias, a Operação Ixodidae, que faz referência ao nome técnico da família das carraças, a forma como chamavam os fascistas aos comunistas e anarquistas, ou outras como Osadia, Cervantes, Nottetempo,etc.

Para além do procedimento e da nomenclatura, um outro factor que nos faz lembrar muito o país vizinho é o papel da imprensa, a qual também nos ajudou a vislumbrar o que se avizinhava. Desde há aproximadamente 3 anos, ou até um pouco mais, a imprensa espanhola começou uma campanha para preparar o terreno de tal maneira que operações como estas sejam não só possíveis como também previsíveis. Assinalando entornos, inclusivamente espaços ou pessoas com nomes e apelidos, espaços, colectivos, etc, o trabalho para construir uma imagem caricaturizada e um tanto bizarra duma inimigo interno, se bem que desde há décadas habitual, nos últimos anos adoptou um carácter muito específico, o “anarquista violento”, o “insurreccionalista”, o “anti-sistema que se infiltra nos movimentos sociais”, etc.

O ano de 2010 foi um ano glorioso para o Estado chileno. Para além de ser eleito presidente o empresário e a quarta fortuna do país o direitista Sebastian Piñera, orquestra-se uma operação policial, mediática e judicial, contra o entorno anti-autoritário que resultou  numa dezena de registos e detenções, conhecida como Operação Salamandra, que popularmente se denominou como “Caso Bombas” ao estar baseada na investigação de uma série de atentados explosivos ocorridos nos anos anteriores e a criação, a partir da imaginação policial, duma macroestrutura hierárquica de uma suposta rede encarregada de todas essas detonações: um circo que, não só debilitou a imagem do Estado exposto ao ridículo, como tornou evidentes os toscos procedimentos de investigação, onde se incluíam a falsificação de prova, a chantagem, a pressão para conseguir informadores ou “arrependidos”, o acaso, etc. O processo terminou com a absolvição de todas as imputadas e com uma sede de vingança do estado Chileno contra o entorno e as pessoas investigadas. Um ano depois de finalizada a farsa do “Caso Bombas”, e através duma operação, desta vez deste lado do charco, os ministérios, os tribunais e as policias espanholas e chilenas trabalharam conjuntamente num novo caso. Mónica Caballero e Francisco Solar, ambos ex-processados no “Caso Bombas” são detidos em Barcelona, onde viviam nesse momento, conjuntamente com outras 3 pessoas que logo foram postas fora do caso, acusadas da colocação de um artefacto explosivo na Basílica del Pilar em Zaragoza, de conspiração para uma acção semelhante e pertença a uma suposta organização terrorista. Estes companheiros encontram-se actualmente em prisão preventiva, aguardando um julgamento que não sabemos quando será, e que tampouco sabemos o que alterará no seu processo esta nova vaga repressiva.

A situação é mais ou menos sabida por todas e duma coisa estamos seguros, as recentes detenções servem para dar corpo a um caso que, por si só, não se sustém.

 

Coincidência?

Poucas horas antes das detenções de 3a feira o governo espanhol, através dos seus meios, fazia eco de que os “ministérios do Interior de Espanha e Chile abrem uma nova fase de colaboração reforçada na luta contra o terrorismo anarquista”. Na passada 2a feira 15 de Dezembro, o ministro do Interior espanhol, Jorge Fernández Diaz, reuniu-se no Chile com o vice-presidente e também ministro do Interior chileno Rodrigo Peñailillo, no Palácio de La Moneda, sede do governo, em Santiago do Chile. “Na luta contra o terrorismo, o Chile encontrará em Espanha um sólido aliado”, vangloriava-se em espanhol, enquanto era condecorado com a Grande Cruz da Ordem do Mérito do Chile, “a máxima distinção do país ao mérito civil” segundo a imprensa, troféu que o Estado chileno atribui neste caso pelo trabalho policial e como prémio pela detenção dos companheiros Mónica e Francisco no ano passado.
Para além de elogios e prémios, o comerciante Fernández foi vender um pouco do seu: instrução  policial, judicial, material repressivo variado, etc.

 

E o que se seguirá…

Qual será o seguinte passo repressivo? Não sabemos. Neste momento pouco se sabe como se encontram o nossos companheiros e companheiras, quais são as acusações exactamente, a que medidas repressivas serão submetidas, se entrarão em prisão preventiva ou não, etc.

O certo é que esta operação não é um acto isolado mas sim mais um elo duma cadeia. Uma cadeia repressiva, por vezes brutal por vezes subtil, na que entram desde novas leis (não é preciso pensar mais além do que a recente Lei Mordaça), o assédio aos sem papeis através de cada vez mais rusgas racistas, a brutalidade policial, ou mesmo a aspiração de gerir a miséria e administrar a repressão, que é tudo o que faz o estado, por parte duma pseudo-esquerda (com Podemos à cabeça) que é, de forma cada vez mais evidente, uma paródia de si mesma. Despejos, porrada, fascismo, endurecimentos legais e punitivos de todo o género, ilusões nacionalistas e sociais-democratas, isso é o que no presente se nos irá deparar. Não há que esperar nada pior porque o pior nunca se foi. O leque de possibilidades do antiterrorismo espanhol é uma arca onde tudo cabe. Encontra-se aí, à vista, para nos recordar que, para o Estado, lutar é sinónimo de terrorismo. Funciona como um espantalho. Iremos-nos assustar?

O Estado e os seus agentes dizem ter aberto a caixa de Pandora. Na mitologia grega Pandora é o equivalente à Eva biblíca. Com a misoginia característica de ambas as mitologias, Pandora abre a sua caixa e, da mesma forma que Eva come a sua maçã, liberta todos os males que ali se encontram.

Nós somos capazes de criar a nossa própria narração e contornar por onde melhor nos pareça a sua merda mitológica. A nossa história é diferente, A “caixa” que abriu esta operação repressiva chama-nos a actuar, a não baixar a guarda, a estar atentas aos passos seguintes deste conto. Faz-nos pensar e repensar que mundo queremos e qual é a distância entre esse e este mundo.

Leva-nos a ver a urgência de actuar, de seguir para a frente.

As companheiras e os companheiros detido formam parte de diferentes projectos, espaços, colectivos, etc, e é muito importante que isto não caia, que a ruína (em todos os sentidos) a que costumam levar este tipo de situações não gere impotência e um sentimento de paralisia. Sempre dizemos que “a melhor solidariedade é continuar a luta”. Sim, mas que significa isso na prática? Também bradamos que “se tocam a uma tocam-nos a todas”. Isto ficou claro na respostas e protestos que houve em diferente pontos, assim como o calor incondicional das companheiras que estão fora.

De uma coisa podemos estar seguras e isso é que as companheiras e companheiros detidos podem sentir esse calor que ultrapassa as grades e o isolamento, porque é esse mesmo calor que elas, em diferentes ocasiões, também souberam dar.

Barcelona, 18 dezembro 2014


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