A industrialização da Saúde
O debate sobre a Saúde, levado a cabo pela política convencional, centra-se na aparente oposição entre serviço público e serviço privado. Entre híbridos e variantes, apresenta-se genericamente, por um lado, na defesa do Estado Social e do SNS (Serviço Nacional de Saúde), reclamando o acesso universal aos cuidados de saúde. Sustenta-se na crença de que o Estado é insubstituível e deve a qualquer custo construir as estruturas e mecanismos necessários à garantia desse direito. Isto pressupõe um modelo de planeamento centralizado, sendo a gestão de recursos e necessidades decidida por elites administrativas, de carácter político. Uma das características deste sistema é a permeabilidade ao alojamento de interesses corporativos e à corrupção 1, que a par da sua estrutura hierárquica e da burocracia, limitam a diversidade de serviços e afastam os utentes dos centros de decisão. Não são portanto os princípios subjacentes ao SNS que se questionam, mas a sua implementação através da colectivização forçada e a consequente distorsão dos seus objectivos. Em todo o caso, esse julgamento deve ser feito por quem vive sobrecarregado de impostos que sustentam o Estado e a classe governativa, e tem que fazer contas para pagar medicamentos, ou deslocar-se a uma consulta que fica a quilómetros de distância, ou esperar meses por uma cirurgia.
Do outro lado, descridibiliza-se o SNS, de forma a beneficiar os interesses de grupos privados da área da Saúde e dos Seguros. O objectivo é ilusoriamente reduzir custos ao Estado e transferir competências para instituições privadas de carácter lucrativo, tanto na provisão de serviços como no financiamento. As propostas deste modelo passam pela constituição de seguros de saúde, organização de grandes hospitais privados com múltiplas valências, e contratualizações com o Estado. Esta perspectiva tem encontrado terreno fértil na actual crise económica e nas medidas de austeridade impostas pelo memorando da Troika 2. Os seus defensores elogiam ao mesmo tempo o assistencialismo, já conhecido em Portugal, desde os tempos do Estado Novo 3. Contrariamente ao que muitas vezes é dito sobre este modelo de privatização, é igualmente necessário um Estado forte e regulador. Trata-se de conceder privilégios através de parcerias, subsídios, concessões e licenças que permitem criar um sistema paralelo, monopolizado por grandes empresas. A redução de riscos assegurada pelo Estado nas parcerias público-privadas é um desses exemplos, onde são socializados custos e privatizados lucros. Sendo o principal objectivo a satisfação dos accionistas, os objectivos não são directamente orientados à satisfação dos utentes. Estes saem duplamente prejudicados, pois o seu poder de decisão e negociação é feito por intermediários, como são as seguradoras ou o Estado.
As críticas apontadas ao sistema de saúde público, resultantes da gestão e planeamento centralizado, servem igualmente para um sistema de saúde privatizado, sob o domínio económico de grandes corporações. Ambas as perspectivas partilham a mesma cultura institucional, dependente de uma superestrutura administrativa e dos efeitos provenientes da sua natureza hierarquizada, separando o trabalho e a qualidade de serviço das suas motivações intrínsecas. A disponibilidade de cuidados de saúde é, neste modelo organizativo, sujeita a procedimentos, tarefas e funções normativas, bem como a um interminável número de certificados e acções de fiscalização. O hospital adquire as características da fábrica, transformando os cuidados de saúde num produto, modelado por estatísticas e indicadores financeiros.
As associações públicas profissionais trabalham em parceria com o Estado no sentido de regular as profissões, através de licenciamentos e da aprovação de leis nacionais. Cada profissão é representada exclusivamente por uma associação pública profissional, denominada por “ordem”, no caso das profissões condicionadas à obtenção de habilitações académicas do nível de licenciatura. À “ordem” é atribuída a função de regular o acesso e o exercício da profissão, a elaboração de normas técnicas e deontológicas, e um regime disciplinar.
Na área da saúde, estes requisitos, ao limitarem o número de pessoas que praticam várias profissões médicas e o tipo de serviços prestados, aumentam a receita dos profissionais de Saúde, e inflacionam artificialmente o valor dos seus serviços. Um dos exemplos, bem conhecido em Portugal, de claro interesse corporativo, tem sido a luta travada há anos pela OM (Ordem dos Médicos) contra o reconhecimento e pela supervisão da MTC (Medicina Tradicional Chinesa). Segundo a OM, a MTC é uma terapêutica não convencional e os seus profissionais devem “actuar exclusivamente sob a responsabilidade de uma direção clínica médica ou em resposta a uma prescrição médica” 4. Apesar das diligências da OM, a última lei aprovada 5 que regulamenta as terapêuticas não convencionais, permite o exercício da MTC sem a supervisão de um médico convencional ou prescrição médica. Por outro lado, esta regulamentação implica a supervisão do Estado e um enquadramento legal igualmente restritivo.
Outro exemplo é a posição da OM relativamente aos partos domiciliários. Sobre o assunto, o Colégio de Pediatria da OM emitiu um comunicado 6 alertando para riscos, perigos e imprevistos, desaconselhando o parto em domicílio, e argumentando que para esse efeito “seriam necessários meios logísticos muito sofisticados e dispendiosos”, onde acrescenta, “solicitamos aos órgãos dirigentes da Ordem dos Médicos que tomem nesta matéria uma posição firme e esclarecida em favor destes jovens cidadãos indefesos e em favor do bom senso”. São algo curiosas estas afirmações, quando a gravidez e o parto são fenómenos fisiológicos e naturais. Isto não significa que não existam riscos associados. No entanto, esta argumentação promove um modelo de assistência hospitalar, excessivamente medicalizado, condicionado por procedimentos e protocolos, diminuindo o papel dos enfermeiros, parteiras, doulas, e sobretudo o direito de escolha e empoderamento das mulheres grávidas. Os conselhos destes médicos especialistas e o seu paternalismo, acabam por fomentar o medo e a insegurança, e a dependência do hospital. Os partos “normais”, de baixo risco, seguem o mesmo procedimento protocolar do que os partos com complicações. Actualmente, Portugal é um dos países da Europa onde a taxa de cesarianas é mais alta 7, aproximando-se dos 35%, mesmo quando a própria OMS (Organização Mundial de Saúde) recomenda uma taxa média não superior a 15% 8.
Há outros instrumentos que influenciam a oferta dos cuidados de saúde, entre os quais a limitação do numerus clausus nas faculdades, ou o elevado custo dos anos de formação nos cursos de medicina e enfermagem. Através destes e outros mecanismos legais, as associações públicas profissionais e o Estado têm o poder de controlar a oferta, limitando a competição, criando escassez artificial. O cartel das licenças e dos regulamentos funciona em benefício próprio, dando a aparência de estar ao serviço dos utentes.
Os Fármacos e as Patentes
Um dos exemplos clássicos de intervenção do Estado no mercado em prejuízo de utentes e potenciais fabricantes prende-se com a garantia dos DPI (Direitos de Propriedade Intelectual). O titular de uma patente sobre determinado produto, tem o monopólio da produção, venda e exploração desse mesmo produto, eliminando a concorrência e controlando os preços. No caso da indústria farmacêutica, este mecanismo, de claro proteccionismo económico, ao impor escassez artificial, dificulta o acesso a medicamentos, diagnósticos e vacinas, com especial agravante para os países mais pobres, onde se morre com doenças facilmente tratáveis. Segundo dados da OMS, um terço da população mundial não tem acesso regular a medicamentos essenciais 9.
A adopção do acordo TRIPS 10 em 1994, e a criação da OMC (Organização Mundial do Comércio), trouxeram à regulação de patentes novas dimensões, colocando a protecção da propriedade intelectual como premissa nos tratados de comércio internacional. Esta uniformização de leis tem tido elevado impacto na vida económica e social dos países aderentes, com especial incidência nos seus sistemas de saúde 11. Antes do acordo TRIPS, alguns dos países onde não existiam patentes, como o Brasil, Argentina, Egipto e Coreia do Sul, tinham a sua própria indústria nacional de cópia de medicamentos, sendo estes vendidos a preços consideravelmente mais baixos do que os originais. Neste processo de implementação de um sistema de patentes à escala mundial, e com o advento da biotecnologia, estabeleceu-se uma prática conhecida por biopirataria. Esta consiste na exploração, para fins comerciais, do conhecimento que os povos indígenas têm da natureza. Assim são criadas patentes com base em material genético ou conhecimentos de terapias tradicionais, como foi o caso do Beberu ou do Ayahuasca 12.
Os defensores das patentes dão especial relevância ao argumento de que é necessário um retorno pelo investimento em I&D (Investigação e Desenvolvimento), de forma a incentivar o desenvolvimento tecnológico, no caso do sector farmacêutico, à descoberta de novos fármacos. No entanto, é omitido o facto de que uma boa parte dessa investigação é financiada pelo Estado, isto é, com dinheiro dos contribuintes, através de fundos para a investigação, parcerias com universidades, hospitais e institutos tecnológicos. Isto é facilitado porque boa parte da investigação médica é levada a cabo em instituições públicas e privadas de renome, sendo os seus directores ao mesmo tempo, gestores e consultores de empresas farmacêuticas 13.
As patentes impulsionam a criação de novos fármacos patenteados, afastando do mercado os genéricos, através de grandes investimentos em campanhas de promoção e publicidade. Muitos desses fármacos consistem em alterações menores da composição química de fármacos já existentes. Um desses exemplos é o tão elogiado Zebinix, desenvolvido pela Bial, sendo o primeiro fármaco de patente portuguesa. Após vários anos de desenvolvimento, o Zebinix foi lançado no mercado em 2010 por um preço 10 vezes superior aos seus equivalentes, com uma comparticipação de 90% para o regime normal e 95% para o regime especial. Na época foram questionadas as suas características inovadoras e a aprovação da sua comparticipação, tendo sido desencadeada uma investigação policial ao próprio Infarmed 14.
Alternativas ao labirinto da escassez artificial
Surgidas no século dezanove, muito antes dos actuais modelos de previdência se imporem, as associações mutualistas de classe 15 funcionavam como estruturas financeiras de suporte aos seus membros e familiares em situações de desemprego, doença, acidente ou morte. Estas associações, inicialmente destinadas à protecção dos trabalhadores, contribuíram para a formação dos primeiros sindicatos e organizações reivindicativas. Faziam parte dum movimento emergente, onde germinava a necessidade de auto-organização e a criação de instituições próprias, organizadas voluntariamente desde as suas bases. Em Portugal, aquelas que sobreviveram ao corporativismo do Estado Novo e às promessas da democracia, são hoje, com algumas excepções, orientadas à filantropia, tendo perdido a relevância do passado.
De modo semelhante, a população negra dos Estados Unidos, tem desde essa época, uma vasta tradição de experiências cooperativas 16. Sujeita à discriminação racial e à exclusão, a melhoria da sua condição social e económica motivou a criação de múltiplas organizações de base, entre as quais fraternidades, associações mutualistas e cooperativas. Os seus objectivos eram diversos e incluíam a implementação de sistemas de crédito para criação de emprego ou sistemas de financiamento para o acesso a cuidados de saúde. Mais recentemente, a Ithaca Health Alliance, uma cooperativa criada na cidade de Ithaca em 1997, desenvolveu um fundo para aliviar custos de saúde aos seus membros, especialmente aqueles que não têm seguro de saúde. Mesmo sendo um projecto local, é de elevada relevância num país onde aproximadamente 15% da população não qualquer protecção 17. No entanto, estas experiências estão centradas apenas na questão financeira. Face aos excessivos custos da oferta, o problema mantém-se. É igualmente necessário um controlo cooperativo da provisão.
As clínicas e farmácias sociais surgidas na Grécia nos últimos anos são uma resposta civil ao processo de implosão do sistema de saúde do país. Os efeitos da crise manifestaram-se de forma quase catastrófica no sector da saúde, encerrando hospitais e centros médicos, despedindo profissionais, reduzindo ao mínimo os cuidados de saúde disponíveis. Muitas destas clínicas e farmácias surgiram inicialmente para auxiliar pessoas excluídas do sistema de saúde, em grande maioria imigrantes. Com o acentuar da crise, é cada vez maior o número de gregos que ficam sem cobertura médica, tendo igualmente de recorrer a estes serviços. Sustentadas por trabalho voluntário e donativos de recursos materiais, estas iniciativas são geridas colectivamente pelos voluntários, independentemente da sua função ou qualificação, prestando cuidados diversos que incluem clínica geral, pediatria, tratamentos dentários, entre outros. O facto de muitos destes voluntários serem médicos que trabalham em hospitais públicos e se disponibilizam em horário pós-laboral, ou estarem em situação de desemprego, e a dependência logística de donativos, limitam a sustentabilidade destas iniciativas a longo prazo. É necessário que a solidariedade alcance a economia.
Um dos erros mais comuns, quando se tentam encontrar alternativas ao Estado, é o de se pensar que essas alternativas passam por um modelo de organização único, à mercê dos interesses de empresas privadas, motivadas exclusivamente pelo lucro e sustentadas pela exploração de trabalho assalariado. Contrariando esta ideia, a história mostra que em momentos de emergência social, situações de catástrofe, ou períodos revolucionários, a solidariedade, a cooperação e o apoio mútuo se afirmam como possibilidades à margem do poder. Não obstante, a crise na Saúde é antes de tudo, o resultado de uma miríade de privilégios, concedidos pelo Estado, a protecção de um negócio extremamente lucrativo. Este monopólio afecta tanto o financiamento como a provisão, inflacionando os custos da medicina, tornando-a artificialmente lucrativa. Qualquer contributo realista para o debate sobre a Saúde terá de começar pelo questionamento dos actuais interesses estabelecidos.
Notes:
- A título de exemplo, ver a notícia, 80 médicos arguidos prescreviam aparelhos auditivos a troco de dinheiro e férias, Jornal Público, 11-07-2014. ↩
- Ver texto de Isabel do Carmo: A Troika, o memorando e os serviços de Saúde, publicado no livro Serviço Nacional de Saúde em Portugal, as ameaças, a Crise e os Desafios (vários autores, Almedina, 2012). ↩
- Ver estudo de Jorge Alves e Marinha Carneiro: Estado Novo e Discurso Assistencialista, publicado na revista Estudos do Século XX. ↩
- Nota justificativa da Ordem dos Médicos, enviada para o Grupo de Trabalho da Comissão de Saúde, a propósito das alterações à proposta de lei 111/XII/2ª relativa à regulamentação da prática das Terapêuticas Não Convencionais (TNC). ↩
- Lei n.º 71/2013, de 2 de Setembro. Regulamenta a Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto, relativamente ao exercício profissional das atividades de aplicação de terapêuticas não convencionais. ↩
- Ver texto, Posição do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos sobre Partos no Domicílio, disponível no site da Ordem dos Médicos. ↩
- Health at a Glance 2013: OECD Indicators, publicação da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico). ↩
- Monitoring emergency obstetric care, a hand book, World Health Organization, UNFPA, UNICEF, AMDD, 2009. ↩
- The World Medicines Situation 2011 – Access to Essential Medicines as Part of the Right to Health, relatório da Organização Mundial de Saúde. ↩
- Do inglês: Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). ↩
- Comércio Internacional, Patentes e Saúde Pública, Monica Steffen Guise JURUA, 2007. ↩
- A Protecção da Propriedade Intelectual e a Biopirataria do Patrimônio GenéticoAmazônico à luz de Diplomas Internacionais, Helano Márcio Vieira Range, Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.9, n.18, 2012. ↩
- Por exemplo, Amílcar Falcão, consultor da Bial, é vice-reitor da Universidade de Coimbra, investigador e líder do Grupo de Farmacometria do Centro de Neurociências e Biologia Celular. ↩
- Polícia Judiciária no Infarmed por causa de medicamento da Bial. Jornal Público, 30-05-2012. ↩
- O termo Associação Mutualista abrange um movimento heterogéneo com diferentes objectivos e motivações, incluindo associações destinadas à caridade e filantropia. Neste contexto, refere-se exclusivamente às associações mutualistas criadas por trabalhadores, por eles geridas. ↩
- Cooperative Ownership in the Struggle for African American Economic Empowerment, Jessica Gordon Nembhard, 2004 ↩
- Health Insurance Highlights 2012, US Census Bureau. ↩
É pena que Júlio Silvestre depois desta análise do nosso sistema de saúde , não tenha sugerido uma proposta de solução que não deixe o leitor entregue à conclusão habitual: se é tudo tão mau então mais vale o Estado tomar conta da coisa!
Semelhante ao nosso sistema só existem, salvo erro, na Europa ocidental dois paises: Inglaterra que o copiou no pós guerra da U. Sovietica e Espanha. Os demais paises têm todos soluções assentes na liberdade de escolha.
Para isso são necessárias três condições fáceis de implementar:
1 – Negociações previas entre organizações de prestadores de cuidados de um lado e consumidores e os seguros sociais do outro para acordar preços justos.
2 – Criação dos seguros sociais (não os actuais seguros)
3 – Concessão liberdade de escolha e liberdade de prestação.
Este regime que existe tendencialmente nos países da Europa ocidental permite conciliar a liberdade com a solidariedade e a iguldade de direitos e de acesso, evitando perdas e portanto embaratecendo o sistema e garantindo a todos independentemente dos seus recursos um acesso livre e gratuito no momento da pratica do acto a todos os cuidados de saude.
O custo do seguro social deve ser deduzido nos impostos e pago pelo Estado àqueles que não podem (actualmente o Estado já paga). No final fica mais barato a todos.
Como foi dito o actual sistema gera perdas. Veja-se que uma consulta pex. custa no sistema estatizado cerca de oitenta euros.
Todavia em qualquer outro sistema onde os preços são negociados não custa nem metade.E por aí fora.
O mais grave porém nestes sistemas inquisitoriais, é a negacão da liberdade de escolha e portanto da possibilidade de uma relação verdadeiramente humana entre médico e doente. Gentil Martins, médico insigne bem conhacido dizia que sem liberdade de escolha não havia verdadeira medicina.
Jose Brandão Pedro
[…] Portugal, només en interessos, gastarem prop de 8 mil milions d’euros, que és més del que es gasta amb el Servei Nacional de Salut. Estem en una situació insuportable. La inversió pública amb relació al PIB ha disminuït als […]