Portugal e a Guerra Civil Espanhola
O envolvimento directo de Salazar (e da ditadura de que foi o máximo expoente) no golpe militar de 17 de Julho de 1936 contra a IIª República espanhola tem sido minimizado pela historiografia oficial, alegadamente por falta de provas documentais. Contudo, uma análise dos factos conhecidos, refrescados pela divulgação recente das reuniões mantidas pelo ditador, no próprio dia do golpe, às 22:45, com Ricardo Espírito Santo, presidente do BES, o banco que desempenharia um papel fundamental no financiamento da sublevação fascista, e, no dia seguinte, 18 de Julho, com o chefe dos conspiradores, exilado em Portugal, General Sanjurjo, tornam evidente esta implicação.
A proclamação da IIª República espanhola em Abril de 1931, que pôs fim à monarquia depois da ditadura de Primo de Rivera, surpreende a Ditadura Nacional nas tarefas de controlo da “Revolta da Madeira”. Os republicanos portugueses exilados das revoltas que se tinham sucedido no nosso país depois do golpe militar de 28 de Maio de 1926, até ali refugiados em Espanha e França, passaram a contar com o apoio dos novos governantes espanhóis na luta contra o regime ditatorial português. Conscientes do perigo que representava a nova situação para o seu futuro, os responsáveis pela ditadura portuguesa puseram em marcha uma campanha avivando o anti-espanholismo na opinião pública portuguesa 1.
Esta campanha essencialmente propagandística, levada a cabo pela generalidade dos jornais e rádios portugueses, viria a conhecer um interregno, depois da vitória da coligação de direita de Gil Robles e Alejandro Lerroux nas eleições espanholas de 1933, de que resultaria, inclusive, o reconhecimento oficial da IIª República por parte de Portugal, mas viria a ser retomada com mais afinco quando, em Fevereiro de 1936, a Frente Popular, coligação de forças de esquerda e independentistas, ganhou as eleições legislativas no Estado espanhol. Desta vez, ao contrário das eleições de 1933, os anarquistas e anarco-sindicalistas organizados na FAI, Federação Anarquista Ibérica, e na CNT, Confederação Nacional do Trabalho, não deram indicação abstencionista.
Esta vitória eleitoral abriu as portas ao desencadear de um processo pré-revolucionário raramente referenciado quando se fala da Guerra Civil espanhola. Os eleitores que tinham levado a esquerda ao poder já não eram os mesmos que a tinham votado em 1931. Algo tinha mudado, tinham mais experiência. Não esperaram que o novo governo decretasse uma amnistia, passaram à acção e, de imediato, abriram as portas das cadeias a oitenta mil presos, grande parte deles recluídos na sequência da repressão à greve geral revolucionária de 1934. Os camponeses não esperaram o reinício do debate da reforma agrária, lançaram-se a ocupar as terras. Durante o mês de Março, noventa mil camponeses da Extremadura, Andaluzia e La Mancha ocuparam latifúndios, passando a trabalhar a terra em comunidade. Assim se iniciava uma revolução pacífica, potenciada pela generalização das colectivizações da terra, minas, indústria, transportes e alguns serviços básicos após o fracasso do golpe militar fascista em Julho de 1936, que manteria rasgos revolucionários durante o primeiro ano da Guerra Civil 2.
A partir de Fevereiro de 1936, em paralelo com a campanha de propaganda, Salazar passou a apoiar e a colaborar com opositores espanhóis na preparação de um golpe militar “para o derrube do regime republicano espanhol e de defesa da sua ditadura” 3. No Estoril, encontrava-se exilado, depois de um pronunciamento militar fracassado em Agosto de 1932, do qual fora indultado pelo governo republicano no ano seguinte, o seu mentor, General Sanjurjo Sacanell, coordenador de um grupo de militares, onde se destacavam os Generais Emilio Mola, planificador do golpe e chefe das operações no Norte de Espanha, e Francisco Franco que, à cabeça do exército de África primeiro e como “caudilho” depois, desempenhou o papel central nos acontecimentos 4.
A 17 de Julho de 1936, Mola pôs em marcha o plano do golpe, que fracassou em Madrid, Valência, Catalunha e País Basco, graças à resistência do movimento revolucionário espanhol - nomeadamente aos membros da CNT-FAI e da UGT, que ocuparam as ruas e cercaram os quartéis afectos ao golpe - e dos militares que se mantiveram fiéis à República. A sublevação teve apenas êxito na Galiza, Castilha e Leão, Aragão, Navarra, Maiorca e Sevilha. Foi neste cenário que se iniciou a Guerra Civil, cujos combates continuaram até à derrota das forças republicanas e revolucionárias a 1 de Abril de 1939, prolongando-se na forma de guerrilha até aos anos sessenta e cujas sequelas se mantêm vivas nos dias de hoje.
O conflito em Espanha desencadeou-se num momento crucial de consolidação da ditadura instalada dez anos antes em Portugal, que conhecera a última de uma série de revoltas havia pouco mais de dois anos, em 18 de Janeiro de 1934, e do seu desfecho dependia a sobrevivência do Estado Novo. Não surpreende por isso a intervenção salazarista a favor dos militares fascistas sublevados nos primeiros meses de guerra, durante os quais o Governo de Lisboa mantinha relações formais com o Governo da República espanhola ao mesmo tempo que equipava, financiava alimentava e defendia nos fóruns internacionais os militares que o tentavam derrubar. Surpreendente é o facto destas actividades terem sido realizadas como se de actos clandestinos se tratasse, ao ponto de delas praticamente não se encontrarem provas documentais.
Apoio Financeiro
Desta dificuldade faz eco José Ángel Sánchez Asiain, autor de uma volumosa obra sobre o financiamento da Guerra Civil espanhola, onde dedica um capítulo ao papel de Portugal na sublevação de 18 de Julho de 1936, “indiscutivelmente houve ajudas financeiras à sublevação a partir de Portugal. Foram facilitadas nas primeiras semanas da guerra, quando o financiamento era muito escasso. Desgraçadamente, se em geral as ajudas financeiras são difíceis de documentar, no caso português, com excepção dos seus créditos bancários, são-no muitíssimo mais, muito pouco transpareceu, especialmente numa das suas mais importantes rubricas, que sem dúvida teve que ser o colectivo dos grandes empresários” 5.
Sánchez Asiain, professor universitário, economista e banqueiro, foi durante mais de vinte anos presidente do conselho de administração do Banco de Bilbao, cargo que lhe terá facilitado algumas das suas investigações. Segundo ele, depois de iniciada a sublevação, “Salazar dirigiu-se aos banqueiros e aos grandes empresários portugueses para lhes explicar a necessidade e urgência de ajudar os militares que se tinham levantado em armas contra a República”, argumentando que, com “a extensão da revolução e a anarquia com que ali se actuava, os projectos económicos e sociais que a Frente Popular estava a dinamizar, terminariam por estender-se a Portugal se a sublevação não triunfasse em Espanha”. Este autor informa não ter conseguido documentar do ponto de vista formal, até ao momento, a existência de tal convocatória, baseando esta informação na “tradição oral, apoiada na mais absoluta lógica”, mas não tem nenhuma dúvida em afirmar que Salazar estava em permanente contacto com “os conspiradores” e os banqueiros: “No próprio 17 de Julho de 1936, à estranha hora das 22:45, recebeu o presidente do Banco Espírito Santo, Ricardo Espírito Santo, e no dia seguinte, 18 de Julho, recebeu o general Sanjurjo e o Marquês de Quintanar” 6. Outro autor, Filipe Ribeiro de Meneses, acrescenta à lista dos presentes nesta reunião o director da PIDE, Capitão Agostinho Lourenço, e o Ministro do Interior, Mário Pais de Sousa 7. Já em 2007, Jaime Nogueira Pinto, no livro “Salazar: O Outro Retrato”, se referira às “mensagens muito claras” dirigidas pelo ditador “aos grandes empresários portugueses”, no princípio da Guerra Civil, “para que ajudassem os sublevados”. Referindo-se a Alfredo da Silva, o maior industrial português com interesses na banca, seguros, construção e reparação naval, que viria a cimentar a sua cumplicidade com Salazar na sequência deste apoio, e a Manuel Bulhosa, que tinha feito uma grande fortuna com o petróleo.
Na obra de Sánchez Asiain, a Sociedade Geral, empresa fundada por Alfredo da Silva, é referida como tendo aberto um crédito, no valor de 175.000 libras esterlinas, logo no início de Agosto de 1936, a favor de Andrés Amado, Gil Robles e Gabriel Maura, representantes do governo de Burgos em Lisboa. Mas a lista revelada não se fica por aqui. Aparecem também referências a operações de financiamento ao longo do conflito por parte do Banco Totta, da Caixa Geral de Depósitos, do Banco Comercial, Casa Viana e Fonseca, do Banco Nacional Ultramarino e do Banco Espírito Santo. Este último, entre outros apoios, passou a remeter às dezenas de representantes diplomáticos do governo de Burgos verbas para o seu funcionamento 8.
Apoio logístico e material
Desde o início do conflito até meados de Agosto, altura em que toda a área de fronteira com Portugal foi isolada e ocupada pelas forças golpistas, os portos, as estradas, a linha férrea e os campos de aviação portugueses serviram de pontos de passagem e ligação entre as forças dos exércitos sublevados no Norte e no Sul da zona ocidental da Península. Por aqui passou também uma parte importante do abastecimento de material de todo o tipo, das armas ligeiras aos aviões, para as tropas golpistas, fornecidos pela Alemanha e pela Itália, tendo Portugal contribuído directamente com toneladas de munições e outro armamento, fazendo do nosso país a retaguarda de um exército sublevado em campanha 9.
À medida que o exército comandado por Franco progrediu de Cádis em direcção ao Norte e conquistou as cidades e vilas dos territórios raianos da Andaluzia e da Extremadura espanhola, os civis e milicianos republicanos, que conseguiam cruzar a fronteira buscando refúgio no nosso país, encontravam um dispositivo montado pela PIDE, GNR, Guarda Fiscal e forças militares, com instruções claras de acção, que os devolvia às forças fascistas, apesar de saberem que os “entregados” seriam sumariamente fuzilados.
Nos dias seguintes à batalha de Badajoz, depois da conquista pelas tropas fascistas, seriam fuzilados de três a quatro mil habitantes, (não está apurada a cifra total), a maioria militares fiéis à República, militantes dos partidos de esquerda, anarquistas e sindicalistas da Federação Espanhola dos Trabalhadores da Terra, desta que era considerada a cidade piloto da Reforma Agrária. Alguns deles tinham procurado refúgio em território português, depois de detidos pela GNR foram devolvidos pela PIDE na fronteira às tropas fascistas e aos falangistas. A praça de touros da cidade e as ruas adjacentes ficaram cobertas de cadáveres, naquele que foi considerado um dos maiores massacres da guerra civil, testemunhado por jornalistas estrangeiros, entre eles Mário Neves, do Diário de Lisboa.
O mesmo se passava na restante área raiana, de Valença do Minho a Vila Real de Santo António. Os cerca de mil republicanos, oriundos das povoações espanholas vizinhas de Barrancos, confinados, em Agosto, nos “campos de refugiados” improvisados nas Herdades da Coitadinha e das Russianas, e que, em Outubro de 1936, seriam transportados de barco, a partir de Lisboa, para a zona republicana, foram uma excepção à política seguida por Salazar com os refugiados, tendo ficado a dever-se este desfecho à coragem do responsável do campo, que desrespeitou as ordens, vindo a ser penalizado por isso 10.
Apoio diplomático e propaganda
A diplomacia portuguesa pôs-se desde o primeiro momento ao serviço do Alzamiento Nacional sem condições. Acusava nos fóruns internacionais o Governo da II República de promover “a revolução internacional” e de ser “um satélite de Moscovo”, defendendo a legitimidade do golpe de Estado fascista, fazendo a propaganda do franquismo e chegando ao ponto anedótico de negar o bombardeamento aéreo de Guernika, pelos aviões alemães e italianos. Ao mesmo tempo, em diferentes países do mundo, os diplomáticos portugueses colaboravam com os agentes franquistas na defesa da sua causa ante os respectivos governos e a opinião pública internacional 11.
Apesar da importância de todos os apoios proporcionados, para muitos autores, a principal intervenção portuguesa no conflito foi de natureza politico-ideológica e revelar-se-ia crucial para credibilizar no exterior o movimento rebelde. É neste contexto que pode situar-se a oposição sistemática a todo o tipo de proposta de mediação entre os sublevados e o governo republicano por parte do Governo português. Uma proposta franco-britânica nesse sentido, recebeu em Dezembro de 1936 a oposição formal de Salazar em termos esclarecedores sobre o que estava em jogo, ao considerar as mediações no conflito espanhol “incompreensíveis, se, como supomos, ali se assiste à luta de duas civilizações ou de uma civilização contra a barbárie” 12. Três meses depois a diplomacia portuguesa intervinha junto do Vaticano, no que pode ser qualificado de “puxão de orelhas” ante a debilidade da igreja católica, concretamente quando suspeitam que a Santa Sé se prepara para apoiar a proposta franco-britânica de mediação do conflito de Maio de 1937.
Internamente fora posta em marcha uma campanha de propaganda, controlada pelo Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), visando a mobilização da opinião pública portuguesa, através dos jornais, rádios e cinema, em cujos conteúdos colaboravam os principais intelectuais do regime, promovendo o elogio a Franco e cortando todas as informações que fossem prejudiciais para a imagem do bando insurrecto ou que favorecessem o bando leal à República. O Rádio Club Português e a Emissora Nacional aumentaram a potência de emissão e passaram a emitir também em castelhano, constituindo-se em emissores de rádio do exército franquista. Mais de trinta jornalistas e fotógrafos foram enviados pelos jornais portugueses para cobrir a guerra, todos para o território do bando sublevado.
Pacto de não-intervenção
A partir de meados de Agosto de 1936 vigorava um acordo multilateral de não intervenção na Guerra Civil, concebido pelo governo de esquerda da Frente Popular francesa e acolhido pelo governo conservador britânico, que tinha por objectivo evitar a internacionalização do conflito num momento de máxima tensão na Europa, ao qual tinham aderido os vinte e sete países europeus (todos menos Andorra, Suiça Liechtenstein, Mónaco e Vaticano). Os países signatários deste Acordo de Não-Intervenção em Espanha, (Portugal seria o último a aderir, logo depois do exército fascista ter ocupado todo o território fronteiriço), comprometiam-se a “abster-se rigorosamente de toda a ingerência, directa ou indirecta, nos assuntos internos de esse país” e poibiam “a exportação, reexportação e trânsito para Espanha, possessões espanholas ou zona espanhola de Marrocos de toda a classe de armas, munições ou material de guerra”. Para o cumprimento do acordo foi criado em Londres, em 9 de Setembro de 1936, un Comité de Não-Intervenção no qual estavam representadas as principais potências europeias, incluídas Alemanha, Italia e União Soviética..
A iniciativa franco-britânica deste acordo de não intervenção conduziria ao desarmamento progressivo do exército republicano, impedido de reabastecer-se nos provedores tradicionais, e seria um contributo importante para a vitória dos fascistas dois anos e meio depois. Logo que o acordo foi assinado, a França suspendeu a venda de equipamento militar ao governo legítimo da República. Encerrou a sua fronteira com Espanha e iniciou uma campanha, desencorajando os seus cidadãos de irem apoiar a causa republicana. O mesmo apelo faria a Grã-Bretanha, o que não impediria milhares de franceses e ingleses de se juntarem a outros milhares de voluntários de cinquenta nacionalidades, que acorreram a Espanha para lutar contra o fascismo e apoiar aqueles que lutavam pela terra e pela liberdade.
Paralelamente, a Alemanha nazi, a Itália fascista e o Portugal salazarista, signatários do mesmo acordo de não-intervenção, não só não o cumpriram como massificaram o apoio aos sublevados espanhóis com equipamento militar e tropas, evidenciando a farsa que escondia a iniciativa franco-britânica. Antes de acabar o ano de 1936, a Alemanha dispunha já no território espanhol de um contingente de cerca de 5000 homens, entre instructores, pilotos e soldados, a Legião Condor, equipada com aviões, carros de combate e artelharia. A Itália, participava com o Corpo de Tropas Voluntárias, CTV, composto por 50.000 italianos, equipados com tanques, veículos blindados e artelharia (incluída a anti-aérea). Pelos portos e fronteiras de Portugal, durante 1936, passou uma parte importante deste apoio e do abastecimento ao exército fascista, ao ponto do nosso país figurar como o terceiro maior importador mundial de material de guerra neste período, pondo também a funcionar em dois turnos as fábricas de munições, explosivos e granadas, ao mesmo tempo que organizava o recrutamento de voluntários, os “Viriatos” 13, com soldo pago em Portugal, que se viriam a integrar aos milhares nas várias divisões do exército sublevado. O futuro da ditadura salazarista jogava-se no conflito espanhol, “de entre todos os outros países que apoiaram os dois bandos em luta, nenhum fez um esforço tão grande como o Governo português que viveu a Guerra Civil espanhola como um assunto interno” 14.
O papel da União Soviética
Com a evidência da violação do acordo por parte destes países, em Novembro de 1936 a União Soviética passa a fornecer material de guerra ao Governo republicano, uma intervenção que se lhe revelaria rentável do ponto de vista económico, uma vez que as reservas de ouro espanholas, 500 toneladas, previamente depositadas em Moscovo pelo governo republicano, seriam integralmente consumidas como pagamento pela ajuda soviética, cobrada a preços excepcionalmente elevados. As armas e víveres da União soviética chegaram acompanhados de novas orientações políticas que condicionariam as possibilidades de revolução social em Espanha e, talvez, o desfecho da guerra civil. Com a ajuda militar e o trigo soviéticos, os comunistas, até ali minoritários, aumentaram a sua influência no governo e nas ruas. Uns meses mais tarde, em Maio de 37, levantaram-se de novo barricadas em Barcelona, desta vez não contra os fascistas, mas contra as tentativas do governo autónomo, onde participavam os comunistas, de acabar com as colectivizações.
As colectivizações não afectavam apenas as fábricas e os campos, muitos outros serviços funcionavam perfeitamente nestes tempos de guerra com a gestão colectivizada, socializada ou municipalizada. Vernon Richards 15 resume a aptidão dos trabalhadores catalães para organizar as suas vidas, imediatamente depois de terem derrotado nas ruas de Barcelona os militares fascistas em Julho de 1936, “foram capazes de tomar conta dos caminhos de ferro e retomar o serviço imediatamente; de reorganizar todo transporte urbano e pô-lo a funcionar com mais eficiência que antes; mantiveram a normalidade do funcionamento em todos os serviços públicos, como telefones, gás e electricidad; foram criados serviços de saúde e assitência social pelos sindicatos e tomadas medidas para resolver os problemas de anciãos e inválidos. O povo espanhol estava dando provas concretas que não só era capaz de assumir as suas responsabilidades, senão que tinha uma visão da sociedade humana mais equitativa, mais civilizada que qualquer outra jamais concebida pelos políticos e governantes do mundo”.
Uma tentativa de ocupação pela polícia, da sede da Telefónica colectivizada, que foi interpretada como uma provocação dos estalinistas para acabar com o processo revolucionário em Espanha, despoletaria graves incidentes por toda a cidade nos dias seguintes, de que resultariam cerca de quinhentos mortos e milhares de feridos, uma guerra civil dentro da guerra civil.
A situação de guerra e a premência do combate contra o fascismo levaria os dirigentes das organizações libertárias e revolucionárias catalãs a desistir do enfrentamento com o governo republicano e o PCE. As milícias populares e colunas foram militarizadas, com o regresso da hierarquia militar, as colectivizações passaram a nacionalizações e, por arrasto, a revolução social em marcha começou a adquirir as características do capitalismo de estado. Os métodos repressivos de Stalin na União Soviética passaram a ser utilizados em Espanha, onde se estendeu a guerra aos trotskistas, com a eliminação do POUM e o assassinato de alguns dos seus dirigentes. A política de condução da guerra passaria a ser dirigida pelo PCE em todas as suas facetas. O comité executivo do Komitern, a Internacional Comunista, a 4 de Agosto de 1937, publicava o enquadramento teórico de toda esta acção política: “Num país como Espanha, onde as instituições feudais têm ainda raízes muito profundas, a classe operária e o povo têm como tarefa imediata e urgente, a única tarefa possível (…) não realizar a revolução socialista, mas sim defender, consolidar e desenvolver a revolução democrática burguesa”.
A solidariedade dos portugueses com a República espanhola
A oposição ao regime, asfixiada por dez anos de ditadura edificada sobre os escombros das revoltas sangrentas iniciadas em Fevereiro de 1927 (ver Mapa nº 5), com milhares de presos, deportados nas colónias e exilados no estrangeiro, participou no apoio à República e ao processo revolucionário espanhol, apesar das circunstâncias difíceis em que se encontrava, realizando vários atentados à bomba, levados a cabo por anarquistas e republicanos reviralhistas contra objectivos relacionados directamente com o conflito.
No dia 20 de Janeiro de 1937, deflagraram explosões no Consulado de Espanha; no Rádio Club Português, apoiante mais descarado da acção fascista no país vizinho, com emissões de propaganda em espanhol; nos depósitos de gasolina da Vacuum (Mobil), em Alcântara, fornecedora de gasolina ao exército franquista; e nos arsenais militares de Chelas e de Barcarena, donde saía armamento que era transportado para a fronteira. A 4 de Julho levaram a cabo a acção mais importante politicamente: o atentado contra Salazar (ver excerto de BD 16), que não teve mais consequências para a vida do ditador porque o dispositivo explosivo fora mal desenhado 17.
Relacionada por muitos autores como um gesto de apoio aos republicanos espanhóis, a revolta dos marinheiros de Setembro de 1936, em que um grupo de marinheiros organizados na ORA (Organização Revolucionária da Armada), estrutura afecta ao PCP, se apoderou de três navios no Tejo, (Dão, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque), “não foi feita para irmos para Espanha naturalmente era para lá que iríamos se fosse preciso, porque não havia outro sítio para onde ir, mas não era esse o objectivo”, afirma José Barata 18, um dos marinheiros revoltosos membro da ORA. Segundo ele, o motivo era exigir a reintegração de dezassete marinheiros, excluídos no regresso de uma viagem que teve várias escalas em portos do Mediterrâneo controlados pelos republicanos espanhóis e a libertação dos marinheiros presos no ano anterior. Fossem quais fossem as razões dos marinheiros, Salazar não hesitou em mandar bombardear os navios pela artilharia de costa, de que resultou a morte de cinco marinheiros, dezenas de feridos, a condenação posterior de outros sessenta a pesadas penas de prisão, cumpridas no Tarrafal e a inutilização dos navios mais modernos da Armada.
Milhares de portugueses participaram na primeira linha do conflito, (a maioria emigrantes que depois de proclamada a República no país vizinho ali tinham procurado trabalho, um pouco por todo o território, mas em grande número nas minas das Astúrias e de Rio Tinto, outros exilados fugindo da repressão que se seguiu às várias revoltas fracassadas da década anterior e alguns que a partir de Portugal se dirigiram às zonas republicanas depois de iniciada a guerra), contando-se por dezenas, os mortos; centenas, os presos; e outros tantos, os confinados nos campos de concentração franceses, no final da guerra. Nas obras de referência mundial sobre a Guerra Civil, quando tratam a participação dos cidadãos de todos os continentes que acorreram a Espanha para lutar contra o fascismo, comungando do ânimo revolucionário dos republicanos, admirado no mundo inteiro, pouco se fala da presença portuguesa. Uma explicação poderá ser o facto da esmagadora maioria dos portugueses já se encontrar ali quando se desencadeou o conflito, passando a integrar as milícias e colunas locais desde o primeiro momento. Também por essa razão não terá existido uma brigada internacional portuguesa, embora seja conhecida a presença de portugueses em várias delas. Uma investigação exaustiva sobre este tema ainda está por fazer 19.
Ao finalizar o conflito, Salazar assumiria a participação compenetrada no bando fascista da guerra civil espanhola. No discurso perante a Assembleia Nacional, a 22 de maio de 1939, afirmou que não lhe importava “o sacrifício que tinha feito Portugal nem o número de soldados portugueses mortos na guerra”, referindo-se aos “viriatos”, voluntários fascistas a soldo, já que o importante, para ele, era que “o objectivo tinha sido cumprido”, rematando de forma eloquentemente reveladora: “Orgulho-me de que tenham morrido bem e todos – vivos e mortos - tenham escrito pela sua valentia mais uma página heróica da nossa e da alheia História. Não temos nada a pedir nem contas a apresentar. Vencemos, eis tudo!” 20
De então para cá, foram muitas as vicissitudes que afectaram a vida dos povos do planeta. A ditadura financeira em que vivemos é o resultado das vitórias nos conflitos que marcaram o século passado, nos quais a Guerra Civil espanhola e o processo revolucionário que se seguiu ao golpe militar de 25 de Abril no nosso país tiveram um papel destacado. A civilização que Salazar via perigar no conflito espanhol perdura, com consequências catastróficas em todos os aspectos da vida que conhecemos. Nunca saberemos se o presente seria diferente se a vitória tivesse sorrido ao lado da “barbárie”, mas o ritmo de decomposição da sociedade actual, gerando a infelicidade de um cada vez maior número de pessoas, obrigará à sua destruição, se é que ela não se auto-destrói antes.
Delfim Cadenas
delfimcadenas@jornalmapa.pt
Notes:
- OLIVEIRA, Cesar de; Portugal e a II República Espanhola (1931-1936), pp 82-83, Lisboa, Perspectivas e Realidades, 1985. ↩
- PAZ, Abel; “O Povo em Armas”, Lisboa, Assírio & Alvim, s. d. Ver também entrevista de Outubro de 2005 a Abel Paz, in http://goo.gl/28Ql6j ↩
- PORTELA, Luis e RODRIGUES, Edgar; Na Inquisição de Salazar, pp 188-189, Rio de Janeiro, Editora Germinal, 1957. ↩
- Sanjurjo viria a morrer em Cascais a 20 de julho de 1936, dois dias depois do “Alzamiento”, quando a avioneta que o transportava a Burgos teve um acidente ao descolar. Mola viria a morrer também num acidente aéreo perto de Burgos em 1937. ↩
- SÁNCHEZ ASIAIN, José Angel; La financiación de la guerra civil española, p.238, Barcelona, Crítica, 2012 ↩
- Obra citada nota anterior, p.239. Em nota de rodapé, o autor informa que teve acesso à agenda da Secretaria de Salazar, que se encontra no Arquivo Salazar (1907-1974), Torre do Tombo, agradecendo ao seu amigo Carlos A. Damas, director do Centro de Estudos da História do Banco Espírito Santo a destacada ajuda que lhe prestou no acesso a essa agenda e a outros valiosos documentos, especialmente os relativos à operação para pôr à disposição de diplomáticos do Governo de Burgos recursos financeiros por conta do banco. ↩
- MENESES, Filipe Ribeiro de; Salazar, Uma Biografia Política, p.218, Lisboa, Dom Quijote, 2010. ↩
- SÁNCHEZ ASIAIN, obra citada, pp.240 e seguintes. ↩
- OLIVEIRA, Cesar de; obra citada, pp. 137-155. ↩
- SIMÕES, Maria Dulce; Barrancos na Encruzilhada da Guerra Civil de Espanha. Memórias e testemunhos, 1936. Câmara Municipal de Barrancos, Edições Colibri, 2007. ↩
- DELGADO, Iva; Portugal e a Guerra de Espanha, pp 38 e seguintes, Lisboa, Europa-América, 1980. ↩
- MNE 1964: doc nº 699. Resposta formal de Salazar à proposta franco-britânica de mediação do conflito, de 11.12.1936. ↩
- Entre quatro e dez mil voluntários portugueses, a cifra exacta não está apurada, conhecidos por os “viriatos” alistar-se-iam nas fileiras franquistas. ↩
- RODRIGUEZ, Alberto Pena; La creación de la imagen del franquismo en el Portugal salazarista, http://goo.gl/utvbiw ↩
- RICHARDS, Vernon; Enseñanzas de la revolución española, Madrid, Campo abierto ediciones, 1977 ↩
- Fonte: http://bandarra-bandurra.blogspot.com.es ↩
- SANTANA, Emídio; O Atentado a Salazar, p. 61, Lisboa, Publicações Forum, 1976. ↩
- GOMES, Varela; Guerra de Espanha – Achegas ao Redor da Participação Portuguesa, 2ª edição, p. 78, Lisboa, Fim de Século, 2006 ↩
- César de Oliveira, na obra citada pp 399-410, identifica centenas deles a partir dos arquivos portugueses, Varela Gomes, obra citada pp. 17-77, recolheu depoimentos de participantes, quase todos comunistas, e identificou outros. José Tavares, “Memória Subversiva – História do anarquismo e do sindicalismo em Portugal”, 27 horas de entrevistas e registo de documentos, Lisboa, 1987, filmou depoimentos de alguns dos anarquistas que tinham participado na guerra. ↩
- Discurso de Salazar ante a Assembleia Nacional em 22 de Maio de 1939. Discursos e Notas políticas III, 1938-1943, pp.147-148. Coimbra Editora, 1959. ↩
Excelente estudo!
[…] livres, auto sustentáveis e de cultura libertária. Em Espanha tivemos um exemplo na altura da guerra civil quando Franco tomou o poder pela força. A luta pelo direito á independência, liberdade […]
Em pagina informativa galega http://abordaxe.wordpress.com/2014/10/03/portugal-e-a-guerra-civil-espanhola/