Corpos castigados, corpos recuperados
Existem poucos filmes capazes de levar-nos a superar o papel de mero espectador e conceder-nos esse raro privilégio que é sentir-se parte daquela história que nos contam, sentir que os nossos olhos acompanham cada momento, que podemos desfrutar com cada sorriso ou sofrer com cada lágrima, sentir o aroma mais prazenteiro ou o fedor mais repugnante; e quando aparece uma obra assim estamos perante uma dádiva que não podemos recusar. Regarde Elle A Les Yeux Grand Ouverts é um desses filmes, cinema militante sem preconceitos, filma-o Yann Le Masson mas os créditos deixam bem claro que é um trabalho colectivo, e não podia ser de outra maneira porque o realizador sabiamente permanece espectador de experiências que, enquanto homem, jamais pode entender na sua plenitude, e como qualquer bom documentarista sabe que existem histórias que se contam apenas observando-as.
Quando em 1975 foi promulgada em França a lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, o MLAC d’Aix en Provence (Movimento pela Liberdade do Aborto e da Contracepção) já existia desde há dois anos, perante as carências médicas foi criado para terminar com a carnificina clandestina em que mulheres mais desfavorecidas economicamente eram as vítimas. Como movimento foi possível graças a todas as lutas feministas dos anos precedentes, donde se reivindicava o direito da mulher ao domínio do seu próprio corpo.
Na “Commune” de Aix as mulheres iam abortar e as mulheres praticavam abortos sem assistência médica directa, mulheres que sabiam que a única forma de recuperar esse ansiado “direito” ao próprio corpo era recuperando os conhecimentos que lhes tinham sido arrebatados por uma medicina e uma ciência sempre patriarcais.
O documentário acompanha estas mulheres no seu itinerário criminal, à margem da lei – finalmente julgadas por prática ilegal da medicina e por praticar um aborto a uma menor –, onde pouco a pouco vão propondo, não apenas uma rede de apoio necessária por contingências legais, mas também uma verdadeira alternativa à prática hospitalar, nesses dois casos limites e de importância extrema para qualquer mulher, o aborto e o parto. E se a interrupção voluntária da gravidez volta a ser sequestrada em países cujo “progresso moral” ninguém se atreve a questionar, o domínio do parto torna-se absoluto. Numa conversa colectiva uma das mulheres diz “É lógico que te queiram controlar o parto, porque se as mulheres se dão conta da força que têm dentro imaginam donde podemos chegar? Se temos essa força para parir temos a força necessária para tudo!”, e essa força há muito que lhes foi roubada, foi- lhes roubada para que triunfasse a civilização, somente sequestrando a força que produz vida poderiam triunfar as instituições da morte.
Infinidade de momentos de ternura, gestos que acompanham, vozes que sussurram, controlo e poder de uma mulher sobre o seu corpo com o apoio colectivo de outras mulheres, tudo isto destrói o carácter aterrador de um aborto dentro da sua banalidade cirúrgica. Tudo aquilo que a pressão social produz, dúvidas, temores, desaparece no momento colectivo, nenhum aborto deveria ser praticado num hospital, são centros de gestão da morte, ali não existe espaço para os afectos.
É possível que Yann Le Masson seja o único realizador que se pode orgulhar de ter realmente captado através de uma câmara esse momento singular (sublime para muitos, trágico para alguns) que é o nascimento de um pequeno ser-humano. As cenas finais que acompanham o parto de Nicole que dá à luz uma menina num ritual de celebração colectiva, onde o acto de parir recupera a sua função simbólica, sem preconceitos, transformam-se em momentos tangíveis: sofremos com cada alento e entusiasmamo-nos com cada sinal de vida. No entanto, se à morte não devemos nada, nascer no único dos mundos possíveis sim que tem um preço.
Ver (torrent): http://www.les-renseignements-genereux.org/videos/4091
Cláudio Duque