Violência e estupidez

12 de Fevereiro de 2014
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praxe2A recente “tragédia do Meco” a 15 de Dezembro de 2013, quando seis jovens, estudantes da Lusófona, foram arrastados, em circunstâncias ainda a apurar, pela forte corrente que normalmente se faz sentir naquela parte da costa, levantou uma questão que durante bastante tempo tinha vindo a ser esquecida e debatida; a da violência e da “estupidez” das praxes académicas.

Especula-se que aquele fim-de-semana foi dedicado à praxe académica por aquele grupo de estudantes universitários, isto de acordo com vários relatos que têm vindo a surgir nos meios de comunicação, e que o arrastamento se deu devido a falta de zelo dos estudantes, imputando-se a responsabilidade ao único sobrevivente, o “Dux” do Conselho Oficial da Praxe Académica da Universidade Lusófona.

Não nos compete aqui tentar apurar a verdade dos factos, especular sobre o que se passou naquela noite, culpabilizar seja quem for ou criar uma novela em volta do caso. É um caso que se tornou público, que continua a ser falado na opinião pública com julgamentos distintos por parte dos vários analistas, mas o que nos importa em toda esta situação é o facto de só depois de uma tragédia destas proporções, supostamente devido à prática da tradicional e “bem intencionada” praxe académica, se vem discutir estas práticas nos meios de comunicação e na sociedade em geral. Sempre com um binómio moralista a definir até que ponto essas mesmas práticas são benéficas para a integração do aluno, ou maléficas para o seu bem-estar.

Todos nós sabemos no que consiste a prática da praxe académica, especialmente aqueles que vivem em cidades universitárias e que constantemente dão de caras com estas práticas durante o ano lectivo universitário. É um ritual de iniciação, diz-se de integração, em que os alunos veteranos da universidade realizam algumas “brincadeiras” aos alunos caloiros que estão a iniciar o seu percurso académico. É um ritual que se reproduz ano após ano, com o aluno caloiro, no primeiro ano vítima, a tornar-se mais tarde aluno veterano e a repetir as mesmas práticas nos alunos caloiros do ano seguinte. Mas é também uma prática que teve início com a instituição de uma jurisdição especial na Universidade de Coimbra, o “foro académico”, com um corpo policial próprio, os archeiros, que, sob a tutela das autoridades universitárias, tinham como função fazer cumprir as normas instituídas pelas autoridades universitárias dentro dum quadro legal exclusivo. O desenvolvimento dessa prática fez com que passasse de uma prática persecutória para uma de caçoada. Um dos resquícios dessas práticas policiais em Coimbra é o das trupes que perseguem quem não cumpre as regras instituídas pela praxe e que são responsáveis por algumas cenas de violência tidas como normais no meio académico.

Mas não é também objectivo aqui fazer um julgamento moral de quem se dedica as estas práticas, até porque a participação nestas é na maioria dos casos voluntária, ainda que sejam conhecidas a violência e humilhação que lhe são inerentes. A questão que queremos levantar aqui é a da banalização destas práticas, tidas como normais dentro da nossa sociedade, e que parecem cobrir um grande espectro do nosso mundo universitário.

Existe uma forte identidade de grupo que caracteriza tudo aquilo que pode ser definido como tradição académica. Basta olharmos para o próprio traje que distingue, desde logo, o estudante veterano durante esse rituais académicos. A integração dentro desse mundo que contempla uma suposta camaradagem, as festas regadas a álcool, as ditas novas amizades ou mesmo a possibilidade de relacionamento amorosos ou práticas sexuais, é o fulcro que leva muitos dos estudantes a serem vexados e humilhados em público, para gáudio dos estudantes de capa e batina que, outrora alvo de semelhantes humilhações, reproduzem o papel de vitimizadores. Como já foi referido antes, estes rituais reproduzem-se de ano para ano, e a sua reprodução parte também de um assentimento de que, entrando pela porta da humilhação que a praxe impõe, se poderá ser mais tarde aquele que humilha, numa relação de poder voluntária, como voluntária é também a servidão do empregado que sonha um dia ocupar o papel do patrão. Neste tipo de relações de poder prepara-se, também, a entrada nesse mundo do trabalho, em que os proto-doutores ambicionam um dia chegar a uma posição de poder e autoridade nas suas áreas de especialização. Existe também uma conivência no que diz respeito à aceitação de uma hierarquia e de uma autoridade não refutada. Essa mesma refutação poderia levar a uma punição. O fantasma da não integração, da marginalidade dentro do mundo académico, faz-nos também lembrar o da marginalidade no mundo que existe fora das universidades em que o não integrado nas normas sociais acaba sempre por ser marginalizado. E a lógica militar que é inerente às praxes, acarreta também a disciplina necessária ao respeito das autoridades sejam elas praxistas ou estatais.

A universidade, com os seus rituais e as suas práticas integradoras, é assim, também ela, o laboratório de experimentação da autoridade dos especialistas que reproduz a situação na qual estamos integrados. As suas práticas espelham-se, de forma algo disforme, naquelas que são as do nosso quotidiano. E a violência inerente a essas mesmas práticas é também aquela que se sofre no nosso dia-a-dia, mas que é calada devido à sua própria banalização e aceitação como normal. É preciso que se dê o epílogo trágico para que se faça a crítica revisionista. A história dos jovens que foram levados pelas ondas do Meco, e toda a novela que se tem vindo a criar na comunicação social, faz-nos lembrar também outras situações que se encontram latentes na nossa sociedade e que se aceitam como banalidades. Só quando um jovem negro morre às mãos de um grupo de jovens brancos, se fala de racismo; só quando uma mulher morre às mãos do marido ou namorado, se fala de sexismo; só quando uma transexual morre ás mãos de um grupo de jovens, se fala de homofobia; só quando um grupo de jovens morre supostamente devido à prática estúpida da praxe, se fala da sua violência. E a sociedade continua reproduzir-se a si mesma de forma pacífica.

P.M.

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