Agir não em resposta ao vírus, mas ao agravamento dos problemas do sistema económico
Este artigo faz parte da série #PandemiaSolidária. As cantinas solidárias são uma das mais expressivas iniciativas locais de solidariedade e apoio mútuo que surgiram nas cidades com vista a fazer face às consequências sociais e económicas trazidas pela pandemia da Covid-19. O espaço Provisório emprestou a sua sala e cozinha a um grupo informal de moradores nas freguesias de Arroios, Penha de França e São Vicente, em Lisboa, e daí nasceu uma cantina solidária temporária que à data continua a fornecer cerca de 80 refeições gratuitas diariamente. A partir de quem partiu a iniciativa e o que a motivou? Somos um grupo informal de pessoas que já se conhecem há algum tempo porque partilhamos os mesmos circuitos sociais e culturais, onde temos desenvolvido cumplicidades e práticas coletivas. Perante a pandemia da Covid-19 e a crise, não somente sanitária mas sobretudo económica e social, que atingiu toda a gente e ainda mais as pessoas que já se encontravam antes numa condição maior de fragilidade, quisemos juntar-nos e organizar-nos para agir perante este abalo e pensar em iniciativas que pudessem aliviar o peso das necessidades mais essenciais. Às competências organizacionais e materiais desenvolvidas no passado em experiências partilhadas acrescentou-se a possibilidade de acesso ao Provisório, um espaço com uma cozinha grande e actividade mais regular onde alguns de nós estão envolvidos. Sobre estas bases decidimos então montar uma cantina gratuita, que se somou às iniciativas de outros grupos, como as cantinas solidárias do RDA, do Disgraça, da Mula, ou as Brigadas de Bairro, e a diversas acções individuais que têm surgido neste contexto de crise. A quem é dirigida? E como tem corrido? Há muita procura? O serviço de refeições gratuitas é dirigido a todos e não estabelecemos quaisquer condições para os interessados. Tem corrido bem. Estamos a servir neste momento aproximadamente 80 refeições por dia, havendo pessoas que levam para o jantar ou para entregar aos vizinhos. Além das pessoas que têm vindo para o serviço de refeições, há um interesse e disponibilidade particular de pessoas conhecidas ou não, que se têm oferecido para participar das mais variadas formas, seja para cozinhar, divulgar o projecto, entregar refeições a vizinhos que não podem ou não conseguem sair de casa ou ajuda com toda a logística necessária. Tivemos também apoio dos comerciantes da zona que nos ofereceram bens alimentares e reduzem os preços dos produtos, de pessoas que nos deram comida, caixas, luvas, gel desinfectante, etc. Percebemos ainda que uma boa parte das pessoas com quem temos contactado, para além de carências financeiras acentuadas pela crise, está também a sentir-se isolada emocional e afectivamente, encontrando um certo conforto na aproximação e na participação nesta acção colectiva. Como se organizam? Esta cantina partiu de um grupo de pessoas que já se conheciam e faziam coisas juntos, havendo por isso relações pessoais de confiança que tornaram o processo de discussão e organização mais fácil. Desde o início, em 16 de abril, a cantina tem funcionado em regime de takeaway, todos os dias, das 13h às 15h. Para além dos cuidados habituais a ter quando se trabalha no processamento e confecção de alimentos, seguimos os protocolos extra de saúde, higiene e limpeza que a situação exige. Os turnos feitos a partir de uma escala semanal são compostos por três pessoas, com um regime de rotatividade em que cada dia um de nós fica responsável pela elaboração do menu e pela gestão do espaço. Durante o serviço, uma pessoa está à porta e trata de receber as caixas que as pessoas trazem, outra enche as caixas e uma terceira continua a cozinhar o que for preciso. As limpezas são feitas pelo turno de cada dia, deixando o espaço limpo e preparado para o dia seguinte. Além dos turnos de cozinha, existem turnos de compras, inventário e contabilidade, bem como de gestão da comunicação. Temos reuniões uma vez por semana para coordenar e decidir o que vai sendo necessário. Têm mantido alguma relação com as demais cantinas solidárias na zona de Lisboa? Algumas das organizações com cantinas sociais são espaços que frequentávamos antes da pandemia e alguns de nós estão a participar e a acompanhar as actividades desenvolvidas (na cantina do RDA, por exemplo). Esta relação próxima permitiu-nos trocar informação e partilhar certos recursos e necessidades logísticas, o que foi importante para começar a nossa actividade. Além dos colectivos que organizam cantinas solidárias, o GAIA disponibilizou-nos material para cozinhar, o Provisório emprestou o seu espaço e cozinha, bem como os seus meios de comunicação online. A associação dos Amigos da Quinta do Ferro ajudou na divulgação e o grupo das Brigadas de Bairro ajuda com o seu sistema de entrega de refeições ao domicílio. Têm tido algum problema por causa das restrições impostas pelo estado de emergência? Na zona onde estamos e em relação à nossa actividade com a cantina, o controlo tem sido reduzido e até agora não tivemos qualquer problema com as autoridades. Como é que o projecto (Cantina Solidária Temporária) está a subsistir nestes tempos incertos? A Cantina Solidária Temporária é um projecto recente que funciona com trabalho voluntário e donativos privados. Recebemos donativos que vão permitir-nos estender o seu funcionamento até 16 de Maio. A flexibilidade laboral ou a suspensão de trabalho forçada de muitos de nós proporciona o tempo e a disponibilidade para continuarmos. Estamos também a pensar como este projecto poderia existir para além deste período de pandemia, tendo perfeita consciência do carácter excepcional do momento e de que perenizar esta actividade levanta um conjunto de questões complexas. E como temos vindo a perguntar a outras Cantinas Solidárias, numa tentativa de desambiguar o significado de «solidariedade», tantas vezes confundida com «caridade» e assistencialismo, o que é para vocês ser solidária? Entendemos a solidariedade como uma estrutura de relações interdependentes de apoio mútuo dentro de uma comunidade, radicalmente diferente da caridade que, em sentido contrário, reforça e perpetua as dependências e hierarquias existentes entre uns e outros. Então, quando pensámos e construímos a nossa cantina solidária neste contexto de crise, quisemos sustentá-la nos gestos e vontades de todos os que se têm envolvido de diferentes maneiras. Desde o início, a nossa ideia foi a de que não estávamos a agir em resposta ao vírus, mas ao agravamento dos problemas do sistema económico no qual vivemos, baseado em desigualdades fortes e relações de poder assimétricas. Neste sentido, esforçámo-nos por evitar repetir nos nossos gestos as estruturas que reproduzem essas desigualdades e por desenvolver as nossas acções de forma mais horizontal e colaborativa. …………………………………. Como se pode apoiar? Este projecto implica custos e depende dos donativos de todos que podem ser feitos por: – Transferência bancária (NIB : 0023 0000 45486038990 94) – MBWAY (924284442) – Directamente em mão no local das 10h às 15h, todos os dias (Rua Leite Vasconcellos 48ª) Aceitamos também doações de alimentos secos, vegetais, fruta e iogurtes, caixas e talheres para o takeaway, bem como luvas e gel desinfectante. …………………………………. Assina o Mapa Mais...
Pela libertação dos migrantes detidos pelo SEF
Os colectivos HuBB (Humans Before Borders), SOS Racismo e Colectivo Migrações e Justiça, para além de pessoas a nível individual e organizações de todas as áreas, enviaram uma carta aberta ao governo exigindo a libertação imediata de todas as pessoas que permanecem em Centros de Instalação Temporária «sem terem cometido qualquer crime, mas tão somente pela sua condição de migrante indocumentado/a». A Redação/Coletivo do jornal MAPA subscreve e transcreve aqui a carta aberta. «A pandemia que hoje enfrentamos é um dos maiores desafios do nosso tempo, que impõe a urgência de acudir às pessoas mais vulnerabilizadas. Os Centros de Instalação Temporária (CITs) e Espaços Equiparados (EECITs) geridos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) detêm requerentes de asilo (nos termos do Artigo 35.º-A da Lei de Asilo), bem como pessoas cuja entrada no país foi recusada e migrantes que se tornaram ‘irregulares’ por não terem conseguido obter ou renovar a sua autorização de residência. Todas estas pessoas permanecem nestes centros sem terem cometido qualquer crime, mas tão somente pela sua condição de migrante indocumentado/a. Os CITs e os EECITs não garantem a segurança e os direitos das pessoas detidas, nem as condições de saúde e higiene necessárias para enfrentar a ameaça do novo coronavírus. Os centros, na grande maioria, não dispõem de quartos privados mas apenas de camaratas, e as instalações, sobretudo nos aeroportos, encontram-se frequentemente sobrelotadas. Os funcionários entram e saem das instalações, onde o distanciamento social é uma impossibilidade, e contribuem assim para um potencial contágio e disseminação do vírus, aumentando o risco de transmissão comunitária dentro e fora destas instituições. No relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção contra a Tortura (MNP) de 2018, redigido pela Provedoria de Justiça, apontam-se graves dificuldades no acesso à saúde das pessoas detidas, que são acompanhadas por voluntários da organização não-governamental Médicos do Mundo. Para além disto, pessoas que frequentemente passaram por traumas e violência graves são deixadas sem qualquer apoio psicológico e muitas vezes até jurídico. Seja através de relatórios de entidades públicas, como no caso do MNP, seja através de relatos de advogados/as, das próprias pessoas detidas e familiares ou de organizações não-governamentais, torna-se claro que os centros de detenção não estão capacitados para gerir uma crise de saúde pública. Contudo, os riscos não se prendem apenas com o contágio, mas também com questões legais e morais. A detenção de migrantes e requerentes de asilo legitima a criminalização da liberdade de circulação, reforçando assim o racismo e a xenofobia. Deter pessoas exclusivamente pela sua condição de migrantes é questionável, mas numa altura em que a maioria dos voos está suspensa e portanto os repatriamentos para os países de origem estão impossibilitados, é simplesmente indefensável do ponto de vista legal e moral, como apontou, por exemplo, o grupo de investigação Border Criminologies da Universidade de Oxford. Os acontecimentos do passado dia 12 de Março, em que alegadamente três inspectores do SEF torturaram e assassinaram Ihor Homeniuk, um cidadão Ucraniano, no EECIT do aeroporto de Lisboa, vieram confirmar a condição de vulnerabilidade das pessoas detidas nestes centros independentemente do aparecimento do vírus. Embora dotado de uma brutalidade particular, este não é um caso isolado no que toca a agressões dentro destes centros. O MNP tem vindo a reportar “relatos de maus-tratos alegadamente levados a cabo pelos oficiais do SEF durante o controlo à entrada em território nacional”. Em Julho de 2018, um despacho do Ministro da Administração Interna determinou que a permanência máxima de menores de idade inferior a 16 anos, quando acompanhados, seja de 7 dias úteis. Esta medida, ainda que um passo na direcção certa, fica aquém da situação ideal. A detenção de menores, acompanhados ou não, seja por que período for, nunca protege os seus interesses e constitui uma grosseira violação de todas as convenções de proteção dos direitos das crianças. Num recente comunicado, a Comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatović, referiu que vários países europeus como a Bélgica, Espanha, a Holanda e o Reino Unido já libertaram migrantes detidos como resposta a esta crise, exortando os restantes estados a fazer o mesmo. Afirmou ainda que “os estados membros devem garantir que as pessoas libertadas de centros de detenção tenham acesso apropriado a alojamento e a serviços básicos, incluindo à saúde. Isto é necessário para salvaguardar a sua dignidade, bem como a saúde pública nos estados membros”. A mesma invocação veio da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, que alertou os governos para que não se esqueçam destas pessoas que são as mais vulnerabilizadas. Temos evidência que, mesmo depois do Despacho n.° 3863-B/2020, várias pessoas, adultos e menores, continuam retidas nestes centros. Devido à falta de informação pública e transparente acerca destas instituições e do que lá se passa, não é possível saber qual é o desenvolvimento da situação nos dias de hoje e isto levanta grandes preocupações. O Governo Português tem agora a oportunidade de garantir a segurança tanto dessas pessoas quanto dos/as funcionários/as que trabalham nestes centros, e desse modo contribuir para a segurança da sociedade em geral. É de extrema importância que o Governo aja agora, antes de se dar o cenário previsível do sobrecarregamento dos serviços de saúde. Face à pandemia em curso, com duração e consequências imprevisíveis, os signatários da presente carta aberta apelam ao Governo Português para que: a) sejam libertadas imediatamente todas as pessoas que ainda se encontram detidas e fechados todos os CITs e EECITs operativos; b) estas pessoas sejam incluídas no Despacho n.° 3863-B/2020 de 27 de Março, por forma a garantir-lhes o direito à saúde, assim como a todos os direitos de proteção social de salvaguarda da sua dignidade humana; c) reavalie a pertinência da existência destes centros, cujos custos humano e económico são, na melhor das hipóteses, totalmente evitáveis, não apenas em tempos de pandemia mas em geral.» ___________ Subscrições Colectivos AAMA – Associação dos Amigos da Mulher Angolana Afrolis – Associação Cultural AMRT – Associação para a Mudança e Representação Transcultural Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu Portugal Associação Cultural e Recreativa Estrela da Lusofonia Associação de Desenvolvimento e Defesa dos Angolanos Associação de Filhos e Amigos de São-Miguel Associação Olho Vivo Associação Renovar a Mouraria Associação Sons da Lusofonia Associação Zona Franca Bangladesh Sonarbangla Brigada Estudantil – plataforma de coletivos estudantis Bué Fixe – Associação de Jovens Casa de Angola em Coimbra-ONGD Casa de Moçambique Casa do Brasil Chão Oficina de Etnografia Urbana Colectivo Migrações e Justiça Colectivo Nu Sta Djunto Feminismos sobre Rodas Grupo de investigação: “Grupo Inter-Temático sobre Migração” [ITM] do CES – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra HuBB – Humans Before Borders INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal Kalina – Associação dos Emigrantes de Leste Khapaz – Associação Cultural de Afrodescendentes Leve-leve Colectivo Marcha Mundial das Mulheres Portugal NAC – Núcleo Antirracista de Coimbra NARP – Núcleo Anti-Racista do Porto PADEMA – Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana Panteras Rosa Peles Negras Máscaras Negras – Teatro do Escurecimento Projecto FCT “(De)Othering” com sede Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra SOS Racismo Stop Despejos Teatro GRIOT, Companhia de Teatro Toupeira Vermelha UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta Unidos de Cabo Verde Vikings Sports Club Indivíduos Adriana Bebiano, Professora Auxiliar Agregada, Faculdade de Letras Afonso Arrais, Activista Afonso Queiró, Professor de Dança Albertina Pena, Professora Alda Sousa, Professora Universitária Alexandre Farto, Vhilstudio Alí Murtaza, Membro Colectivo Migrações e Justiça Ambra Formenti, Investigadora, CRIA – NOVA FCSH Ana Fernandes, TSDT Ana Filipa Oliveira, Técnica de Comunicação e Advocacy Ana Gonçalves, Médica Ana Paula Cruz, Médica Ana Rita Alves, Antropóloga, CES-UC Ana Rita Areosa Rocha Soares, Professora André Simão Studer Ferreira, Advogado Anna Lina Signorello, Educadora e Estudante Mestrado ISCTE Antónia Barradas, Advogada Antonio Ferreira, Educador, Ativista António Pedro Dores, Professor ISCTE-IUL Arianna Borelli, Médica e Activista Beatriz Neves, Médica Bruno Santos, Activista Carla Panico, Doutoranda CES- Coimbra Carlos Henrique Vianna, Ex-presidente da Casa do Brasil de Lisboa Carlos Martins, Presidente da Associação Sons da Lusofonia e Artista Cidadão Carlos Miguel M. Fernandes Jorge, Professor Catarina Frade Moreira, Bolseira de Doutoramento Catarina Pombo Nabais, Investigadora, Universidade de Lisboa Cecília Isabel Justino Fonseca Christine Auer, Antropóloga Colette Le Petitcorps, Socióloga, ICS Lisboa Cristiano Gianolla, Investigador CES Cristina Roldão, Socióloga Cristina Santinho, Antropóloga – CRIA, ISCTE-IUL Daniel Martinho, Actor Deniz Mardin, Médico Dora Marina Honório da Costa Almeida Rebelo, Psicóloga Edna Maria Varela Tavares, Psicóloga Clínica Erica Briozzo, Doutoranda ISPA-IU Filipa Santos Costa, Advogada Filomena Carocinho, Técnica de Informática Flávio Almada ” Lbc Soldjah”, Rapper e Tradutor Francesca Esposito, Investigadora Francesco Vacchiano, Investigador Franzi Mai, Educadora Gaia Giuliani, Investigadora CES Gisele Maria Ribeiro de Almeida, Professora Universitária Gio Lourenço, Actor Giovanna González, Doutoranda FAUL Helena Romão, Musicóloga Inês Matos, Investigadora Inocência Mata, Professora Universitária Iolanda Évora, Investigadora Irene Peano, Instituto de Ciências Sociais Isabel Faria, Secretária Isabel Louça, Professora Isabel Maria Pereira Moreira, Professora Isabella Permanschlager, Tradutora Jasmin Mbambo, Docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Jannis Kühne, Doutorando em Antropologia Javier Mateo, Advogado Joana Manarte, Investigadora Joana Manuel, Actriz e Dirigente Sindical Joana Martins Fernandes, Consultora de Comunicação Joana Sousa Ribeiro, Investigadora CES João André Ribeiro Duarte, Investigador e Trabalhador Comunitário João Baia, Assistente de Investigação João Baía, Investigador João Carlos Louçã, Antropólogo João dos Santos Martins, Artista João Edral João Vieira, Cidadão Jorge Falcato Simões, Activista Jorge Manuel Fernandes Fonseca de Almeida, Colunista José António Melo Nunes Guerra, Reformado/Função Pública José Cortez, Activista José Falcão, Dirigente SOS Racismo José Luís Carvalho, Professor José Neves, Professor Universitário José Soeiro, Deputado, Sociólogo José Viana, Professor Katiana Dias Fernandes da Silva, Financeira Leeroy Ferro Ferreira, Artista Visual Lídia Fernandes, Investigadora e Ativista Feminista Liliana Baroni, Produtora Cultural Luca Onesti, Jornalista, Doutorando pela FCUL Luciana Fina Luís Graça, Professor Luisa Sales, Psiquiatra – coordenadora do centro de trauma (CES) Luisa Russo, Médica Mamadou Ba, Dirigente SOS Racismo Manuela Ribeiro Sanches, Professora Universitária Aposentada (FLUL) Margarida Farinha, Antropóloga Maria Clara Bicudo Azeredo Keating, Universidade de Coimbra Maria Clara Ribeiro Amaro, Educadora de Infância Maria Gonçalves, Activista Maria João Marques, Dirigente Associativo Maria Leonor Figueiredo, Assessora Maria Manuela Cruz Reis Góis, Professora aposentada Maria Paula Meneses, Investigadora CES Regina Guimarães, Escritora/dramaturga Maria Reis, Activista Mariana Évora, Activista Maria Sbrancia, Humana Mariana Tomaz, Jurista Marta Araújo, Investigadora CES Marta Bulhosa, Advogada Estagiária Marta Lança, Editora BUALA Matamba Joaquim, Actor Michelle Chan, Gestora Miguel Barrantes, Consultor Informático Miguel Cardina, Historiador Miguel Costa do Carmo, Engenheiro do Ambiente e Investigador Miguel Duarte, Activista Miguel Vale de Almeida, Antropólogo, CRIA, ISCTE Myriam Taylor, Muxima Bio, CEO Nuno Miguel Madeira Alves, jurista Paula Gil, Assessora e Activista Paula Godinho, Antropóloga Pedro Pedrosa Pedro Santos Costa, Arquitecto Pedro Schacht Pereira, Professor Universitário, EUA Raquel Freire, Realizadora Raquel Lima, Investigadora Raul Manarte, Psicólogo Regina Guimarães, Activista Renata Cambra, Estudante, Ativista da Greve Climática Estudantil do Porto Ricardo Loureiro, Sociólogo Rita G. Santos, Investigadora Rita Gaspar, Designer e Activista Sara Choupina, Advogada Sarah Shrbaji, Arquitecta Sílvia Cardoso, Antropóloga – IGOT Sílvia Jorge, investigadora do GESTUAL-CIAUD-FAUL Sílvia Leiria Viegas, Arquitecta Sílvia Maeso, Socióloga, Universidade de Coimbra Sílvia Roque, Investigadora CES Simone Frangella, Investigadora ICS-ULisboa Simone Tulumello, Investigador ICS Sofia Pereira, Criminóloga Susana Constante Pereira, Dirigente do Bloco de Esquerda. Teresa Pizarro Beleza, Professora Catedrática NOVA Thiago Hipólito, Designer Vanessa de Pacheco Melo, Arquitecta Doutorada em Urbanismo Vasco Araújo, Artista Plástico Vasco Barata, Jurista Vera Silva, Estudante Vladimir Vaz, Jurista Zia Soares, Directora Artística, Actriz Mais...
Desenterrando a História do Bairro das Pedreiras
Estima-se que existam actualmente na Europa entre dez a doze milhões de pessoas ciganas, das quais cerca de 80% vive em risco de pobreza, e muitas sem acesso a uma habitação condigna e a bens essenciais como água, luz e saneamento básico (1). A marginalização daquela que é hoje a maior minoria étnica europeia é muitas vezes justificada no discurso público pela ideia de que, devido a diferenças culturais incomensuráveis, se criou uma desconfiança mútua – entre comunidades ciganas e não-ciganas – que impossibilitou um diálogo, até aos dias de hoje, e que relegou os ciganos aos espaços mais marginalizados e empobrecidos das sociedades contemporâneas. A ideia de uma responsabilização das comunidades ciganas pela sua atual situação de carência, e a respetiva desresponsabilização dos não-ciganos, acontece num contexto de apagamento e silenciamento de uma história de perseguição, arquitetada pelos diversos regimes de poder (da monarquia à república, da ditadura à democracia), aos povos ciganos, iniciada entre os séculos XIII e XIV e vigente até aos dias de hoje. Como tal, falar de comunidades ciganas no espaço europeu, e particularmente em Portugal, exige que se contem histórias de perseguição e racismo institucional, bem como de resistência e sobrevivência, num contexto no qual resistir à racialização significa, em grande medida, resistir ao desaparecimento (2). Breve história da perseguição organizada na Europa a partir do século XIII Marcadas por um passado migratório complexo, as comunidades ciganas foram desde cedo sujeitas a um dos mais longos processos de escravização da história da Europa, designadamente na Moldávia e na Valáquia (Roménia), do século XIII ao século XIX, a par com a escravatura transatlântica. Este caso é paradigmático das posições tradicionalmente hipócritas da Europa, e que se mantêm até aos dias de hoje: enquanto que discursivamente se mostra preocupada com os atentados aos direitos humanos perpetrados noutras regiões do globo – com eles justificando a invasão de territórios, como aconteceu no caso do Afeganistão – ignora de forma sistemática a violação dos direitos humanos no seu seio, tal como acontece com os casos de expulsão, repatriamento ou condenações arbitrárias que têm acontecido um pouco por todo o território europeu. Tal relaciona-se com o facto de a Europa, enquanto espaço geopolítico e identitário, ter resolvido encetar a partir do século XV, sem direito a oposição, um projeto de racialização e desumanização das pessoas que decidiu identificar exogenamente, neste caso, como “ciganas”, “tsiganes”, “gitanas”, “antagoi” ou “egipcianas”, mesmo que estas se autoidentifiquem enquanto “Roma”, “Sinti”, “Cale”, “Kalderash”, entre outras. É também neste período que começam a surgir um conjunto de leis, decretos e regulamentos que alteram drasticamente a perceção pública e o tratamento das pessoas ciganas. Se inicialmente foram recebidos como peregrinos, em pouco tempo se lhes pagaria para que abandonassem as cidades sem entrar nelas, e pouco depois seriam considerados espiões turcos, traidores dos países cristãos, ou “foras da lei” (processo iniciado na Alemanha, no século XV). É de sublinhar que tudo isto aconteceu em nome de um processo político de homogeneização dos espaços nacionais, podendo afirmar-se que desde a chegada dos ciganos ao espaço europeu, no decorrer da Idade Média, os Estados, então em lenta constituição, querem que todos os ciganos se alicercem na fixidez dos costumes e do direito (3), então hegemónicos. Breve história da perseguição organizada na Península Ibérica a partir do século XV Importa referir que a chegada de grupos de ciganos, designadamente à Península Ibérica, coincide precisamente com o início dos projetos coloniais português e espanhol, que se iniciaram com a invasão de Ceuta, em 1415. É neste mesmo período que se unificam os Reinos de Castela e Aragão, que chegam ao trono os Reis Católicos, em 1469, e que se expulsam as comunidades islâmicas da Península Ibérica, em 1492 – que resistiam, à altura, no sul de Espanha. Neste sentido, o século XV afigura-se como um tempo fundamental na criação das identidades nacionais, através da imposição de um único e absoluto poder político, uma única religião, uma única língua, uma única cultura e, por conseguinte, de uma única maneira de ser – processo ao qual os grupos de homens e mulheres ciganas insistiam em resistir (4). Já no século XVI, no ano de 1510, aparecem as primeiras referências a grupos de ciganos e ciganas em Portugal, sendo em 1521, pelas mãos de Gil Vicente, que os ciganos são usados em Portugal como veículo de sátira às cortes europeias, através da apresentação, em Évora, da obra A farsa das Ciganas, que antecede a Primeira Lei Régia que proibiu a entrada de ciganos no reino de Portugal e a expulsão dos que, entretanto, neste residissem, em 1526. De notar que também na vizinha Espanha, já em 1499, havia sido publicada uma Lei que ordenava a expulsão dos ciganos que andam vagando pelos nossos reinos e senhorios (…) sob pena de que se (…) forem achados sem ofícios [conhecidos] ou sem senhores juntos, passados os ditos dias [60 dias], que dêem a cada um 100 açoites pela primeira vez, e os desterrem perpetuamente destes reinos; e pela segunda vez, que lhes cortem as orelhas, e fiquem 60 dias nas cadeias, e os voltem a desterrar, (…); e pela terceira vez, que sejam cativos dos que os tomassem para toda a vida (5). Posteriormente, em Portugal, no ano de 1573, D. Sebastião renovou a ordem de expulsão dos ciganos e caducou as licenças de permanência com o agravo de condenar as mulheres ao açoitamento e os homens às galés e, em 1579 – ano de desaparecimento de D. Sebastião, que levará à inauguração da dinastia Filipina, em 1580, em que Portugal e Espanha passam a ter um só Rei –, é editado novo Alvará proclamando que todos os nómadas devem sair do reino num prazo de trinta dias, sob pena de serem açoitados publicamente e degradados para sempre para as galés (6). Entre os séculos XVI e XVIII, uma série de leis e regulamentos envolveram a separação de homens e mulheres ciganas, a sua expulsão, o envio para o degredo, condenações às galés, bem como a retirada das crianças de idade inferior a nove anos, para serem cristianizadas na Casa Pia de Lisboa. Além do mais, em Espanha, começa a ser definido um número preciso de cidades onde seria permitida a permanência de pessoas ciganas, que culminaria num processo genocida conhecido como Gran Redada, que consistiu no cerco dessas mesmas “cidades ciganas” por parte do exército espanhol, com o fim de exterminar a “raça cigana”, numa quarta-feira, 30 de Junho de 1749. Esta operação, que acabou não sendo lograda como prevista, levou ao aprisionamento de cerca de 9.000 a 12.000 pessoas, entre elas homens, mulheres e crianças ciganas condenadas ao aprisionamento e à realização de trabalhos forçados. Portugal, tal como a Grã-Bretanha, por sua vez, encontraram outra forma de lidar com os ciganos, ao degredá-los para as colónias. Em 1538, Portugal já havia enviado ciganos para África e para o Brasil entre os primeiros colonos. Não obstante tamanha repressão, após o terramoto de Lisboa de 1755, o Marquês de Pombal ordena, em 1756, que os ciganos sejam condenados a trabalhos forçados nas obras públicas de reconstrução de Lisboa não havendo presentemente navio para Angola, em que [pudessem] ser transportados os ciganos (7). Sim, a Lisboa que historicamente tem vindo a ser negada aos ciganos, foi reconstruída também com a sua mão-de-obra. Alguns anos passados, nos séculos XIX e XX – mesmo depois de reconhecida a cidadania aos portugueses ciganos, em 1822, foram uma vez mais publicadas leis específicas que tinham como objectivo controlar parte dos cidadãos portugueses, com especial atenção aos ciganos, mais tarde denominados “nómadas” (Regulamento da GNR de 1920 e de 1985). A esta vigilância racializada eram acrescentadas ordens no sentido de que a permanência de cidadãos ciganos num mesmo lugar não excedesse as 48 horas. Esta perseguição, que desde cedo impediu a fixação das famílias ciganas em território português, resultou num nomadismo continuamente imposto e forçado. É importante fazer notar que em meados do século XX, altura em que tecnologicamente a eficiência de matar atinge níveis nunca antes vistos, acontece o Samudaripen/Projamos, com o extermínio de cerca de 500 mil (número oficial) pessoas ciganas durante o regime nazi às mãos dos Alemães e seus cúmplices. Breve história da perseguição organizada em Portugal a partir do século XX No final do século XX e em pleno século XXI, como se toda esta violência organizada não fosse ainda o bastante, observam-se várias decisões políticas da parte de autarquias locais que, reproduzindo o histórico de perseguição anticigana, tentaram expulsar dos seus territórios estas populações. São disso exemplos paradigmáticos os casos de Ponte de Lima, em 1993, e Faro, em 2003. A estas decisões de cariz estatal juntam-se ainda as atitudes ciganófobas de diversas populações locais, que reiteradamente se organizaram reivindicando a expulsão de pessoas ciganas das localidades, como aconteceu em Oleiros na década de 90, em Vila Verde em 1996, e em Francelos em 1999. Mais recentemente, em Ferreiras (Algarve), no decorrer de um processo de realojamento, os protestos da população conduziram à realocação de uma comunidade cigana de Albufeira no terreno de uma antiga lixeira, no meio de uma pedreira em funcionamento, processo unilateralmente decidido pela Santa Casa, a Assembleia e a Câmara Municipal de Faro, com o apoio de todos os parceiros institucionais ligados à acção social (CLAS). Tal denota a forma como as representações históricas racializadas sobre as comunidades ciganas e veiculadas por instituições como a escola ou os media se arraigaram no seio da comunidade portuguesa não-cigana. Deste modo, alvos de violência e objeto de leis de exceção (um pouco por toda a Europa) que pretendem promover a sua exterminação física e cultural (8), as pessoas ciganas foram, desde cedo, constituídas politicamente como o “outro da Europa” (9), o que, em conjunto com a constituição do “outro colonizado”, devolveu à Europa a imagem de si mesma enquanto espaço geopolítico e identitário. Esta perseguição sistematizada resultou no empobrecimento sistemático das pessoas ciganas, que, para além de não poderem permanecer no reino/país, circular livremente ou morar juntos, não tinham autorização de ter bens – várias foram as leis que proibiram aos ciganos diversas profissões, inclusive tratar com bestas (10), e que decretaram que se confiscassem as suas propriedades sem qualquer indemnização. Deste modo, também muitas das políticas ditas de inclusão das comunidades ciganas, em particular as políticas de habitação e realojamento, orientadas por uma ideologia historicamente segregacionista, acabaram por conduzir à guetização das comunidades ciganas. Assim, em pleno século XXI, a quase totalidade das famílias ciganas em Portugal não tem acesso a escolher os espaços onde habita, enquanto que um terço se mantém forçosamente nómada e cerca de metade depende das políticas de habitação social para ter acesso mínimo a um direito constitucional que devia ser universal – a habitação, recorrendo paradoxalmente à instituição que tem, em grande medida, perpetuado a sua exclusão: o Estado. É de notar que, embora esta precariedade habitacional se manifeste um pouco por todo o território, as comunidades ciganas que habitam o Alentejo têm sido particularmente fustigadas por estes processos de violência, onde muitas são as famílias que habitam em tendas e barracas de lona e madeira, sem acesso a água, luz e saneamento. Breve história do Bairro das Pedreiras a partir do século XXI O Bairro das Pedreiras, na capital do Baixo Alentejo, sintetiza, de forma paradigmática, a violência histórica que se tem vindo a perpetuar sobre as comunidades portuguesas ciganas, no decorrer dos últimos cinco séculos. Sujeitos racializados da modernidade europeia por excelência, a emancipação parece ser, tal como acontece com as comunidades afrodescendentes, ainda uma questão inacabada (11). E a existência de espaços como o Bairro das Pedreiras sublinha isso mesmo, já que conta a forma como processos de racialização, meticulosamente esculpidos ao longo do tempo, reverberaram no racismo institucional contemporâneo, responsável, em grande medida, por segregar e relegar à exclusão socioeconómica um conjunto de pessoas, um pouco por todo o território português. Em tempos encerrado por um muro de três metros de altura – construído pela Câmara Municipal de Beja sob pretexto de proteger as crianças da estrada que desenhava uma das fronteiras do lugar –, o Bairro das Pedreiras viria mesmo a ser apelidado como o “Cemitério dos Vivos”. Tal aconteceu uma vez que, a adornar o muro, se plantaram ainda elevados ciprestes e ali se descarregaram (e descarregam ainda), de tempos a tempos, terras provenientes de um qualquer cemitério. O muro, símbolo material de um apartheid racial imposto diretamente pela autarquia a um segmento da comunidade cigana de Beja, viria a conduzir à condenação do Estado Português, em Junho de 2011, por violação da Carta Social Europeia, nomeadamente nos seus Artigos E (direito à não-discriminação), Artigo 31 (direito a uma habitação adequada), Artigo 16 (direito à família e a uma proteção social, jurídica e económica), e Artigo 30 (direito à proteção contra a pobreza e exclusão social) (12). Deste modo, a queixa apresentada formalmente pela European ROMA Rights Centre (ERRC) espelha de forma axiomática como os Estados se afiguraram, tantas vezes, como os maiores indutores de precariedade na vida das pessoas (13). Mais, o caráter não-vinculativo da decisão mostra como a legislação internacional de direitos humanos se afigura, muitas vezes, como um fenómeno mais discursivo do que como uma prática de justiça. Neste sentido, a condenação a nada obrigou o Estado e o “muro da vergonha” ali continuou até 2015, altura em que foram os próprios habitantes a derrubá-lo parcialmente. Contudo, embora o signo mais evidente da segregação tenha sido erradicado, o isolamento do lugar e dos corpos que o habitam continua num sítio onde a pobreza se agiganta para uma comunidade de quinhentas pessoas – todas elas ciganas. O Bairro das Pedreiras é um lugar onde quem não tem carro demora três quilómetros a pé para chegar ao centro de saúde ou ao supermercado, atravessando, sem qualquer passadeira, a derradeira fronteira para a cidade: a estrada nacional, tão mais perigosa que aquela situada ao lado do muro. É um lugar onde não se avista cidade e onde não se saúdam vizinhos, já que à sua volta se estacionam os carros da coleta do lixo no Armazém de Materiais da Câmara, se produzem as rações da fábrica que polui ao perto, ou angustiam os cães que habitam o Canil Municipal. Tudo isto redesenha metaforicamente as linhas com que se cose a desumanização desta comunidade, perante uma indiferença generalizada do resto da sociedade. Acrescente-se ainda que a passagem de um esgoto a céu aberto pelo centro do bairro, tantas vezes entupido, tem contribuído para a proliferação de ratazanas e baratas que acordam, a horas tardias, o sono das famílias. Ao racismo ambiental soma-se ainda uma precariedade habitacional obtusa, já que no Bairro das Pedreiras ora se habitam modestas casas de alvenaria em sobrelotação, ora se habitam barracas, tendas e velhas roulottes sem acesso a água, luz ou saneamento. O início desta história remonta a 2005, quando a Câmara Municipal de Beja construiu – sem qualquer tipo de plano urbano, em terrenos da Santa Casa da Misericórdia – um conjunto de cinquenta habitações exíguas onde foram realojadas, em 2006, um conjunto de famílias que habitavam então nos arredores de uma lixeira, no Carmo Velho (hoje, Bairro da Esperança). Nesse processo de realojamento, pareceu não importar que nas casas não coubessem todos, o que naturalmente propiciou a construção adjacente de pequenas tendas que serviram para albergar os restantes membros dos agregados. À medida que se casavam filhos e filhas, outras tendas surgiram, já que, à imagem dos seus pais, também muitos deles não possuíam condições económicas para poderem sair do bairro. Alguns que possam ter tentado terão enfrentado ademais a recusa dos senhorios em arrendar casa a pessoas ciganas. Neste sentido, não deixa de ser fundamental perceber de que forma uma comunidade que se imagina historicamente como nómada tem, paradoxalmente, uma exígua margem de escolha face aos lugares que habita, já que a perseguição histórica tem vindo a limitar as suas opções de habitação, seja pela acção do Estado (expulsão ou segregação), pela condição económica das populações, ou pelo racismo quotidiano. Assim, à medida que o tempo foi passando, as pessoas ali continuaram a viver. No entanto, em 2015, foi ordenado pela Câmara Municipal a todos os que haviam construído as suas barracas de tenda e lona, que dali levantassem acampamento e se mudassem para uma pequena colina, uns metros mais afastada das casas de realojamento, mas sempre no mesmo terreno. Assim fizeram e uma vez mais, pelas suas próprias mãos, reconstruíram as suas casas, tal como muitos outros fizeram antes de si, repetindo ad aeternum uma luta pela sobrevivência e pela dignidade. Contudo, no passado Agosto de 2017 – em plena campanha para as eleições autárquicas – a Câmara Municipal de Beja viria a emitir uma ordem de despejo, decretando que as famílias que habitavam nas tendas e roulottes deveriam abandonar o terreno. E, uma vez mais, os moradores e moradoras reagiram, iniciando um processo de contestação à acção com a ajuda de um advogado e de activistas ciganos e ciganas. Este processo conduziu a que a autarquia se comprometesse a não efetuar expulsões enquanto uma solução não fosse encontrada com a Secretaria de Estado para a Igualdade e Cidadania. Sublinhe-se, no entanto, que embora ali permaneçam até aos dias de hoje, estas famílias continuam a viver numa situação de precariedade habitacional imensa, sem acesso a água, luz ou saneamento básico, mas frequentando a escola, cursos de formação e alfabetização, e reivindicando melhores condições de habitação, que os protejam das chuvas e do frio do Inverno, das cobras que ali se passeiam no Verão, e que lhes tragam a água pelos canos e a luz pelas fichas. Ana Rita Alves Piménio Ferreira Notas European Union Agency for Fundamental Rights (2016), “Novo inquérito revela que 80 % dos cidadãos ciganos correm risco de pobreza”, Comunicado de Imprensa, 29 de Novembro. Fanon, Frantz (2008 [1952]), Black Skin, White Masks. London: Pluto Press. Auzias, Claire (2001), Os Ciganos ou o Destino Selvagem dos Roms do Leste. Lisboa: Antígona, pp.47. apud Cortés, Augustin (1997), “Los gitanos en España”. Disponível em: http://www.unionromani.org/histo.htm. Consultado a 06/11/2017. Isabel y Fernando, Medina del Campo ,1499, recogido en la Novísima Recopilación, Libro XII, título XVI. Bastos, José G. Pereira (2007a), “Que futuro tem Portugal para os Portugueses Ciganos”, in Mirna Montenegro (ed.), Ciganos e Cidadanias, Lisboa: Cadernos ICE, nº 9. “Memoria das prncipaes providencias que se derão no terremoto, que padeceu a Corte de Lisboa no anno de 1755”. Lisboa, 1758, pag. 106. Bastos, José G. Pereira (coord.) (2007b), Sintrenses Ciganos: uma abordagem estrutural – dinâmica. Sintra: Câmara Municipal de Sintra. Maeso, Silvia; Araújo, Marta (2011), “Civilizing the Roma/Gypsies. Public Policies, employability and the depolitisation of (anti-)racism in Portugal”, Centro de Estudos Sociais, Novembro 2011. Lei pela qual D. João V proibia que se usassem os trajes e a língua dos ciganos. Lisboa, 1708, Novembro, 10 – “e os chamados ciganos ou pessoas que como taes se tratarem não morem juntos mais que athe dous cazaes em cada rua nem andem juntos pellas estradas nem pouzarão juntos por ellas ou campos nem tratarão em vendas e compras de bestas”. Nimako, Kwame; Willemsen, Glenn (2011), The Dutch Atlantic: Slavery, Abolition and Emancipation. London: Pluto Press. European Commission against Racism and Intolerance (2013), Relatório da ECRI sobre Portugal (quarto ciclo de controlo), Julho. Estrasburgo: Concelho da Europa. Butler, Judith (2009), Frames of War: when is life grievable? London, New York: Verso. SOS Racismo, Agenda 2006 e SOS Racismo, Agenda 2018. Mais...
Fronteiras: morte por controlo remoto
Nos primeiros dias de Abril, a União Europeia (UE) impunha aos seus Estados-membro que iniciassem controlos de identidade a toda a gente que quisesse entrar ou sair do espaço comunitário. Estes controlos, que já se aplicavam a cidadãos de fora da UE, estendiam-se assim aos de dentro e, na prática, significavam que todas as pessoas que atravessassem uma fronteira aérea, terrestre ou marítima veriam as suas identidades confrontadas com o Serviço de Informações de Schengen e a base de dados da Interpol, permitindo às polícias fronteiriças o acesso a uma quantidade incomensurável de dados pessoais, a maioria dos quais pouco ou nada relevantes para o seu trabalho concreto. Oficialmente, tratava-se de tentar identificar cidadãos comunitários que pudessem ter sido apanhados nas redes do extremismo islamita. Um argumento pouco sólido, se se considerar que estes terroristas que se procuram são, na sua grande maioria, pessoas cujos registos estão limpos. Por outro lado, e nas palavras do próprio coordenador da UE para a luta anti-terrorista, Gilles de Kerchove, «as informações sobre os terroristas que são cidadãos comunitários e tentam regressar é frequentemente incompleta». Talvez por isso se fale numa nova categoria de pessoas que deverá fazer soar os alarmes fronteiriços: unknown wanted persons, cuja tradução poderia, talvez, ser «suspeitos desconhecidos». Se não fica claro que os objectivos desta operação são outros, fica, pelo menos, claro que esta não seria a estratégia mais evidente para atingir esses objectivos. Os resultados, ou melhor a sua ausência, comprovam-no. Dois a três dias depois, a Eslovénia suspendia a nova regra europeia por ser causa de engarrafamentos intermináveis na fronteira com a Croácia. Houve também notícias de grandes filas em Espanha e na Grécia. Na tentativa de encontrar mecanismos que impeçam terroristas de entrar e atacar, por exemplo, aglomerados de pessoas, tudo o que as autoridades da UE conseguiram foi criar aglomerados ainda maiores e menos protegidos. Uma ironia que se vem juntar a essa outra de as vítimas dos ataques em Bruxelas de Março de 2016 terem as suas compensações presas por questões burocráticas. Ao todo 324 pessoas tiveram de receber tratamento hospitalar. Dessas, 224 ficaram por lá mais de 24 horas. Um ano depois, a atleta Karen Northshield ainda estava em recuperação no hospital e afirmou ao jornal belga De Standaard que o governo a abandonou. Como ela, mais ninguém terá ainda recebido qualquer tipo de indemnização ou apoio, graças às teias legais que os advogados das seguradoras tão bem manejam. Karen Northshield é assim apenas um dos muitos casos que demonstram como a burocracia serve os poderosos e como estes, apesar de se dizerem todos Charlie, não estão dispostos a gastar dinheiro com ele e as suas necessidades. Já em Maio, gravações telefónicas mostravam a leveza com que as autoridades italianas negaram auxílio a mais de 400 sírios à deriva no Mediterrâneo durante cinco horas. Acabariam por morrer 268 pessoas, incluindo 60 crianças. Pela mesma altura, soube-se também que a Grécia alterava as regras dum fundo de que a UE dispunha para que as pessoas cujos pedidos de asilos eram rejeitados pudessem, sem custos próprios, ser devolvidas para a Turquia. Uma alteração de regras que retira esse direito a quem decidir apresentar recurso perante uma decisão negativa. Estas trapalhadas e estes ataques aos direitos à livre circulação, à compensação e à própria vida, tudo coisas que aconteceram no espaço de pouco mais do que um mês, seriam suficientes para demonstrar a desumanidade da política de fronteiras da UE. No entanto, e infelizmente, estes episódios são apenas a ponta dum iceberg cuja secção mais escabrosa está bastante menos visível. Uma outra parte, já desenvolvida num número anterior, é a que diz respeito ao facto de a própria construção da política de fronteiras da UE ser ditada pelas mesmas empresas que acabarão por lucrar com ela. Outra parte, também já analisada no MAPA, diz respeito ao desvio de fundos destinados a ajuda ao desenvolvimento para o controlo fronteiriço à distância. Mas há mais, como esta de financiar ditaduras e os seus massacres de que se falará a seguir a partir do exemplo do Sudão. Um dos cinco maiores «produtores» de refugiados do mundo tem nas mãos uma parte fundamental da gestão do fluxo de migrantes da UE. Risível, se não fosse dramático. A parceria entre a UE e o Sudão iniciou-se através do Processo de Cartum (Iniciativa para a Rota Migratória UE-Corno de África). «Formalmente lançado na conferência ministerial realizada em Novembro de 2014, em Roma, é um diálogo regional sobre migração mantido entre os Estados-Membros da UE e nove países africanos do Corno de África e países de trânsito, bem como a Comissão Europeia, a Comissão da União Africana e o Serviço Europeu para a Acção Externa. O objectivo é estabelecer um diálogo permanente sobre migração e mobilidade no intuito de reforçar a cooperação em curso, mediante a identificação e a execução de projectos concretos.» Uma parceria que é, sobretudo, financeira e que se aprofundou na cimeira da La Valleta, em Novembro de 2015, com o estabelecimento do Fundo Financeiro de Emergência para África, desenhado para dar resposta à crise migratória das regiões do Sahel 1 e dos Lagos do Chade, assim como do Norte e do Corno de África. Este Fundo foi dotado de cerca de 2 mil milhões de euros. Deste dinheiro, foram tirados 173 milhões para questões relacionadas com gestão de migrações dentro do Sudão. A Europa quer enviar câmaras, scanners e servidores para o regime sudanês registar refugiados, assim como treinar a polícia fronteiriça e dar assistência na construção de dois campos com salas de detenção para migrantes. Em meados de Dezembro de 2016, a UE aprovou a última parte dos fundos para o Sudão, num total de mais 38 milhões de euros. Em Janeiro de 2017, a pareceria foi reafirmada num encontro entre um enviado da UE e um sub-secretário do ministro sudanês dos negócios estrangeiros. O Sudão de al-Bashir Omar Hassan Ahmad al-Bashir é o presidente do Sudão desde 30 de Junho de 1989 quando tomou o poder através de um golpe de Estado. Em 4 de Março de 2009, o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão para a captura de Omar al-Bashir por crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra. Tem assim o desaconselhável mérito de ter sido o primeiro Chefe de Estado em exercício a ser alvo de um mandado internacional de captura. Na contabilidade do regime de al-Bashir constam pelo menos 300 mil mortos e mais de 1 milhão de deslocados devido aos ataques letais da milícia pró-governamental Janjaweed que, em 2013, passou a chamar-se Força de Apoio Rápido (FAR). Em Janeiro de 2016, o Observatório dos Direitos Humanos das Montanhas Nuba condenou as práticas violentas da FAR contra civis em Abbasiya Tagali, na província sudanesa do Cordofão do Sul. E, em Junho de 2016, a FAR levou a cabo uma campanha de detenções em Ed Damazin, capital do estado sudanês do Nilo Azul, durante duas semanas, depois de ter havido protestos contra a sua presença na área e acusações de atrocidades contra civis. Por seu lado, vários relatórios da Human Rights Watch afirmam que o regime sudanês trabalha em conjunto com redes criminosas de tráfico humano, chegando a acusar a polícia e o exército de terem vendido refugiados. O apoio da UE Apesar do documento de apresentação do Fundo Financeiro de Emergência para África afirmar que o seu objectivo fundamental é «lutar contra as causas profundas da desestabilização, das deslocações forçadas e da migração irregular, promovendo a igualdade das oportunidades económicas, a segurança e o desenvolvimento», a verdade é que os fundos de emergência que nos são vendidos como apoio ao desenvolvimento vão sobretudo para controlo fronteiriço puro e duro, conforme demonstram as minutas de reuniões semi-secretas e outros documentos classificados a que tiveram acesso o jornal alemão Der Spiegel e o programa da também alemã televisão pública ARD, “Report Mainz”. Quando se lida com ditaduras tão sangrentas, não é de todo surpreendente que o material financiado pelo Fundo de Emergência seja desviado para a opressão e repressão da população civil. Mukesh Kapila, antigo representante do Sudão na ONU, disse que o envio de fundos e apoios da UE está a dar ao regime mais recursos para suprimir o seu próprio povo. Para mais, e ainda de acordo com o Der Spiegel e a ARD, um general próximo do Ministro do Interior do Sudão terá já afirmado que a tecnologia que receberão não será utilizada apenas para registar refugiados, mas também sudaneses. O aprofundamento das relações entre a UE e o Sudão tem implícito o apoio à milícia Janjaweed, aliás, Força de Apoio Rápido. Uma Força que, tal como a milícia sua antecessora, é conhecida pela facilidade com que viola os direitos humanos e ataca manifestações. É essa mesma FAR que foi contratada para controlar migrações através de fundos da UE, como se pode confirmar quando, em Janeiro deste ano, e de acordo com as palavras do governo sudanês, a FAR desmantelou uma operação de tráfico de migrantes para a Líbia. Uma colaboração corroborada em Agosto de 2016 na voz do líder da FAR, Mohamed Hamdan “Hemeti”. A UE, por seu lado, diz que não trabalha com as autoridades sudanesas, que não está a apoiar a FAR e que a assistência ao Sudão é fornecida numa base bilateral e regional através de agências internacionais e organizações locais. No entanto, ainda não informou que agências internacionais e organizações locais são essas. Conhecendo o Sudão e a forma como o regime trabalha, ninguém duvidará que os fundos serão canalizados por organizações que estejam sob o seu controlo, como acontece, aliás, há décadas. O dinheiro nunca precisou de viajar por canais oficiais para acabar nos bolsos do governo. Muito menos num país que a Tranparency International considera um dos mais corruptos do mundo. Se se importasse realmente com a utilização dos fundos que canaliza, a UE deveria monitorizar a sua aplicação ao invés de fingir ignorância. Ismail Omar Tairab, membro do Comité Nacional do Sudão para o Combate ao Tráfico de Seres Humanos, numa entrevista ao site Al-Tagyeer, para além de acusar a UE de focar toda a sua atenção na segurança, omitindo a necessidade de ajudar os migrantes dentro do país, afirma também que «a UE quer tornar o Sudão numa enorme prisão para migrantes e é por isso que todas as parcerias que construíram foram com a polícia. (…) Os fundos não se destinam a proteger migrantes, apenas a policiá-los.» O Sudão, outrora internacionalmente considerado um Estado fora-da-lei, está agora em posição cimeira na distribuição de interesses e apoios da UE, graças à sua posição estratégica enquanto local de passagem de migrantes. Mas não está sozinho. Há acordos semelhantes, já assinados ou em construção, com outros Estados igualmente pouco aconselháveis, como a Eritreia ou a Líbia. Une-os a forma como as migrações os legitimam enquanto parceiros credíveis e recomendáveis. A priorização duma agenda de curto prazo de paragem dos fluxos migratórios e a submissão às necessidades da indústria do armamento, da vigilância e do controlo é o quadro da política fronteiriça da UE. Um quadro que mantém as praias europeias relativamente limpas de cadáveres. através do assassinato de migrantes por controlo remoto. Ilustrações de Arthur C. Wandeur Notes:O Sahel é uma faixa de 500 a 700 km de largura, em média, e 5 400 km de extensão, entre o deserto do Saara, ao norte, e a savana do Sudão, ao sul; e entre o oceano Atlântico, a oeste, e o mar Vermelho, a leste. ↩ Mais...
Fascismos in vitro
Em tempos de pandemia, as tendências autoritárias aprofundam-se e a sua aceitação alastra. Um primeiro e incompleto quadro das degenerescências mais visíveis em direcção a uma sociedade fascista que nos foram dadas a observar nas geografias mais próximas. Ilustração de José Smith Vargas No Estado espanhol, a perseguição a comunidades ciganas é enorme. Na generalidade, as suas formas de habitação e socialização não são compatíveis com confinamentos, e a necessidade diária de ganhar dinheiro ainda menos. As práticas de ultra-higienização recomendadas são impossíveis para quem tem um acesso muito limitado à água. As chamadas medidas de contenção têm, na realidade, implicações muito diferentes para grupos diferentes, não apenas com base na idade e no estado de saúde, mas acima de tudo relacionadas com as desigualdades sociais de classe, género e etnia. A única notícia que nos chegou do Estado vizinho por via dos média empresariais foi a de que «as autoridades espanholas impediram cerca de três dezenas de nómadas portugueses de permanecer num terreno situado na cidade fronteiriça» de Badajoz, com que o jornal Público nos informava que essas pessoas tinham sido expulsas para território português, porque as autoridades espanholas alegavam «riscos de contágio por Covid-19». Mas esse não é um caso isolado. De tal forma que a sevilhana Federação de Associações de Mulheres Ciganas FAKALI alertou a imprensa espanhola para o facto de que a crise do coronavírus «trouxe, directa ou indirectamente, certos episódios racistas, anti-ciganos e claramente xenófobos». Em Santoña, Cantábria, por exemplo, onde tinham morrido seis pessoas e cinco delas eram ciganas, o alcaide (presidente da Câmara) Sergio Abascal sublinhava uma linha que separava «o colectivo cigano» e «o resto da população», fazendo ainda alusões depreciativas, no sentido de potenciadoras de contágio, a práticas culturais da comunidade. Em confinamento obrigatório vigiado pelo exército, os elementos desta etnia foram presenteados via WhatsApp e outras redes sociais com mensagens onde um indivíduo pedia a prisão de todos os ciganos e dizia «que cantem e dancem ali fechados até que morram todos… Estão a infectar toda a gente. A ver se morrem todos, bebés, crianças, idosos e a puta que os pariu». Aliás, para além das medidas habituais de prevenção da contaminação da Covid-19, alguns Estados da União Europeia (UE) introduziram medidas adicionais direccionadas às comunidades ciganas. Na Bulgária, por exemplo, alguns políticos referiram-se-lhes como «uma ameaça para a saúde pública» que exigem regras especiais, tais como checkpoints policiais à volta dos seus acampamentos. Mas houve respostas semelhantes noutros Estados, tais como a Roménia, a Eslováquia (onde os acampamentos são controlados pelo exército) e a República Checa. Por cá, em lusas terras, já se anunciara o fecho das escolas, já o «fica em casa» soava mais a ameaça do que a conselho, e os despejos continuavam, afectando sobretudo pessoas não brancas. A 24 de Março, no seguimento de um comunicado da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), o seu presidente, Prudêncio Canhoto, afirmava: «Em Portugal temos ciganos com muitas dificuldades. Os feirantes estão parados. As pessoas querem dinheiro para comer e não têm. A sorte de alguns são as famílias. Quem tem alguma coisa vai ajudando, mas os feirantes vivem do negócio e do que vendem, não dá para dar muito.» Houve também o caso dos ciganos forçados ao nomadismo, em Elvas, de onde foram expulsos pelas autoridades locais. A 26 de Março, a Cáritas da Guarda alertava que a «comunidade cigana vai ser um problema, as feiras não existem, eles não têm dinheiro e começam a ter dificuldades, aparecem na Cáritas mais vezes para receber os bens alimentares». No dia seguinte, em Portimão, a Câmara Municipal anunciava a ida de técnicos à «comunidade de etnia cigana nos bairros sociais da Cruz da Parteira e das Cardosas/Mira Cabo, num alerta para a importância da adopção de novos comportamentos sociais e boas práticas para a contenção da propagação do coronavírus», não se esquecendo de acrescentar que «as visitas [são] apoiadas por agentes da PSP». Antes, a 12 de Março, Ihor Homeniuk, um ucraniano que vinha assinar um contrato de trabalho com uma empresa portuguesa de construção civil, foi fechado numa sala do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do aeroporto de Lisboa e espancado durante 20 minutos com murros, pontapés e um bastão extensível. Até à morte. De acordo com o Mandado de Detenção dos três inspectores do SEF, a que a Revista Sábado diz ter tido acesso, na ficha de entrada no Instituto de Medicina Legal, os responsáveis do SEF escreveram que o ucraniano tinha sido encontrado na rua. Este crime, que aparentemente nada tem a ver com a pandemia, deveria, pela gravidade, pela extrema gravidade, ter feito correr rios de tinta, deveria ter provocado piruetas sincronizadas do Chega e da CMTV, talvez até um Prós e Contras, mas , afinal, viu-se esmagado pelas vagas implacáveis da maré da Covid-19. Imagem de Tibor Janosi Mozes Hungria Mas nem só de racismo é feito o fascismo em ascensão. Por todo o lado, revela-se nas suas caras habituais. Discursos de união e orgulho pátrio, centralização de poder, medidas administrativas que ultrapassam as já escassas garantias da democracia parlamentar, policiamento de comportamentos, militarização da sociedade e um clima generalizado de chibaria. Poder-se-ia brincar com a construção da UE e chamar-lhe «fascismo a várias velocidades». Uma corrida onde os Estados que vão à frente se situam na antiga zona de influência soviética, o que talvez tenha algum significado. Na Hungria, por exemplo, o primeiro-ministro Viktor Orbán, fiel ao seu longo historial de enfraquecimento da democracia, fez aprovar uma legislação de emergência sem precedentes que lhe dá poder ilimitado para governar por decreto, o que quer dizer que não precisa de consultar ninguém para fazer leis. É o primeiro país da UE a ser colocado sob o comando individual do primeiro-ministro. Os críticos chamam-lhe a «lei do empoderamento», uma vez que permite uma grande dose de flexibilidade a Orbán para suspender ou alterar qualquer lei existente e introduzir novas medidas. Teoricamente, estas medidas podem manter-se até que o governo declare o fim do «estado de emergência». Para além disso, a validade da lei do empoderamento não está ligada ao carácter excepcional da ordem legal e necessita de ser revogada de forma autónoma, após a declaração do fim do estado de emergência. Uma cláusula que escancara as portas a qualquer intenção que se esconda. As eleições e os referendos serão adiados durante o tempo de emergência. Orbán pode proibir manifestações públicas e silenciar opositores e meios de informação. É ele quem decide quando acaba o actual estado de emergência. O código criminal também sofre alterações. Os tribunais passam a poder condenar quem considerem que espalha informação falsa ou que possa causar pânico ou que dificulte a eficácia das medidas de combate à pandemia. A liberdade de expressão estremece. Ainda por causa dos seus novos poderes, 13 líderes do Partido Popular Europeu (PPE – agrupamento partidário democrata cristão/conservador no Parlamento Europeu) subscreveram uma carta a apelar que o Fidesz, partido de Viktor Orbán, fosse expulso do PPE. «Há algum tempo que temos acompanhado a degradação do Estado de Direito na Hungria. O Fidesz está neste momento suspenso do PPE devido ao seu falhanço em respeitar o princípio do Estado de Direito. No entanto, desenvolvimentos recentes confirmam a nossa convicção de que o Fidesz, com as suas actuais políticas, não pode ser membro pleno do PPE», lê-se na carta dirigida ao presidente do PPE, Donald Tusk. O PSD e o CDS-PP, membros desse grupo parlamentar, não assinaram a carta. Entretanto, em plena crise sanitária, aproveitando a distracção generalizada, Orbán decidiu também propor uma lei que acabaria com o reconhecimento legal para pessoas transgénero, ao estipular que o género deve ser definido como «sexo biológico baseado nas características e cromossomas sexuais iniciais». Uma lei que iria obrigar o registo civil a preencher o campo «sexo à nascença», tornando impossível a alteração de género legalmente reconhecido de qualquer pessoa. Esta regulamentação, que é parte duma lei sobre vários assuntos não relacionados com a Covid-19, será votada pelo parlamento e não está, portanto, ao abrigo da lei do empoderamento. Mas serve para demonstrar que, mesmo nestes tempos, o governo húngaro não se esqueceu das suas outras batalhas. Os direitos trans e a chamada «ideologia de género» são assuntos muito queridos à direita mais à direita e o primeiro–ministro da Hungria já tinha introduzido medidas que, na prática, impedem as universidades de leccionarem estudos de género. Foto de commons.wikipedia.org Eslovénia A 13 de Março, a Eslovénia ficou com um novo governo de direita, quando, num parlamento de 90 lugares, 52 deputados da coligação do SDS (Partido Democrático da Eslovénia), SMC (Partido do Centro Moderno), NSi (Democratas Cristãos Nova Eslovénia) e DeSUS (Partido Democrático dos Pensionistas da Eslovénia), assim como alguns membros do Grupo das Minorias (italiana e húngara) Nacionais o votaram para o executivo. No seguimento do pedido de demissão do anterior primeiro-ministro, Marjan Šarec, a Eslovénia é dirigida por Janez Janša (SDS) pela terceira vez desde a sua independência. Se bem que a gestão da crise por parte de Šarec não fosse perfeita do ponto de vista do Estado de Direito − no início do contágio, o ministro da saúde fez passar um decreto que limitava os direitos dos profissionais de saúde, algo que só poderia ter feito em caso de epidemia, que ainda não tinha declarado −, não havia uma quebra sistemática da normalidade legal. Na nova situação política, não se pode dizer o mesmo. A legislação de emergência mais invasiva está a ser aprovada por quem não tem autoridade estatutária para o fazer. A lei eslovena obriga a que as medidas excepcionais em tempos de epidemia (regulação temporária de certos aspectos do sistema de saúde e limitações à liberdade de movimento e reunião, ou quanto aos produtos que podem ser livremente vendidos) sejam tomadas apenas pelo ministro da saúde. No entanto, desde a mudança de poder, todos os decretos que pretendem conter a Covid-19 foram postos em prática não pelo ministro mas pelo próprio governo. Mesmo que se considere que o ministro faz parte do governo e que tudo é, no limite, uma questão de burocracia, o facto é que o conteúdo dos decretos vai para além que é permitido. Por exemplo, a lei diz que o ajuntamento de pessoas em locais públicos pode ser proibido. Com base nisso, o governo decidiu despejar todos os estudantes, por todo o país, com um aviso de menos de 12 horas, sem oferecer alternativas para habitação. No dia em que tomou posse, Janša criou o Quartel-General de Gestão da Crise, que tomou conta da comunicação, liderança e coordenação das respostas à epidemia. O primeiro-ministro ficou a liderá-lo, instalou uma equipa com os seus aliados mais próximos e reduziu a participação de peritos. A gestão da crise passou do ministro da saúde para o da defesa. É importante referir que este novo corpo de gestão não tem base legal para existir. Ou seja, a sua composição, as suas competências legais, as suas funções, a forma de se relacionar com outras entidades públicas, as formas de controlo público das suas acções não estão determinadas ou regulamentadas. A crise está a ser gerida por um corpo extra-legal, uma estrutura paralela de poder sem base legal e, por isso, sem competências definidas e sem obrigatoriedade de prestação de contas. É a partir deste quartel-general que o governo esloveno tem conduzido uma campanha de difamação e ódio sobre o jornalista Blaž Zgaga, (a quem chama «doente psiquiátrico que fugiu da quarentena»), o filósofo Slavoj Žižek e outros intelectuais que ousam pôr as novas medidas em causa. O governo proibiu os jornalistas de entrar no parlamento e deixou de dar conferências de imprensa. Em alternativa, enviará declarações directamente para a televisão. Não há, portanto, direito a perguntas. A Associação de Jornalistas Eslovenos reagiu: «Achamos que, apesar da seriedade da situação actual, é uma medida desproporcionada e restritiva. Questionar os que estão no poder é fundamental para o controlo democrático e a própria democracia e é a primeira função dos jornalistas.» Uma reacção que pode, talvez, ser vista como leve, perante este espreitar do olho brilhante e esfomeado da besta fascista. Numa espécie de profecia, publicada a 1 de Abril no site Eudaimonia & Co., escrita como se nos chegasse de 2060, Umair Haque mostrava o que se aprofundava ao mesmo ritmo da completa desestabilização da vida humana e planetária: «Na Grã-Bretanha, as pessoas continuaram a culpar os europeus pelos seus problemas. Na Europa, era os africanos, os judeus e os muçulmanos que eram demonizados. Na Índia, os não hindus. Na China, toda a gente que não fosse da maioria Han. E assim por diante. Essa descida em direcção a um fascismo autoritário produziu um mundo completamente incapaz de cooperar para resolver o mais profundo de todos os problemas: o colapso duma civilização, à medida que os seus macro-sistemas e instituições se desfaziam, fracturavam, implodiam.» Na década de 2040, os campos de concentração e as investidas genocidas serão coisas do dia a dia por todo o planeta, de acordo com essa “Breve e assustadora história das próximas três décadas” de Umair Haque. No entanto, não é preciso esperar até essa altura para ver as peças a começarem a formar um puzzle cada vez mais discernível. Nem é preciso atravessar o Atlântico, em direcção aos EUA, onde vive Umair, para se ter uma visão cada vez clara do fascismo que tenta trepar estes momentos e os que virão. *** Mais...
Refugiados na luta contra a Covid-19
Foto de https://coa.nl/ Num comunicado de 30 de Março, a Câmara de Seine-et-Marne afirmava ter mobilizado os refugiados para preencher a falta de trabalhadores agrícolas estrangeiros sazonais (que não podem, neste momento, viajar para França) necessários para a apanha de frutas e legumes, uma tarefa tão mal paga que é recusada pela generalidade dos franceses. Não se sabe se os refugiados, gente que, no dia anterior, era «imigrante ilegal», sem rosto nem nome, estão de acordo com esta «mobilização». Assim como não se sabe como (ou até se) vão ser pagos e quais os seus direitos, nomeadamente no que diz respeito à saúde, aos acidentes de trabalho, à habitação ou à reforma. Por fim, não se refere se esta participação no «esforço de guerra» resultará em legalização automática. Também na Alemanha, os refugiados passaram, de repente, a ser necessários e queridos. Na Saxónia, epicentro do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, as autoridades exigiram que os migrantes com formação médica ajudassem a combater a Covid-19. Apesar de serem frequentemente vítimas de ataques (políticos e outros, como vimos) , há muitos refugiados que se estão a chegar à frente e a presentear-nos com exemplos de solidariedade, apoio mútuo e decência humana. Na cidade holandesa de Ter Apel, o maior centro de recepção de requerentes de asilo, alguns de entre estes decidiram voluntariar-se para desinfectar os cestos das compras em supermercados. «Ajudamos toda a gente e, se digo pessoas, quero dizer toda as pessoas», afirmou Dyar, um curdo do norte da Síria, ao site euobserver.com. Um outro destes exemplos chega-nos de Turim. A Mosaico é uma organização dirigida por refugiados e costuma ajudar requerentes de asilo no que diz respeito às questões burocráticas e à sua integração. Mas, com a pandemia a atingir o norte de Itália de forma muito intensa, a Mosaico suspendeu as suas actividades e focou-se no combate ao coronavírus. «Apoiamos tanto refugiados como sem-abrigo», afirmou ao mesmo site Yagoub Kibeida, o director da organização, distribuindo comida a pessoas em dificuldades, independentemente da origem ou dos seus antecedentes. Mais...
Gentrificação? Retalhando a Quinta da Boneca!
A cidade das Caldas vai crescendo e as micro parcelas de Mata Secular na Estremadura, que se estendeu de Alcobaça à Lourinhã, são cada vez menos. Desde a plantação do Pinhal de Leiria que a flora da Zona Oeste tem vindo a ser destruída, com a introdução posterior do agro-negócio, do turismo de luxo, da especulação imobiliária e do desenvolvimento económico. As poucas áreas com flora secular, reconhecidamente com a flora em risco, onde existe até uma planta que se considerava extinta, zona de habitação de várias espécies de animais e de nidificação de várias aves e local de passagem de outras nas suas rotas migratórias, estão a ser ameaçadas com acordos de construção de habitações de luxo ou agricultura intensiva Em 2019, a construtora Linto & Marques assinou um contrato de compra de uma parcela da Quinta da Boneca para a construção de vivendas com piscina. Na Quinta da Boneca existe o aqueduto e os túneis que forneciam a água à população através do Chafariz das 5 Bicas, construído em 1748. O terreno adquirido está próximo de outro espaço verde onde existe uma fonte, que a população chegou a utilizar para se abastecer de água, e parte da flora centenária. A Quinta é conhecida pelas suas grutas e túneis subterrâneos que vão transportando água para a fauna e flora dos espaços verdes. Na parcela comprada existe uma floresta autóctone e um ecossistema frágil. Num estudo de 2008, foram identificadas fortes razões para se proteger aquela área. Sendo uma delas a descoberta de uma espécie de planta (Fissidens exilism) considerada extinta, na altura na lista vermelha dos Briófitos da Península Ibérica. As abelhas, que correm perigo globalmente, encontram na Quinta da Boneca um refugio importante. Esta empresa já realizou vários investimentos noutras quintas que criam um cordão que vai ligar a Quinta da Boneca, a Quinta de S. José, para agricultura intensiva, e a Quinta de Santo Isidro, para a construção de 21 moradias com piscina privada. Estes investimentos estão encostados à Mata Rainha D. Leonor e ao Parque da Cidade com um projecto de hotelaria de luxo pela Visabeira. Para «parar a destruição do pulmão florestal no centro das Caldas da Rainha», foi lançada uma petição onde se exige à Câmara local que revogue a licença de construção na Quinta da Boneca. ………. Assina o Mapa Mais...
Hackers e Hospitais: como podes ajudar
A Fundação para o Software Livre (Free Software Foundation – FSF), é uma organização que começou por se dedicar à eliminação de restrições sobre a cópia, estudo e modificação de programas de computadores, através do desenvolvimento e do uso de software livre em todas as áreas da computação. Inicialmente, dedicava-se sobretudo à programação. Posteriormente, passou a tratar dos aspectos legais e estruturais da comunidade do software livre, do aperfeiçoamento das licenças de software e documentação e da catalogação e disponibilização de programas livres desenvolvidos (o Free Software Directory). Neste momento, em que software e hardware começam a ver as suas barreiras cada vez mais difusas, a FSF começa também a preocupar-se com este último. Numa altura em que, mais do que nunca, o conhecimento, o software e o hardware são fundamentais e em que, mesmo perante uma ameaça, ainda há quem prefira a propriedade à partilha, a própria FSF reorientou parte das suas preocupações para o combate colaborativo contra a pandemia da Covid-19. Num texto intitulado ‘Hackers e Hospitais: como podes ajudar’, afirmam que «muitos cientistas e médicos, há muito que perceberam que o software e os equipamentos médicos proprietários não são éticos nem adequados às nossas necessidades» e que «as restrições de software e hardware estão, na verdade, a dificultar a capacidade dos hospitais». Nesse sentido, anunciam um «um plano para contribuir» e dão dicas para que «te juntes a nós», porque «sempre acreditámos que, para a liberdade e a criatividade humanas, é fundamental ser permitido utilizar todas as ferramentas à nossa disposição sem restrições e, neste momento, talvez consigamos utilizar o software livre que construímos, preservámos e defendemos para salvar vidas.» O colectivo/redacção do jornal MAPA acompanha a FSF neste e noutros combates, editando, por exemplo conteúdos livres tanto no seu site como na sua edição em papel, e achou fundamental traduzir e partilhar o texto HACKERS and HOSPITALS: How you can help, de Dana Morgenstein, publicado em 31 de Março. Hackers e Hospitais: como podes ajudar Activistas do software livre, assim como muitos cientistas e médicos, há muito que perceberam que o software e os equipamentos médicos proprietários não são éticos nem adequados às nossas necessidades. A pandemia da Covid-19 fez com que algumas destas deficiências ficassem a ser conhecidas por uma audiência mais abrangente – e também deram à nossa comunidade uma oportunidade única para oferecer ajuda real e material num tempo difícil. Estamos a construir um plano para contribuir e esperamos que te juntes a nós: continua a ler para saberes o que podes fazer! Provavelmente já sabes que as restrições de software e hardware estão, na verdade, a dificultar a capacidade dos hospitais para consertar os tão necessários ventiladores e como alguns voluntários italianos enfrentaram problemas quando fizeram impressões 3D de válvulas de ventilador (como podes ver no link, as histórias variam quanto à interacção com o produtor, mas é claro que a empresa se recusou a libertar ficheiros proprietários de design, obrigando os voluntários a fazer engenharia inversa para perceber como construir cada parte). As lutas dos activistas do software livre cuja cobertura nós fizemos para que fossem libertados os equipamentos incluem: – Os esforços da directora executiva da Software Freedom Conservancy e vencedora do Free Software Award, Karen Sandler, para alertar para os perigos do software médico proprietário em aparelhos médicos, incluindo o seu próprio pacemaker; – As lutas da porta-voz da LibrePlanet e fundadora da OpenAPS, entre muitas outras pessoas, para ajudar quem tenha diabetes de Tipo 1 a tomar conta do seu próprio tratamento usando um Sistema Artificial de Pâncreas; e – Os esforços de muitos pacientes e activistas para melhorar a eficácia do tratamento da apneia do sono, hackeando as suas máquinas CPAP. Também vimos, com os nossos amigos da GNU Health e GNU Health Embedded, como o software livre pode trazer melhores respostas sanitárias e como a participação dos cidadãos comuns no processo científico pode ajudar a salvar o ambiente através do Public Lab, vencedor dos Prémios de Software Livre de 2017 e ajudar na assistência em catástrofes através do Sahana, vencedor do mesmo prémio em 2006. É, portanto, claro que a comunidade do software livre tem muita criatividade e muito conhecimento para contribuir nos dias duros que nos esperam e que, com mais de 350 mil pessoas infectadas pela Covid-19 na altura em que isto se escreve, é fundamental arregaçar as mangas para ajudar as pessoas a evitar a doença e a recuperar do coronavírus. Sabemos que a impressão 3D de equipamentos médicos não é de todo um passatempo aconselhável para amadores e que a produção de alguma coisa mais complexa do que roupas ou máscaras implica contributos de peritos. Mas também sabemos que, havendo falta desses equipamentos – e essa falta é quase certa -, a perspectiva é sombria. É por isso que estamos a ver o que conseguimos fazer com as nossas impressoras 3D (com certificado Respects Your Freedom – RYF) e estamos em contacto com o recentemente criado Mass General Brigham Center for COVID Innovation de forma a que nos ajudem a dirigir os nossos esforços. Também estamos a reunir recursos para o nosso plano HACKERS and HOSPITALS na página wiki LibrePlanet e, se tiveres conhecimentos, impressoras 3D ou materiais com os quais possas contribuir, por favor contacta o Michael através do email sysadmin@fsf.org. Se não tiveres capacidade de produzir material médico e quiseres, à mesma, ajudar, podes fazer pesquisa a partir de qualquer lado apenas com um computador e uma ligação à internet. Acrescenta, na página wiki, qualquer projecto que esteja a trabalhar com licenças livres na ajuda ao combate à Covid-19. Sempre acreditámos que, para a liberdade e a criatividade humanas, é fundamental ser permitido utilizar todas as ferramentas à nossa disposição sem restrições e, neste momento, talvez consigamos utilizar o software livre que construímos, preservámos e defendemos para salvar vidas. Mais...
Cultivar autonomia, colher comunidade:
No início eram baldios. Não daqueles ancestrais, montes comunais que circundam aldeias e que são posse...Comunix:
Num ano trágico que pôs o país a olhar para um interior desertificado e a...Baldio da Serra de Serpa
Até há um século atrás o mais vasto território comunal do país situava-se a Sul na...O regresso das florestas zombies
O sonho das empresas de celulose de tornar Portugal um país de grandes plantações de eucalipto, com clones da mesma idade, sujeitas ao mesmo regime, num manto verde a perder de vista, daquelas geridas por drones, em que nem é preciso lá por os pés, insiste em não se concretizar em Portugal. O sonho dá lugar a florestas zombies. Qualquer pessoa que circule pelo norte e centro do país as encontra – plantações de eucaliptos queimados, mortos-vivos a regenerar parcialmente, sem vontade própria e sem futuro. Como é que árvores tão amadas, trazidas à vida pelas mãos cuidadosas da engenharia genética, cheias de potencial, são tão descuidadamente entregues a pessoas incapazes de as proteger de incêndios recorrentes? No debate público, o culpado número 1 de todos os erros da floresta, sendo que por floresta se entende aqui o que dela fizeram – monoculturas de árvores sob a disciplina produtiva capitalista – é o pequeno proprietário absentista. Que bode expiatório tão conveniente, culpar quem não está lá e que não se sabe quem é. Donos e donas de meio hectare, seriam a principal pedra na engrenagem a impedir a realização do sonho verde. Vai-se naturalizando a ideia de que há que dar as terras a quem pode cuidar delas. E quem melhor pode cuidar delas do que quem tem o poder de investir? Pouco a pouco, naturaliza-se também a ideia de que o sonho das empresas de celulose tem de ser um desígnio nacional. Como nos lembram vezes sem conta, são os eucaliptos que ajudam a equilibrar a nossa balança comercial. O escudo de Portugal contra a austeridade é feito de eucalipto. Devíamos fazer do eucalipto a nossa árvore nacional, a base dos nossos perfumes, e ver se a conseguimos cozinhar. As pombas modernas da paz não levam ramos de oliveira, mas sim ramos de eucalipto. Podíamos aproveitar a oportunidade e fazer parques temáticos com coalas, aborígenes e o Crocodilo Dundee. Em terras que já não dão pão, se o eucalipto é que nos põe o pão na boca, há que educar o povo para a sua importância. O que me intriga é que quando olho para uma serra inteiramente coberta de eucaliptos até às linhas de água, nunca vejo as terras incultas dos proprietários absentistas. Que fantástica capacidade de coordenação! Somos um país de telepatas que conseguimos comunicar com pessoas desconhecidas? Como é que esse suposto mapa fragmentado de tanta pequena propriedade se torna num manto verde ininterrupto? Que magia! Mas quem gere estas árvores? Será que cresceram espontaneamente? Se é o caso, o eucalipto devia ter estatuto legal de espécie invasora. Para bem da nossa economia, é melhor criar um novo estatuto para o eucalipto: o de árvore mágica, capaz de se gerir a si mesma. Devemos também dotá-la de personalidade jurídica para que possa passar recibos e faturas quando se vende aos compradores. Doutra forma, os proprietários absentistas desconhecidos estariam a ser roubados por quem lucra com os eucaliptos que nascem nas suas terras. Apesar das suas propriedades mágicas, o eucalipto continua a arder. Os fazedores de zombies praticam todas as formas de injustiça ambiental. Não restauram os espaços florestais, não compensam os danos ambientais causados e a perda de serviços dos ecossistemas, nem previnem os riscos inerentes às plantações florestais, como os incêndios, com a consequente perda de vidas humanas. Não têm em conta a vulnerabilidade económica e social das populações das quais abusam, a violência social e os conflitos gerados pela ocupação de terras comuns e daqueles que não podem defender a sua propriedade contra terceiros, nem a perda irreversível de biodiversidade. Tudo em nome do abastecimento de matéria-prima a baixo preço. Mas o baixo preço não chega. É preciso qualidade. E a carne queimada dos zombies não serve para papel certificado. Quem serão os provedores capazes de assegurar as necessidades do mercado e, consequentemente, de todos nós, povo comedor de eucaliptos? O pequeno proprietário, absentista ou não, tem os dias contados. Ou está morto, ou já morreu e não sabe. Foi eliminado pela seleção natural do mercado por não se organizar para produzir eucaliptos certificados. As empresas de celulose, direta ou indiretamente, beneficiaram de dinheiro público, mas os proprietários privados terão de ser capazes de pagar os custos dos eucaliptos, ou perecer. O mundo não será dos pequenos. A Uber do eucalipto não será de proprietários particulares, será de acionistas. Os que agora comem pão de eucalipto, comerão migalhas, ou pó, ou nada. E enquanto houver injustiça ambiental, as florestas zombies vão surgir, regressando após cada ciclo de exploração intensiva e abandono. Enquanto os zombies não regressam, os vivos ocupam temporariamente a terra. Nascem alguns carvalhos, sobreiros e acácias, e já temos floresta no CORINE Land Cover. Por vezes alguns eucaliptos escapam e fazem vida com as outras espécies. Talvez aí possam ter um papel na nossa vida coletiva. Rita Serra Mais...
O Maio de 68 dos Vagabundos do Trabalho
Entrevista a Claire Auzias. Autora de diversos trabalhos sobre o povo cigano, publicou em 2017 a sua memória particular sobre o Maio de 68, contando a história dos trimards, o lumpen revolucionário cuja participação foi fundamental durante aquele ano agitado. Foto de Mediapart. Filipe Nunes – O teu livro conta a história do Maio de 68 a partir de personagens inesperadas. Pelo menos ao olhar da história e memória oficial, mesmo aquela feita por soixante-huitards. Este era um livro em dívida por dois motivos: porque fora prometido aos seus participantes ser editado nesse final dos anos 60; e porque estes intervenientes permaneciam na sombra da memória. Quem são os trimards? Claire Auzias – Essas pessoas, os trimards, são trabalhadores precários que trabalham de forma intermitente, de tempos a tempos, em trabalhos frequentemente qualificados, como electricistas, metalúrgicos, talhantes, por exemplo. São jovens, com menos de 20 anos, raramente 25 anos. Não têm encargos sociais, família a sustentar ou rendas a pagar. Como tal, encontram-se muito livres nos seus movimentos. Não são sindicalizados e vivem geralmente na casa dos pais, por vezes em casas partilhadas. O que eles preferem acima de tudo é encontrarem-se na rua com os seus amigos para viverem a sua vida em comum. Em Lyon o seu ponto de encontro era sob a ponte La Feuillée. Lá, havia alguns vagabundos de verdade, mais velhos (50 anos) e normalmente de nacionalidades estrangeiras, e muitos trimards. Essa palavra é uma gíria do século XIX e que se refere ao homem pobre que se arrasta pelas estradas em busca de trabalho. O trimard é um vagabundo do trabalho. Inicialmente trimard significa na gíria a estrada, e trimardeur aquele que toma a estrada. Corresponde aos hoboes americanos. É um trabalhador urbano da era industrial, que vai de cidade em cidade à procura de trabalho. Em Lyon, os jovens que se chamavam entre eles de trimards iam de fábrica em fábrica, mas geralmente na mesma cidade. De uma maneira mais moderna, chamavam-se igualmente entre eles de beatnicks, o que quer dizer que gostavam dessa liberdade de viagem (mesmo que um pouco imaginada). Eles bebiam muito vinho e álcool, drogavam-se voluntariamente com a droga dos pobres, o éter sobretudo, e lutavam entre si com muita frequência. Tinham o culto viril da violência. Gostavam de se vestir com blusões de couro e usavam correntes de bicicleta. A imprensa da época apelidava-os de «blusões negros». Entravam em confronto entre gangues e lutavam de forma violenta. E gostavam também muito dos primeiros concertos de rock´n roll no início dos anos 60, em que ficavam furiosos e partiam as cadeiras da sala de concertos. Essa cultura dos trimards definia a vida que eles gostavam de viver. Havia algumas mulheres entre eles, também drogadas e alcoólicas com os rapazes e também violentas, mas o seu retrato é mais difícil de fazer porque falta documentação. FN – Há nessa história uma relação que se estabelece entre os «violentos» e os que não ousam assumir essa conduta nos acontecimentos, salvaguardando-se do juízo do dia seguinte ou, crédula ou ingenuamente, proclamando que semelhantes acontecimentos podem decorrer à luz de um pacifismo. Sabendo à partida que este nunca tem lugar quando a revolta enfrenta e responde à violência institucionalizada. Como era gerida essa relação e a sua discussão em 68? CA – Em Maio de 1968 eu tinha 17 anos e era uma liceal. Juntei-me ao movimento do 22 de Março a título de liceal e organizamos a greve geral dos liceus da cidade sob o nome de «CAL, comité de acção dos liceus». Eu estava bastante envolvida e no centro dos acontecimentos, mas não no centro das decisões dos meus camaradas estudantes. Isso significa que não posso testemunhar os debates no centro de poder das decisões. Mas foi um dos nossos camaradas estudantes do movimento do 22 de Março que foi procurar esses trimards sob a ponte La Feuillée para os convidar a virem ocupar a universidade connosco. Porquê? Para lutar contra a polícia. No seu testemunho posterior em 1970, os trimards confirmaram esse facto. Mas o que eu posso dizer é que o desafio de os receber na faculdade ocupada causou muitos problemas a todos. A grande maioria dos ocupantes queria livrar-se deles, fazê-los sair. Porque eles metiam medo a toda a gente, pareciam selvagens, estavam sempre bêbados, drogados ou ambos, eram barulhentos, violentos e davam muito espectáculo. Partiam o mobiliário da universidade com facilidade, eram musculados e falavam alto. Para os ocupantes respeitáveis da universidade, o seu desafio era corporativista. Eles pensavam que a universidade deveria albergar unicamente as pessoas que trabalhavam na universidade, professores e estudantes. Mas os revolucionários e sobretudo o movimento do 22 de Março (ex-anarquistas, pro-situacionistas e ex-trotskistas) pensavam o contrário e que todas as forças revolucionárias podiam instalar-se na faculdade, que seria assim um centro da acção e das decisões das actividades revolucionárias. É por isso que não havia na faculdade apenas estudantes universitários, mas também pessoas que não o eram: liceais como eu, trabalhadores membros de grupos revolucionários e os trimards. Além disso, durante o dia, vinham visitantes de todo o lado, das fábricas sobretudo, que vinham participar nos ateliês de debates e de decisões. Daí que uma das grandes querelas que se jogou no interior da ocupação da faculdade foi: como expulsar os trimards da faculdade para a maioria, e como manter os trimards no seio da faculdade para a nossa minoria. Éramos muito poucos a defender os trimards no seu direito de insurgentes de corpo inteiro e tínhamos de enfrentar para isso o conjunto de forças mobilizadas à nossa volta, ou seja o sindicato estudantil, o sindicato dos professores,e os grupúsculos esquerdistas. Cada um pensava seja numa acção corporativista e reformista, seja que detinham o direito da vanguarda revolucionária de modo a decidir quem faz o quê, quando e como. FN – A história que está na origem do livro – barricadas e enfrentamentos com a polícia que veio anunciar ter resultado na morte de um polícia e na acusação de três trimards, para depois ser provado que essa morte não passou de um ataque cardíaco – leva-nos a outra das constatações mais evidentes. A de que perante qualquer revolta de grandes proporções, não é a repressão policial violenta que mais importa ao Estado, mas a manipulação mediática que importa fabricar. CA – Rapidamente compreendemos que os nossos camaradas trimards eram bodes expiatórios fáceis para o governo. Assim que nos apercebemos que eles estavam presos, acusados da morte de um comissário de polícia durante a noite de barricadas em Lyon, rapidamente tomámos a decisão de os defender. Ora a defesa principal consistia em dar a conhecer a sua detenção e dar a conhecer a sua inocência. Era impossível condenar três pessoas por um motim urbano inteiro. Todos participámos nesse motim e, se havia um responsável, era o motim colectivo. O essencial do trabalho consistia em demonstrar que os jornais e os media estavam a contar coisas falsas sobre eles ou que os media não diziam nada da realidade. Foi um longo trabalho a lutar contra a imprensa oficial e mesmo a imprensa de esquerda, e por fim alargar a questão do seu julgamento a um nível nacional. A extrema-direita policial queria culpados e vingar-se. Nós ganhámos essa batalha e os nossos camaradas trimards foram absolvidos e libertados. O segundo argumento contra os trimards era que eles eram presos comuns e não presos políticos, oficialmente. O nosso comité de apoio dizia o contrário: mesmo que os trimards sejam pessoas vulneráveis, frágeis, com pouca educação e que poderiam ser facilmente manipuláveis, nós vincámos a ideia de que eles tinham sido acusados por um facto muito político: as barricadas do Maio de 68 e, como tal, haveria que atender à sua situação. E eu acrescentaria que nós quisemos apoiá-los precisamente porque eles estavam privados de toda a protecção militante normal. Era uma questão de honra colectiva para todos nós, os soixante-huitards, de estender a solidariedade a pessoas como eles. Eles tinham combatido connosco, eles tinham vivido connosco na faculdade durante um mês de insurreição, estávamos ligados pelo acontecimento revolucionário e nós tivémos que continuar o caminho com eles na repressão. Cartaz de apoio a Raton e Munch, dois jovens trimards, que foram acusados da morte de um comissario da policia durante os distrubios em Lyon. Acabaram por ser absolvidos. FN – Mas não haverá lugar a um certo refreio ao elogio marginal do trimard? Tal, ontem e hoje, não nos coloca perante uma incómoda linha entre o defensável e o indefensável? Entre a partilha da linha da frente da revolta e do enfrentamento nas ruas e os preceitos éticos de quem se lança nesses enfrentamentos, não se escusando eles mesmos de condutas em si mesmo autoritárias e condenáveis? CA – A linha que separa aquilo que é defensável daquilo que não é defensável, no Maio de 68 com os trimards, é a que separa os leninistas e os outros, isto é os anti-autoritários. Os leninistas consideravam os trimards como o proletariado Lumpen que havia que desterrar. Os anti-autoritários, anarquistas e marxistas conselhistas consideravam pelo contrário que esses proletários Lumpen eram nossos camaradas e que partilhávamos as mesmas lutas. Mas se eu me recuso a fazer um elogio massivo dos trimards é por outra razão. É porque os trimards eram pessoas reais, com muitos problemas de coexistência connosco. Estavam sempre bêbados, ou drogados ou as duas coisas, muito enervados, muito excitados, com muito espectáculo e muito violentos, repito-o. Eu fiz parte das pessoas que mantiveram contactos com os trimards depois do Maio de 68. Eles vinham às nossas casas, às nossas residências de estudantes; dormiam por lá alguns dias, ou mais. E há que dizer a verdade: os trimards eram pessoas psicologicamente danificadas, que tinham vivido vidas muito duras, com muita violência familiar, por vezes a dormir na rua. E viver com eles é difícil. Isso não pode ser negado. Eles não eram nenhuns anjos e eles não são nenhuma nova figura messiânica. Nós não somos padres, não temos responsabilidades sobre almas malditas e queremos combater juntos as opressões comuns e gerais, não fazer caridade. Eu gostaria por isso de sublinhar que abordarmos os trimards exige uma lucidez sem mentiras, pois poderemos deparar-nos com situações difíceis que teremos de enfrentar. A acção é evidentemente o espaço ideal para estabelecer uma causa comum com eles, mas poderão criar-se situações em que há que dizer: não, em nome da igualdade e do respeito aos próprios trimards. Mais...
A caminho do Colapso
Carlos Taibo é professor de ciências políticas na Universidade Autónoma de Madrid e autor de uma longa lista de livros sobre..Em Montemor-o-Novo há uma cooperativa que vai do prato à casa
A Cooperativa Integral Minga, em Montemor-o-Novo, promove uma economia de proximidade e é plataforma de movimentos locais autónomos nas áreas..Felizmente continua a haver luar (Abril/Junho 2019)
Alan, um velho amigo com espírito jovem e perspicácia nunca desmentida, vive em Washington a uma certa distância da Casa Branca, num bairro onde se misturam latinos, pequenos funcionários afro-americanos da administração federal e uma comunidade de imigrantes etíopes com os seus apreciados restaurantes. Das nossas trocas epistolares nasceu a ideia de uma conversa sobre o actual ocupante da Casa Branca e o significado dos seus comportamentos, que vão além dos óbvios limites mentais do individuo e exprimem interesses de sectores particulares da classe dirigente estado-unidense. Uma conversa que procura compreender o que por vezes parece incompreensível, que procura desvendar lógicas que se escondem por trás de atitudes espectaculares. Não há que negar os aspectos irracionais que existem na política capitalista, mas o irracional tem, por vezes, a sua racionalidade. Vamos, portanto, desfiando o fio da meada nesta troca livre de comentários e de opiniões. As recentes eleições do midterm de Novembro 2018 mostraram um relativo enfraquecimento da base eleitoral republicana e particularmente de Trump. Mark Twain escrevia em 1879, num dos seus textos satíricos sobre os políticos: «Recomendo-me como homem idóneo que sou —um homem que tem por base a depravação total e que se propõe ser demoníaco até ao fim. » (« Um candidato à Presidência », Um candidato Idóneo, trad. Madalena Caramona, Antígona, 2017.) Será isto hoje mais evidente para os eleitores estado-unidenses? Alan: Como já tinha sido o caso em 2016, a maioria dos americanos que votaram desta ultima vez, votaram em candidatos liberais. Se, em termos gerais, Trump manteve as suas posições, isso deve-se antes de mais às particularidades da Constituição americana que, desde a sua origem, foi concebida para manter no poder as elites… que chegam ao poder. Em Novembro do ano passado, os Democratas teriam obtido ainda melhores resultados se tantos eleitores não tivessem sido postos de lado a pretexto de irregularidades de identificação e administrativas. Também houve manipulações de círculos eleitorais que permitiram a um partido (neste caso os Republicanos) obter mais lugares com menos votos do que o partido da oposição. O que me parece mais importante é que esta última eleição confirmou o interesse crescente do eleitorado, sobretudo dos jovens e das mulheres, pelas ideias sociais-democratas defendidas pela corrente do Bernie Sanders, que é hoje um político extremamente popular nos EUA. A sua candidatura à eleição presidencial de 2020 deve ser levada a sério. Desde 2016, o Partido Democrata encontra-se dividido em dois campos bem distintos, o dos sociais-democratas, que apoiam Sanders, e o dos neoliberais, que apoiaram o clã Clinton, representado hoje por Nancy Pelosi, chefe dos Democratas no Congresso. As duas tendências pensam possuir a chave do futuro, tendo em consideração as forças demográficas em jogo nos EUA, o número crescente de eleitores negros e latinos, e de mulheres, que manifestam maioritariamente a sua rejeição da infame misoginia de Trump e do seu gangue. Também as próprias consequências da política de Trump contribuem para enfraquecer a sua base eleitoral. As políticas destinadas a favorecer as grandes empresas e as grandes fortunas alienam parte do seu eleitorado. Todas as pessoas estão conscientes de que as recentes reduções de impostos promulgadas pelos Republicanos deixaram de lado a maioria dos estado-unidenses e favorecem as grandes fortunas e as grandes empresas. A guerra comercial que foi declarada aos parceiros exteriores tem um enorme impacto sobre a agro-indústria, que perdeu uma parte dos seus mercados de exportação. Os trabalhadores das indústrias metalúrgica e automóvel começam também a sofrer com as consequências desta guerra e as ameaças de despedimentos voltaram a fazer parte do quotidiano dos trabalhadores. Apesar de todo o barulho que Trump faz a propósito da subida dos valores bolsistas, a vida da maioria dos estado-unidenses é a cada dia que passa mais difícil. Os cortes nas ajudas e na segurança social, nos frágeis sistemas de ajuda médica, vão igualmente ter um impacto imediato sobre os meios populares que votaram Trump. Durante a sua campanha, Trump tinha prometido proteger estes frágeis sistemas, mas, dois anos depois, é evidente, salvo para os seus adeptos mais fanáticos, que as suas promessas não foram cumpridas. Na verdade, a única promessa a que ainda se agarra de maneira obsessiva é a da construção do muro, associada ao discurso xenófobo que a acompanha. A palavra fascismo parece ser hoje utilizada por praticamente toda a esquerda para caracterizar a administração Trump. Por outro lado, há quem veja no fenómeno Trump a prova do declínio histórico dos Estados Unidos e da decadência da classe política. A.: Mesmo um jornal como o The New York Times publica regularmente editoriais, tribunas e livres opiniões em que Trump é tratado por fascista. Dois respeitáveis professores de Yale publicaram recentemente livros de grande difusão que analisam as tendências fascistas do presidente. As análises são pertinentes, mas, como seria de esperar, estas sumidades não têm a mínima ideia de como se pode resistir ao fascismo, para não falar das suas propostas de actos de heroísmo pessoal… sem consequências práticas. A verdade é que, em geral, os liberais embarcaram no jogo verbal demagógico e na retórica do Trump, na enxurrada quotidiana de insanidades e de mentiras proferidas por este charlatão, um dia apresentando uma caravana de pobres imigrantes que tentam chegar ao «eldorado» como uma «invasão» aos EUA, outro dia negando os efeitos do aquecimento global sob o pretexto de que o Inverno é demasiado frio! O tratamento violento e arrogante de todas as opiniões de contestação, os casos de corrupção e de ilegalidade que envolvem os seus mais próximos colaboradores e familiares, a atribuição de lugares de responsabilidade do Estado a incompetentes fiéis ao chefe, são outros aspectos do vaudeville do regime. Entretanto, fora do campo espectacular dos meios de comunicação, o regime de Trump prossegue a destruição sistemática do que sobrava dos serviços públicos (já bem fragilizados pelo clã neoliberal dos Clintons), suprimindo as protecções ambientais que existiam, ignorando estudos científicos, e por aí fora. Num artigo recente, publicado no The New York Review of Books, Fantin O’Toole faz uma excelente descrição de tudo o que o regime Trump foi capaz de destruir até hoje. E depois ? Que virá ? A.: O Partido Democrata faz o que pode para se apresentar como o único remédio para Trump e para os Republicanos. É uma tarefa ingrata, tendo em conta o que fizeram durante as administrações precedentes e a fraquíssima popularidade das suas elites. Não se pode compreender a vitória de Trump sem ter em conta o ódio que havia nos meios populares pelos Clintons. Agora que ganharam as recentes eleições, os Democratas já se estão a preparar para as próximas presidenciais… A ideologia eleitoralista parece ser de novo dominante, e há no presente imediato poucos sinais de uma oposição ou resistência que tome a forma de mobilizações colectivas. No entanto, a sociedade estado-unidense é atravessada por profundas correntes contraditórias que aspiram todas a uma mudança. Há a corrente reaccionária, animada pelo medo do declínio, que se reconhece no fenómeno Trump e que visa a restauração duma América que nunca existiu. O cineasta Frederick Wiseman, no seu último filme Monrovia, Indiana, faz um retrato de uma comunidade da América do interior que corresponde ao eleitorado de Trump. Mas a corrente mais dinâmica é a que tomou forma e se desenvolveu depois do movimento Occupy, e que defende a necessidade da actividade colectiva para criar uma mudança real na sociedade. Ao contrário do que se pode imaginar, esta corrente está também presente nesta América do interior. Depois do Occupy nasceu o Black Lives Matter, com mobilizações contra actos racistas, com movimentos maciços contra o controlo dos imigrantes nos aeroportos e com manifestações de jovens contra os massacres nas escolas e a reivindicação do controlo da posse de armas. Mas a repugnância que provoca o regime de Trump acabou por levar, pelo menos momentaneamente, a juventude a investir de novo na actividade eleitoral. Não penso que essa atitude seja definitiva, é apenas um momento transitório. Deste ponto de vista, a candidatura de Sanders vai reforçar a tendência eleitoralista. Mas é uma situação complexa, ambivalente, porque o apoio a Sanders, além de ser um apoio a medidas clássicas sociais-democratas — que ninguém sabe como poderão ser aplicadas sem confronto com a classe capitalista numa sociedade como os EUA —, exprime também, eu diria mesmo que exprime sobretudo, uma rejeição da sociedade estado-unidense tal como ela é vivida hoje pela maioria da população. Uma sociedade doente e sem perspectivas humanas, decadente. Esta rejeição traz aspirações a outra sociedade, que vão além da política eleitoral e que exprimem uma radicalidade que não cabe no programa de Sanders. Por seu lado, o velho Partido Democrata faz promessas pobres e vagas, uma simples reparação das destruições provocadas pelo regime de Trump, um regresso ao Estado de direito burguês e uma «reparação» da economia através do fim das guerras comerciais, a salvaguarda dos frágeis sistemas de ajudas sociais e médicas para os pobres e para as populações idosas. Isto é: um miserável regresso ao ponto de partida, que era já calamitoso. A ideologia é uma coisa e a realidade política é outra. O Fascismo só se pôde impor como sistema político quando teve o apoio da classe dirigente, ou pelo menos das fracções mais poderosas desta classe. Trump tem o apoio dos mais ricos, das suas fundações e dos seus think thank, de grandes empresas e das forças da direita religiosa. Mas a questão é saber se estas forças são suficientemente sólidas para enfrentar e vencer as coligações capitalistas neoliberais que no passado deram o apoio material, financeiro, aos Clintons e ao regime de Obama. A.: Voltemos a essa questão do fascismo. O fascismo como formação política é um fenómeno do passado que assenta nos valores da segurança, uma ideologia baseada no medo, no ódio e na nostalgia de um passado mítico. A retórica de Trump refere-se efectivamente a um passado que nunca existiu, um passado onde as minorias aceitavam os limites que lhes eram impostos, onde as mulheres se submetiam voluntariamente aos homens, onde o poder global dos EUA não era contestado, onde havia emprego para todos e bem pago, onde os impostos eram baixos, onde os meios de comunicação exprimiam os valores conservadores da maioria. Por outras palavras, estes EUA são uma terra incógnita que nunca ninguém conheceu. Durante quanto tempo uma significativa parte dos capitalistas estará disposta a aceitar as esotéricas políticas económicas do regime Trump? A guerra comercial, por exemplo, é um puro produto das suas obsessões pessoais. Da mesma forma, a sua política externa obedece a critérios arbitrários e perigosos; o último exemplo é a promessa de venda de tecnologia nuclear aos chefes tribais da Arábia Saudita. Política que encontra uma oposição crescente do Pentágono e do poder dos militares, que a exprimem abertamente, como se tem visto com a demissão de altos cargos militares na sua administração. A potente rede de corrupção que envolve o seu clã mais próximo, a sua família, é também algo que desagrada aos grandes capitalistas e a sectores conservadores. A sua popularidade desceu a ponto de vários candidatos republicanos recusarem apoiá-lo na eleições de Novembro 2018, com receio de se verem associados à sua personagem. Tudo isto se jogará nas eleições de 2020. No seu recente livro Crashed: How a Decade of Financial Crisis Changed the World (Nova Iorque, Viking, 2018), Adam Tooze defende a ideia segundo a qual a crise de 2008 mostrou a impossibilidade de compreender hoje o que se passa no capitalismo sem se referir ao funcionamento do sistema financeiro. Tooze argumenta também que a passagem de economias nacionais a gigantescas corporações capitalistas globais trouxe consequências radicais. Porque esta passagem esvazia o projecto da intervenção keynesiana. Se a economia mundial está dominada por este tipo de megaconglomerados, e isso é um facto irreversível, continuar a pensar em termos nacionais é submeter-se a uma estrutura de pensamento obsoleta. Esta é a lição da crise actual. Um regresso ao Estado-nação é ilusório, a menos que seja acompanhado por uma reorganização radical da economia global, o que implica uma gigantesca perturbação do estado do mundo. Como interpretar as pretensões de política proteccionista da administração Trump com base neste quadro de análise? A.: Neste sentido, o regime Trump pode representar uma forma de decadência, de declínio dos EUA. Os seus projectos delirantes de proteccionismo e de refúgio isolacionista são apresentados como o caminho para uma retoma económica. Ora, o que se esta a ver é justamente o contrário. Parece evidente que, neste campo, Trump deverá enfrentar, mais cedo ou mais tarde, a oposição dos sectores mais poderosos da classe capitalista que «não joga só em casa», que tem os seus interesses a defender na preservação dum quadro capitalista global. Enquanto Trump os favorece, diminuindo os impostos e reforçando a suas capacidades de apropriação da riqueza produzida, está tudo bem. Mas desde o momento em que as condições da globalização da produção do lucro são ameaçadas, a contradição é insolúvel. É a luta de classes no seio da própria classe capitalista. Ilustração de Ana Farias Mais...