As revoluções não se fazem com ramos de flores

5 de Março de 2020
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As mobilizações de Génova contra o G8, em 2001, foram alvo duma repressão enorme, condenada inclusivamente pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que comparou as acções policiais a «actos de tortura» e que condenou o Estado italiano por não ter sequer identificado os responsáveis e os protagonistas da violência policial. As rusgas aos locais de abrigo e centros de média dos manifestantes (as Escolas Diaz e Pertini) ficaram famosas pela sua brutalidade, mas talvez a maior marca dessa opção policial tenha sido o assassinato de Carlo Giuliani. Nessa saga repressiva, o Estado italiano não se poupou em violências, detenções e, posteriormente, sentenças completamente desproporcionais (8 a 15 anos) sob a acusação oficial de «devastação e pilhagem».

O italiano Vincenzo Vecchi foi uma das vítimas desse processo e foi condenado, já em 2009, a doze anos e meio de prisão. É fundamental perceber que o crime de «devastação e pilhagem», considerado crime contra a ordem pública, foi introduzido pelo Código Rocco de 1930 e permite a condenação sem necessidade de prova de culpa concreta. Ou seja, de acordo com esse Código, basta estar presente no local onde decorre a manifestação para que a condenação seja possível, mesmo sem qualquer prova de participação directa nos actos pelos quais é acusado.

Dois mandados de detenção europeus 1 pendiam sobre Vincenzo. Um pela tal manifestação de Génova, de 2001, e outro, veiculado a uma pena de 4 anos, relacionado com a participação numa manifestação antifascista contra o partido Fiamma Tricolore, em Milão, em 2006. Para evitar cumprir essas penas, procurou refúgio em França (em 2011), mais precisamente em Rochefort-en-Terre (Bretanha).

No passado dia 8 de Agosto de 2019, foi detido pela polícia francesa, em colaboração estreita com os serviços secretos italianos, e levado para o centro de detenção de Vezin-le-Coquet, perto de Rennes, onde deveria esperar extradição para Itália. Durante meses, o tribunal de Rennes não outorgou essa extradição, considerando que os documentos fornecidos pelo Estado italiano eram insuficientes ou deficientes. Finalmente, a 15 de Novembro, o Tribunal da Relação de Rennes (Cour d’appel de Rennes), ao detectar «irregularidades no processo de execução» em França do mandado de detenção europeu emitido pela Itália, decidiu que Vincenzo Vecchi deveria ser posto em liberdade. Para o tribunal, o primeiro mandado já tinha sido executado e, no segundo, o direito a ter advogados italianos para além dos seus advogados franceses não lhe tinha sido notificado, o que configura uma violação do direito de defesa. Como houve recurso, esta decisão teria de passar para o Supremo Tribunal de Justiça (Cour de cassation). Mas, para já, Vincenzo Vecchi estava fora da prisão. «Saí, mas não estou livre» foram as suas palavras premonitórias.

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Três semanas depois da sua libertação, o Comité de Apoio a Vincenzo Vecchi (comite-soutien-vincenzo.org) 2 organizou um encontro informal com habitantes da zona de Rochefort-en-Terre , advogados e alguns jornalistas. «Não se trata duma história individual, o meu percurso inscreve-se numa história colectiva», insistiu por essa altura Vincenzo, apresentando-se como «um indivíduo que, tendo tomado consciência da marcha do mundo e querendo opor-se-lhe», se manifestou «com os meios que achava legítimos e fugi da minha condenação porque sabia que era injusta». O anarquista italiano prefere manter-se afastado das luzes mediáticas e chegou a declinar entrevistas por ser «melhor não falar deste percurso que excita a curiosidade dos jornalistas», explicou, antes de lembrar, em tom de evidência, que «as revoluções não se fazem com ramos de flores».

A 18 de Dezembro, o Supremo Tribunal de Justiça anulou a sentença do Tribunal da Relação de Rennes e Vincenzo Vecchi terá de se apresentar novamente a julgamento. «Ainda não sabemos quais as motivações do Supremo Tribunal de Justiça e qual o calendário futuro, mas esta decisão não afecta em nada os vários argumentos já apresentados ao Tribunal da Relação de Rennes pelos advogados de Vincenzo Vecchi, que demonstravam a deslealdade da Itália neste dossier», afirma um comunicado do Comité de Apoio, onde se diz também que o Supremo Tribunal de Justiça não «teve em consideração o direito e a necessidade da “dupla defesa”, que implica que um advogado francês esteja em contacto com um advogado italiano de forma a assegurar plenamente a defesa de Vecchi».

Há poucos dias, o Comité organizou uma conferência de imprensa na Assembleia Nacional, para aumentar a consciencialização sobre o caso de Vincenzo Vecchi entre membros do parlamento e senadores e alertar para as questões levantadas pelo Mandado de Detenção Europeu, nomeadamente a forma como mina as liberdades fundamentais. No caso concreto de Vecchi, chama acima de tudo a atenção o facto de o estatuto de «refugiado político» entre estados-membro da União Europeia não existir, o que é uma clara violação dos direitos humanos.

Notes:

  1. Implementado em 2002 para substituir a extradição, o Mandado de Detenção Europeu permite simplificar a entrega de pessoas procuradas ou condenadas no seio da União Europeia. «Com um formalismo e umas exigências tão pouco importantes», queixa-se Catherine Glon, uma das advogadas de Vecchi, «o seu único objectivo é acelerar o processo de repressão em detrimento das liberdades individuais».
  2. É fundamental referir que a solidariedade, corporizada no Comité de Apoio de Rochefort-en-Terre, tem tido um papel decisivo nesta luta. Não só na angariação de fundos que possibilitasse uma defesa legal decente mas também porque foi apenas graças ao seu trabalho de investigação (em relação permanente com o trabalho dos advogados) a partir do dia em Vincenzo foi detido, em Agosto, que se obtiveram e apresentaram provas jurídicas que permitiram a sua libertação. Também é importante referir que este Comité instigou a criação rápida de muitos outros comités, em França e no estrangeiro, que organizaram inúmeras acções para exigir a libertação do activista.

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