Vim, vi e Vinci?
Bem-vindos a bordo. Esta viagem levar-nos-á a descobrir o império Vinci, a multinacional que detém – e que pretende expandir – os aeroportos portugueses. Os sacos para vomitar encontram-se sob os assentos.
1.
Hoje há azáfama no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. É o «Dia do Sorriso», uma efeméride anual dos aeroportos do grupo Vinci. Os trabalhadores estão «à disposição dos passageiros para lhes prestar informações e para lhes oferecer refrescos e bolinhos. Sempre com um sorriso!»
Este aeroporto, que faz desfilar nos céus de Lisboa um avião a cada dois minutos e meio, promete ser neutro em carbono até 2050. «É com orgulho e com o maior sentido de responsabilidade ambiental que nos comprometemos com este ambicioso objetivo. Tudo faremos para estar sempre na linha da frente das boas práticas ambientais», afirmava o CEO da ANA, Thierry Ligonnière.
Percorrendo a pista, podemos ver as obras que a empresa começou em janeiro, com vista à «redução dos percursos e das emissões de CO2».
Também o novo aeroporto que pretende fazer no Montijo será um aeroporto «sustentável».
Foi em 2012 que a ANA Aeroportos de Portugal se tornou uma das mais de 2250 empresas do império Vinci. O negócio foi considerado, pelo governo e pela Troika, um enorme sucesso. A divisa do grupo mostra que estamos em boas mãos: «Atores do desenvolvimento sustentável dos territórios».
Podemos descolar.
2.
Enquanto sobrevoamos a península, um pouco de contexto.
A Vinci nasceu em 2000, fruto de casamentos estratégicos e concentrações capitalísticas do setor da construção francês. O elegante nome em latim permite fazer esquecer o de várias empresas (Lyonnaise des eaux, GTM, Dumez…) manchadas por casos de corrupção nos anos 1990.
O império Vinci, hoje um dos maiores do mundo, foi arquitetado pelo milionário Antoine Zacharias. Em apenas seis anos à frente da empresa, amealhou uma fortuna de 250 milhões de euros, tornando-se o mais bem pago patrão de França.
A acumulação de riqueza pessoal terá sido uma das fontes do conflito interno que forçou o seu afastamento. Para deixar a Vinci, o ex-presidente recebeu um prémio de 13 milhões de euros e uma reforma de 2,5 milhões por ano – mas viria ainda a exigir uma indemnização de 80 milhões de euros.
Aos 70 anos, foi também o primeiro patrão na história de França a ser julgado por ser pago em demasia, naquilo a que a imprensa internacional chamou um «momento histórico contra ganância empresarial».
Acusado de abuso de bens sociais, enriquecimento ilícito e abuso de poder, Antoine Zacharias goza hoje calmamente da sua reforma à beira do Lago Léman, na Suíça.
3.
Experimentamos alguma turbulência ao passar os Pirenéus.
Por qualquer lado que olhemos o hexágono francês, vemos o logo Vinci: na maioria das autoestradas, outrora construídas pelo estado, hoje fonte inesgotável de receitas para a concessionária; nos edifícios da Universidade Paris-Diderot, terminados em 2012 após uma saga judiciária e várias infrações de construção; no edifício de 100 mil metros cúbicos de betão de um reator nuclear de fusão, que implicou um contrato de 300 milhões de euros; em diversas prisões, que a Vinci não só construiu como também gere – em parcerias de tal forma ruinosas que o estado francês desistiu delas em 2018.
Falamos das famigeradas parcerias público-privadas (PPP). Um relatório apresentado ao senado francês em julho de 2014 chama-lhes «bombas-relógio orçamentais».
Perita em armadilhá-las, a Vinci é, segundo o Le Monde Diplomatique, uma «multinacional edificada às custas do estado francês» e o «arquétipo do predador de mercados públicos». «Da finança às autoestradas, dos aeroportos à promoção imobiliária, em dez anos a Vinci tornou-se uma máquina aspiradora dos fundos públicos», descreve uma investigação de 2014 da revista Politis. «Conjuga da melhor forma a complementaridade de setores: energia, construção e concessões de infraestruturas», explica a revista Challenges. «Impostas pelas políticas de austeridade, as concessões de serviço público perfazem essa discreta mas massiva privatização, que se faz em detrimento do contribuinte… e em benefício dos lucros da Vinci.»
Para além de acumular receitas que podiam ser públicas, a Vinci também é hábil em fugir aos impostos. Em 2017 os Paradise Papers revelaram que, graças a um estratagema fiscal na Bélgica, escapou, só em 2016, a impostos no valor de 18 133 554 euros.
4.
Chegamos à Rússia. As condições de visibilidade pioram. Aproximamo-nos da bruma da floresta Khimki.
O caso é o da nova autoestrada que liga Moscovo a São Petersburgo, e da adjudicação do seu primeiro troço em 2008. A primeira PPP russa no setor rodoviário previa gerar 1,5 mil milhões de euros de receitas para o concessionário. Quem? A North West Concession Company (NWCC), detida pela Vinci.
A empresa seria acusada de corrupção de agentes públicos estrangeiros, tráfico de influências, favoritismo e cartel ilícito. A queixa das associações Sherpa, Russie-Libertés e Bankwatch denuncia ainda o esquema de sociedades offshore da Vinci, que vão das Ilhas Virgens britânicas às Ilhas Caimão, passando pelo Chipre e as Bahamas.
O traçado da autoestrada implicava destruir a floresta de Khimki, o pulmão verde da capital russa, e destruir o último troço pristino do rio Kliazma.
Germinou então uma das maiores mobilizações ambientais na história da Rússia. A primeira manifestação da Save Khimki Forest trouxe para a rua cinco mil pessoas e juntou mais de 50 mil assinaturas. Segundo os ativistas, a NWCC contratou seguranças à paisana, para física e violentamente refrear a contestação.
Em 2008, Mikhaïl Beketov, chefe de redação do jornal Khimkinskaïa Pravda, que escrevia extensamente sobre o projeto, foi atacado com barras de metal. Paralisado, incapaz de falar, amputado de uma perna e de três dedos, acabou por morrer em 2013, aos 55 anos. Em 2009, Albert Pchelintsev, membro duma ONG contra a corrupção, teve a cara queimada por dois atacantes. Em 2010, o jornalista Oleg Kachine foi agredido com barras de metal e ficou cinco dias em coma. Evgenia Chirikova, uma das mais visíveis defensoras da floresta Khimki, fugiu do país após anos de ameaças sobre as suas filhas.
O Global Compact das Nações Unidas escreveu várias cartas ao executivo da Vinci, referindo as agressões ambientais e violações de direitos humanos. Solicitava à empresa que se abrisse ao diálogo sobre uma mudança de traçado. A Vinci recusou cooperar.
O escândalo tomou tais proporções que investidores como o Banco Europeu de Investimento se retiraram e, em agosto de 2010, o presidente Medvedev suspendeu o projeto e abriu um inquérito. Pressionado pela câmara do comércio francesa e pela Vinci, que ameaçou exigir 100 milhões de euros de compensação se houvesse mais atrasos devido a mudanças de traçado, o governo russo ordenou o reinício dos trabalhos.
A autoestrada Moscovo-São Petersburgo foi inaugurada em novembro do ano passado por Putin. Apesar de o comboio ser mais rápido, é uma alternativa mais cara. Durante os próximos 30 anos, as receitas das portagens são para os cofres do império Vinci.
5.
Estamos no meio do Oceano Índico, mas em território francês. Mostram-no os níveis de consumo: na exuberante Ilha da Reunião existem mais de 350 mil carros. No noroeste, entre a capital St. Dénis e Le Port, os engarrafamentos são diários.
Para lidar com a monocultura do carro e ressuscitar um transporte histórico, o anterior executivo regional desenvolveu o projeto de um comboio ligeiro, acarinhado pela população.
Mal foi eleito em 2010, Didier Robert, do partido conservador liberal criado por Sarkozy, desfez-se do projeto. No seu lugar, surgiu a Nova Estrada do Litoral: uma autoestrada de seis vias em pleno oceano. A responsável por esta «infraestrutura espetacular pela sua extensão e tecnicidade»? Vinci.
As obras arrancaram em 2014. E, nas palavras escolhidas pelo jornal Le Monde, «a obra faraónica tornou-se um pesadelo». O orçamento inicial de 1,6 mil milhões de euros vai em 2 mil milhões… para fazer 12,5 km de estrada. São 160 milhões de euros por quilómetro, enquanto um quilómetro de autoestrada normal em França custa 5 milhões. A inauguração, que esteve prevista para 2018, será no melhor dos casos em 2025.
A atribuição do projeto à Vinci está a ser alvo de um inquérito judicial pelo ministério público francês por «corrupção, favoritismo e tráfico de influências». Suspeita-se também de um cartel entre a Vinci e a Bouygues, outro gigante francês da construção; um duopólio que, através das suas várias filiais, assegura mais de 80% dos trabalhos de infraestruturas na ilha.
As críticas à mastodôntica estrada surgiram por toda a Reunião – e os protestos ganharam força contra as pedreiras que a obra exige. Em maio de 2019, o tribunal administrativo deu por fim razão à queixa da autarquia de St. Leu e de uma associação ambiental, e proibiu a abertura duma imensa pedreira, por se tratar dum atentado à população, ao ambiente e à biodiversidade.
Depois de cinco anos a betonar o mar, a obra está parada. Faltam 3,5 milhões de toneladas de rocha. A Nova Estrada do Litoral foi considerada pelo jornal Reporterre um dos «grandes projetos inúteis» do estado francês.
6.
Uma cidade inteira surge no deserto. Um frenesim de construção: marinas, centros comerciais, campos de golfe, linhas de metro… e estádios de futebol. Para o mundial da FIFA de 2022, o Qatar prevê gastar 187 mil milhões de euros: um festim para as grandes construtoras.
Alheias ao escândalo de corrupção que envolve as elites da FIFA, da França e do Qatar, trabalham aqui mais de um milhão e meio de pessoas migrantes. Vêm sobretudo da Índia e do Nepal. A cada ano, as duas embaixadas recenseiam centenas de mortes, devido a acidentes cardiovasculares causados pelo esgotamento, o calor e a desidratação.
Duas queixas-crime ajudaram a revelar as condições de escravatura que reinam neste novo deserto de betão. A empresa visada? Vinci.
Em 2015, a associação Sherpa e o sindicato CGT acusaram a empresa de recorrer a «trabalho forçado», «servidão» e «dissimulação».
Segundo a investigação da Sherpa, os trabalhadores da Vinci laboravam com o passaporte confiscado, entre 66 e 77 horas por semana, dormiam amontoados em quartos confinados e eram ameaçados de despedimento em caso de queixa sobre as condições de trabalho. Recebiam entre 50 cêntimos e 2 euros por hora – menos de 2% da média de salários do Qatar.
Havia ainda capciosos mecanismos internos para evitar que os acidentes de trabalho fossem conhecidos. Na Eurovia, subsidiária da Vinci, cada trabalhador que passasse 432 dias sem um acidente declarado tinha direito a um Luís de ouro. Em 2014, 99 trabalhadores receberam a cobiçada antiga moeda francesa. Segundo a CGT, este sistema incita o trabalhador a «não declarar os acidentes de que é vítima, tal como a dissuadir o seu subalterno ou o seu colega de o fazer». Enquanto isso, a falsa taxa zero de acidentes de trabalho assegura bónus às empresas do grupo.
A Vinci atacou então tanto a Sherpa como alguns dos seus membros com uma queixa por difamação. A indemnização exigida? 350 mil euros. Esta prática, apelidada em inglês SLAPP, é comum por parte das multinacionais. A empresa não espera vencer o caso (o tribunal veio de facto ilibar a Sherpa), procura apenas silenciar a crítica, mantendo os ativistas e a associação, com parcos recursos económicos, de mãos atadas enquanto se arrasta o processo.
Mas a associação não desistiu. Após nova investigação em setembro de 2018, com o Comité contra a Escravatura Moderna e, pela primeira vez, com ex-trabalhadores indianos e nepaleses, voltou aos tribunais. Acusam a Vinci por «trabalho forçado, tráfico humano, trabalho incompatível com a dignidade humana, falha em prestar assistência de primeiros socorros, colocação deliberada da vida de pessoas em perigo e ainda ocultação de lucros obtidos com estas ofensas».
7.
No regresso, passagem obrigatória em Notre-Dames-des-Landes, Nantes, França.
Para estes 1650 hectares de zonas húmidas e terras agrícolas estava previsto o Aeroporto do Grande Oeste.
Tal como em Lisboa, a elite política e empresarial francesa visionava aqui uma «grande porta de entrada para a Europa» e um espetacular crescimento económico. Tal como Lisboa, no mesmo ano em que pretendia construir um aeroporto amplamente contestado, Nantes foi escolhida Capital Verde Europeia. «Podíamos pensar tratar-se de uma piada», começava o artigo do Le Monde que anunciava a distinção, em dezembro de 2012. Tal como em Lisboa, a empresa promovia o novo aeroporto como um projeto «verde» e «sustentável». O seu nome: Vinci.
Em 2008, as terras foram ocupadas «contra o aeroporto e o seu mundo». Nasceu a ZAD: uma Zona a Defender auto-construída e auto-gerida, onde se resistia à polícia do estado e às máquinas da Vinci, e se experimentava uma sociedade livre de opressão. Por toda a França surgiram coletivos de apoio. Após violentas expulsões em 2012 e 2018, desaguaram na ZAD milhares de pessoas.
Após 50 anos de resistência e 10 de ocupação, o presidente Macron anunciou o cancelamento do projeto. 17 de janeiro de 2018 foi o dia da vitória histórica.
A Vinci não se escusou a exigir ao estado francês entre 305 e 425 milhões de euros de indemnização. O Conselho de Estado declarou tratar-se de um valor absurdo. Desta vez, como noticiou a televisão pública francesa, a «Vinci não ganhará o jackpot».
8.
Podíamos pensar tratar-se de uma piada. Estamos de regresso à Lisboa Capital Verde Europeia 2020, ao aeroporto «neutro em carbono em 2050», à pista em obras para «redução das emissões».
As obras que arrancaram em janeiro são as primeiras do mega plano de expansão aeroportuária acordado há um ano entre o governo e a Vinci. Implica quase duplicar o número de passageiros e de movimentos aéreos na cidade, e aumentar 40% as emissões da aviação. A Zero acusa a Vinci de «um estratagema absolutamente inaceitável» para «contornar a obrigatoriedade de um processo de Avaliação de Impacte Ambiental.»
Para além de expandir 30% a Portela, um aeroporto complementar no Montijo é a solução que permite à Vinci ter menos despesas e mais lucros durante os 50 anos da concessão. A ANA desaconselhava o Montijo quando era empresa pública. Desde que a Vinci tomou as rédeas, o governo diz que não há outra opção.
A Vinci é também a principal acionária da Lusoponte (Vasco da Gama e 25 de Abril). Se avançasse o Montijo, que não prevê qualquer acesso ferroviário, antever-se-ia mais um jackpot de portagens.
A experiência da Vinci em gestão aeroportuária limitava-se a aeroportos no Camboja quando foi escolhida entre oito candidatos à privatização da ANA. José Luís Arnaut, que é também Vice-Presidente da Associação de Turismo de Lisboa e membro da Goldman Sachs, foi um dos grandes intervenientes no negócio. Antes tinha sido ministro do PSD. Hoje é, nem mais nem menos, presidente da ANA.
Dois anos depois da privatização, a empresa tinha subido cinco vezes as tarifas aeroportuárias. Os números do turismo têm batido recordes. Façamos pois as contas: em seis anos, 869 milhões de euros de lucros, a que faltam os resultados de 2019. Em seis anos, a Vinci já recuperou aproximadamente um terço do investimento. Faltam 44….
«O modelo de privatização da ANA parece ter sido feito à medida da Vinci», concluem duas jornalistas do Expresso no livro «Negócios da China – Como a Troika abriu a porta à venda das empresas de bandeira». Para o diretor do Público, a empresa fez «um dos melhores negócios de sempre em Portugal».
Apesar dos bolinhos e dos sorrisos, estudantes, autarcas, investigadores, moradores, políticos e ambientalistas convergem num crescente coro de resistência à expansão aeroportuária – e ao sequestro da economia por impérios sinistros. O destino desta viagem cabe a todas nós decidir.
Obrigada por embarcarem connosco.
Texto de Francisco Colaço Pedro, ativista da campanha ATERRA (aterra.info). [franciscocolacopedro@gmail.com]
Ilustração de Rita Neves
Este texto foi publicado no site da Aterra, aqui.