O animismo fetichista do Candomblé afro-brasileiro e a espiritualidade no Ocidente (Parte I)
Este artigo é um salto no escuro. Abre-se à possibilidade de uma heresia contra as nossas próprias crenças. Nos dias que correm o óbvio é mais radical do que aquilo que se pensa e não poucas vezes a ganga de camadas de lugares comuns e de processos seculares de aculturação fazem-nos olhar com preconceito para a noção de espiritualidade. O tema é inesgotável e não é possível achar aqui acordo com a amplitude do questionamento às referências culturais e filosóficas que este convoca: espiritualidade, religião, a necessidade humana de transcendência, o uso da razão crítica e o maná da liberdade. Resta-me atirar a primeira pedra: ao passar à escrita, tal intento de reflexão converteu-se numa interminável fantasmagoria…
O sítio do terreiro é ermo e recôndito e não temos mais do que subir o morro seguindo os ecos da música e dos cantos que atravessam a noite. A melopeia africana é dolente com «um cunho de poesia selvagem e misteriosa» 1. Já se vê o barracão. À soleira da porta há cabaças com farofa amarela e azeite-de-dendê. Entramos no recinto e mergulhamos numa atmosfera de comunhão, mulheres, homens e crianças, som de palmas, guirlandas de papel de cores intensas, folhas de pitanga espalhadas pelos cantos, quartinhas d’água e cheiro a pau santo. O ritmo dos atabaques é agora mais intenso e a cadência torna-se cada vez mais rápida. Os iniciados ostentam vestes de todas as cores, mescla de sedas, veludos e panos de chita, adornados de colares de contas e missangas, lançam-se na dança e invocam os orixás. É um drama sagrado, um teatro indescritível à fraca luz das velas que rodeiam as oferendas e o peji, o santuário de fetiches, engrinaldado a murta e flores vivazes, e de onde sobe o fumo de ervas, raízes e incensos. Há quem dance liberto pela libido de sorriso nos lábios, há quem se mova agitado por tremores em aparente desmaio, há quem rodopie e dê saltos que terminam rente ao chão onde a giz se desenharam círculos e riscos indecifráveis. Há dedos que se entrelaçam, braços que se estendem para abraçar outro corpo, gestos cabalísticos que profetizam o mistério da conexão aos ancestrais. É a festa que chama as divindades à terra para o xirê, o momento de os orixás virem brincar no terreiro.
Tomando de empréstimo à cosmovisão do candomblé afro-brasileiro a sua dimensão histórica e cultural, o seu ethos e a politização das relações que os cultos de raíz africana implicaram na sua vasta e plural comunidade, bem como a sua profícua influência geral na sociedade, na religião (o sincretismo religioso), na política (a resistência e cultura quilombola), na música (o lundum, o maracatu, o maxixe, o samba), na culinária, na cultura popular (a capoeira) e na arte, procura-se aqui iniciar uma reflexão sobre as interrogações últimas e insondáveis do ser humano. Livrai-me de bosquejar uma visão esotérica sobre a espiritualidade. Semelhante busca seria uma profanação – tanto para os cultos animistas de tradição africana como para o culto da razão crítica… –, um desígnio a jusante da discussão que se pretende abrir. A índole esotérica cabe aos iniciados, aos elégún (aquele/aquela que pode ser «montado», possuído, por uma divindade, ou orixá) e aos abiãs, àqueles que se fazem à gira e partilham da fulgurante festa do candomblé.
Calundu, batuque e batucajé eram os termos mais correntes que designavam os cultos de origem africana no Brasil até ao século XVIII. Referiam-se genericamente às danças e aos cantos colectivos, acompanhados pelo som de instrumentos de percussão, às invocações dos ancestrais, à adivinhação, à cura mágica e ao transe.
Desde o período quinhentista e durante mais de trezentos e cinquenta anos, os navios negreiros transportaram através do Atlântico, não apenas um contingente de cativos destinados ao trabalho forçado no Novo Mundo, mas o seu universo plural de crenças, identidades culturais, étnicas e linguísticas. As convicções do ethos das populações escravas traduziram-se numa extraordinária resistência, mais atreita à criação defensiva e secreta de «um discurso oculto» – evocando a expressão do antropólogo James C. Scott – do que ao confronto aberto, infra-narrativa que todavia se opunha com determinação às forças de alienação e de extermínio do tráfico negreiro transatlântico, os senhores e os comerciantes de escravos, a Igreja Católica, o Reino de Portugal e, posteriormente, do Brasil independente e seus respectivos aparelhos de repressão.
Durante séculos, além da exploração, da repressão e da aculturação, a historiografia oficial sobre a cultura afro-brasileira foi realizada pelos próprios poderes repressores. Autores como Pierre Verger e René Ribeiro assinalaram que as primeiras menções às religiões africanas no Brasil apareceram a partir de 1680 a cargo do Santo Ofício da Inquisição, que denunciava «o costume dos negros, na Bahia, matarem animais para lavar-se no sangue» 2 e as «pretas da Costa da Mina que faziam bailes às escondidas, com uma preta mestra e com altar de ídolos, adorando bodes vivos, untando seus corpos com diversos óleos e sangue de galinha» 3. Verger, fotógrafo francês que dedicou grande parte da sua vida ao estudo e documentação dos cultos afro-brasileiros de tradição iorubá, demonstrou que o olhar dos próprios dominadores sobre o candomblé se estendeu para lá da segunda metade do séc. XX 4, comprovando a velha máxima atribuída a Orwell de que a história é contada pelos vencedores.
Os terreiros de candomblé consolidam-se no Brasil sobretudo após a abolição da escravatura em 1888 (Lei Áurea), constituindo-se em espaços que vão muito além do carácter de culto ao sagrado. À volta dos terreiros foi possível reconstituir heranças culturais, solidificar experiências sociais, de solidariedade e de ajuda-mútua não controláveis pelas forças repressoras, afirmar e recriar identidades culturais que permitiram a sobrevivência não apenas de uma memória colectiva, como a sobrevivência e emancipação política de um povo. Locais nucleares de encontro social e de reforço identitário, de lazer e solidariedade, não só dos negros e mestiços mas também das classes pobres brancas.
A história por contar do povo-de-santo, tão singular quanto plural, responde a várias interrogações: desde finais do século XIX, que espaço comunitário no Brasil reiterava a horizontalidade de género, praticava a sabedoria dos valores matriarcais, integrava como iguais homossexuais, lésbicas, bissexuais, brancos, indígenas, mestiços, pedreiros e prostitutas, médicos e agnósticos, e até a fina-flor da própria classe alta? Que grupo social oferecia uma prática de resistência duradoura e dissimulada contra as instituições repressivas (Estado, Igreja e Capital), servia de retaguarda às frentes de luta política progressistas, inclusive de grémios libertários, e funcionava como corpo de reinvenção de uma identidade cultural e política? Que entidade defendia uma perspectiva holística da relação humana com a natureza? Que grupo de homens e mulheres não vivia com o conceito maniqueísta do bem e do mal? E não acreditava no castigo? E vivia numa cultura hedonista e sem repressões da sexualidade? Que prática espiritual não tem um fundamento escrito, nem escritura sagrada, nem uma hierarquia centralizada? Que pulsão criativa foi fonte e inspiração de vários géneros musicais no Brasil?
Caminho estreito tem levado o ocidente na dialéctica de construção e destruição do imaginário de espiritualidade. O entremeado desse drama histórico é susceptível de mal-entendidos, pelo que convirá balizar a noção de espiritualidade, em si mesma relutante à fixação de uma doxa e aberta a uma pluralidade de interpretações.
Proveniente do termo eclesiástico latim spiritualitas, significa num sentido amplo a condição espiritual, referindo-se à disposição primariamente moral, psíquica ou cultural do indivíduo que tende a desenvolver as características do seu espírito. Num certo sentido, é possível falarmos de práticas espirituais sem que necessariamente estas evoluam sob o que geralmente consideramos uma religião organizada. De outro modo, debaixo de uma igreja, estaríamos a falar «da moral de rebanho», na acepção de Nietzsche. A espiritualidade (seria preferível falar em mística) de rebanho é convencionalmente relacionada, no Ocidente, à religião, na perspectiva de o ser humano e a sua conduta pessoal estar submetida a seres superiores (deuses e/ou demónios) e à crença na salvação da alma. Do ponto de vista das doutrinas filosóficas materialistas ocidentais, refere-se à oposição entre matéria e espírito ou mesmo entre interioridade e exterioridade. Ambos os conceitos operam a partir de falácias, a própria oposição binária é já em si um maniqueísmo redutor da experiência e do vir a ser humano. De um lado, o fundamento metafísico que estabelece uma separação entre vida terrena e celestial (Aristóteles, um dos primeiros pensadores ocidentais a demonstrar que moralidade, virtude e bondade podem ser derivadas sem apelar a forças sobrenaturais, argumentou que «os homens criam Deus à sua própria imagem» e não o contrário; premissa simplificada milénios depois por Bakunin na versão «se Deus não existisse, haveria que inventá-lo»), do outro, a falácia do erro cartesiano de retalhar o ser humano em compartimentos estanques (antes d’ O Erro de Descartes de António Damásio, já o «corpo sem órgãos» de Artaud troava para acabar com todo o tipo de absolutismos e reducionismos, inspirando uma das teses centrais do pensamento deleuziano).
Extirpada da dimensão alienante, a espiritualidade pode ser entendida como dissociada da religião ou da fé em um Deus, para evocar uma «espiritualidade sem religião» ou uma «espiritualidade sem deus». Ao encararmos o candomblé como uma religião literal, qualquer pensamento que rejeite a metafísica e deificação não poderia nunca validar, na sua qualidade esotérica (sublinhe-se), o culto afro-brasileiro. A reivindicação do candomblé como religião pelos próprios candomblecistas é um fenómeno recente, na esteira do movimento de legitimação social da umbanda, religião sincrética brasileira, iniciado nos anos 40 do século passado. Este processo obedeceu à circunstância óbvia de uma vez conformados à lei estatal, enquadrados enquanto religião, poderem evitar a repressão do seu culto, dos seus praticantes e lugares de culto, e assim lutarem contra o preconceito social generalizado. O facto de os praticantes dos cultos animistas africanos não terem durante séculos problematizado as suas práticas ritualísticas como religião não nos deve surpreender e vai ao encontro de teses de antropólogos que consideram que o animismo designa na antropologia ocidental o sistema de crenças de alguns povos e grupos indígenas, especialmente antes do desenvolvimento das religiões organizadas. A perspectiva animística é tão mundana e fundacional das perspectivas espirituais que os povos indígenas «animistas» nem sequer têm uma palavra em seus idiomas que corresponda a «animismo» (muito menos «religião»). O termo é uma construção antropológica desenvolvida no final do século XIX por Edward Tylor («um dos primeiros conceitos da antropologia, se não o primeiro», Bird-David, Nurit, 1999). Com efeito, segundo Moulero, o primeiro nagô a ser ordenado padre no antigo Daomé [actual Benim] «as populações neste país só acreditavam nos ídolos e não conheciam a Deus» 5.
Condicionados ao uso do termo, o animismo (do latim animus, «alma») consiste numa cosmovisão em que entidades humanas e não humanas (animais, plantas, objectos inanimados ou fenómenos) possuem uma essência espiritual (como os kami, divindades ligadas à prática do Xintoísmo no Japão). Vários antropólogos (Herbert Spencer, Edward Burnett Tylor), teóricos da teologia (Grant Allen) e sociólogos (Auguste Comte) assumem que a crença do monoteísmo evoluiu do politeísmo que, por sua vez, evoluiu do animismo (e mesmo este do fetichismo). «Evolução» que se veio a traduzir num empobrecimento do imaginário mitológico e numa gradual tendência histórica para a perda da autonomia das práticas e da concepção espiritual, ao mesmo tempo que acompanhou a justificação terrena da complexificação, hierarquização e estratificação social das sociedades no caso do politeísmo (Antigo Egipto, Grécia Antiga, Roma Clássica, e o hinduísmo da sua fundação aos dias de hoje) e, por fim, a concentração absoluta de um poder centralizado, messiânico e imperialista, no caso das religiões monoteístas.
Para completar a sua plural definição, propõe-se ainda que a espiritualidade se refere também à busca de sentido, esperança ou libertação. Para alguns, o objectivo da espiritualidade é uma profunda exploração da interioridade, levando ao despertar espiritual, a uma conversão íntima ou à obtenção de um estado de consciência modificado e duradouro. Por um lado, a espiritualidade não se limita a uma abordagem conceptual ou dogmática, e, por outro, a vertente exotérica da problematização do candomblé afro-brasileiro leva-nos a perspectivá-lo sob o ponto de vista cultural e político, a partir do que se poderia chamar a praxis da constituição de um sujeito e das relações de poder que institui e promove na vida quotidiana, real e terrena – na segunda parte do artigo, reunimos argumentos que invitam a pensar que a cultura quilombola e a formação de quilombos, bem como a presença de uma linha matriarcal e a ausência de nepotismo no candomblé, além da sua secular abertura à vivência da sexualidade homossexual e bissexual ou ao sincretismo sui generis de orixás masculinos em santas católicas, são inegáveis traços inextricáveis da cosmovisão animista fetichista, rasgos e idiossincrasias do seu processo mutável de viver a espiritualidade e que, ao mesmo tempo, não sem contradições, o distinguem da sociedade de Ifá, em África, de hierarquia patriarcal e consanguínea.
Devido às relações de aliança, migração ou de dominação entre diferentes nações e etnias africanas, a história da África negra ocidental testemunhou a difusão dos cultos e das divindades entre diferentes regiões. Nesse processo de intercâmbio cultural, o povo iorubá, que cultua os orixás, e a nação jeje, que presta culto aos voduns, adoptaram algumas deidades originalmente estranhas à sua devoção. Não é mais do que um exemplo de um amálgama progressivo de crenças multiformes e provenientes de diferentes lugares. No culto de Ifá dos iorubás (proveniente do sudoeste da Nigéria), o número de divindades é impreciso, podendo ir de duzentas a mil e setecentas, segundo Maria Inez Couto de Almeida 6. Pluralidade que é enfatizada também por Verger para «demonstrar que certos orixás, que ocupam uma posição dominante em alguns lugares, estão totalmente ausentes em outros» e concluir «que em todos os pontos do território chamado Iorubá não há um panteão dos orixás bem hierarquizado, único e idêntico» 7. Permanente fusão e impossível uniformização parece ser o legado africano das tradições e ritos do candomblé brasileiro, eixos que podem em parte explicar a propensão animista afro-brasileira à adaptação e recriação, à abertura, mutação e renovação. O fotógrafo e etnólogo francês remata: «Diante dessa extrema diversidade e dessas inúmeras variações de coexistência entre os orixás, fica-se descrente perante certas concepções demasiado estruturadas» 8.
Com efeito, no Brasil, o contacto destes grupos sudaneses (originários da África ocidental, não confundir com o actual estado do Sudão) com os bantos (a nação angola-congo, que cultuam os inquices) ampliou o diálogo intercultural entre os africanos e seus descendentes, a que não é estranho o fenómeno típico de as diásporas, condicionadas pela colonização cultural e religiosa e acossadas pela repressão política, terem o reflexo de unir esforços e partilhar agonias no sentido de reforçar uma identidade comum, tal como faziam «quando se reagrupavam aos domingos em batuques por nações de origem» 9 (Verger). Ao contrário das teses que procuravam sustentar a conversão ao catolicismo dos africanos e descendentes africanos durante o período colonial, a aproximação dos escravos ao culto católico foi originalmente uma forma de dissimulação das verdadeiras crenças animistas africanas. A concepção de sincretismo religioso apenas faz sentido enquanto justaposição de cultos. Por isso, o processo de equivalência entre as divindades de origem africana e os santos católicos, flutuante e variável, não se traduziu numa fusão conceptual mas antes numa estratégia de disfarce e conformação exterior «para inglês ver», um meio de ludibriar o poder sacerdotal e toda a sorte de poderes instalados da classe de amos. Práticas deliberadas e típicas dos grupos subordinados, como reivindica James Scott, e que assumem «o disfarce e a dissimulação (…) mantendo simultaneamente uma atitude exterior de consentimento voluntário» 10. Disso nos dá conta Nina Rodrigues, em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos (1896), documento que abriu caminho à etnologia dos cultos de tradição africana no Brasil, ao constatar que mesmo no final do século XIX «a conversão religiosa não fez mais do que justapor as exterioridades muito mal compreendidas do culto católico às suas crenças e práticas fetichistas que em nada se modificaram. Concebem os seus santos ou orixás e os santos católicos (…) como perfeitamente distintos». Enfatizando que entre os devotos do candomblé, o catolicismo e a fé de tradição iorubá permanecem separados, prossegue: «Os africanos escravizados declaravam-se e aparentavam-se convertidos ao catolicismo; mas as práticas fetichistas puderam manter-se entre eles até hoje quase tão estremes de mescla como na África» 11.
A tese desenvolvida pelo precursor da etnologia do candomblé vai mais longe, curiosamente contrariando as indefensáveis teorias racialistas de que era defensor. «Aqui na Bahia, como em todas as missões de catequese dos negros africanos, sejam elas católicas, protestantes ou maometanas, longe de o negro converter-se ao catolicismo, protestantismo ou islamismo, acontece ao contrário influenciá-los este com o seu “fetichismo” e adaptando-se [aqueles] ao animismo negro» 12. Era o animismo matriarcal a envaginar o messianismo patriarcal. O amplexo criador e que se abre aos seus limites a recusar a imposição vertical de uma doutrina absoluta; a crença plural e em extensão do terreiro aberto e circular contra a repetitiva e uniformizadora genuflexão dentro da igreja e à frente do altar.
O amplexo da cultura do candomblé revela-se num devaneio real desde há mais de duzentos anos em Salvador: a devoção ao Senhor do Bonfim é uma réplica dos rituais fetichistas africanos prestados a Oxalá. Descreve Nina Rodrigues: «Sexta-feira é o dia consagrado a Oxalá, aquele em que os iniciados vestem de branco, trazem contas brancas, lavam as quartinhas e mudam a água de santo. E para provar que não é o sentimento da adoração cristã que ali leva [à Igreja do Bonfim, nos arredores de Salvador] a grande massa da população (…) basta saber que quer na ida quer na volta, mesmo dentro dos bondes, as negras entoam sambas, esboçam danças que destoam por completo das práticas cristãs. As coisas chegam ao ponto de a imprensa reclamar providências da polícia…» 13. E era assim que um jornal da época (A Renascença, 1895) dava livre expressão à sua reclamação: «A lavagem [da Igreja do Bonfim] na quinta-feira é uma verdadeira bacanal num templo cristão! Negros aguadeiros e mulheres com potes de água e vassouras em grande alarido de sambas e vivas entravam pela igreja com o fim de lavá-la e os cantos obscenos, os lunduns e a bebedeira reinavam sem respeito ao lugar, sendo toda a cena representada por homens e mulheres semi-nuas e embriagadas!» 14. O candomblé canibaliza, incorpora, transcende. Mesmo quando é incontestável para os investigadores que na sua matriz jamais o move o proselitismo, um traço que o distingue da esmagadora maioria das religiões.
A fé dos negros nos deuses das suas crenças originais manteve-se inegavelmente intacta apesar das condições absolutamente repressivas e aculturadoras do contexto histórico e social. Porém, era inevitável que ao longo dos séculos de coexistência a fé dos ex-escravos e seus descendentes se tivesse mesclado com as outras culturas do sagrado. No Brasil colonial e pós-colonial, as religiões que lá se encontraram romperam os seus limites dando origem a novas formas ou a factuais religiões sincréticas, como a umbanda (sintetismo de catolicismo, espiritismo europeu e candomblé). As semelhanças estruturais entre o animismo indígena e africano possibilitaram esse intercâmbio entre os seus elementos constituintes comuns, a devoção às entidades intermediárias, o aspecto mágico, a cura, a mediação da alimentação para atingir estados alterados e o profundo respeito pela natureza. Desta forma, resultou uma complexa e plural panóplia de rituais afro-brasileiros, uns mais próximos do sagrado de raiz indígena e dos bantos como a pajelança, o catimbó, o candomblé de rito angola e a própria umbanda, outros mais próximos da tradição sudanesa, em especial dos jejes e dos nâgos, como o candomblé do rito keto, o tambor-de-mina, o Xangô pernambucano e o batuque gaúcho.
No velho continente, a modernidade foi o grande movimento anti-religioso, o interminável processo de secularização racional, que matou Deus. Mas a morte de Deus – ou retirá-lo do altar – não significa que a necessidade do absoluto no ser humano ou a busca de transcendência tenham desaparecido. Sob o arco desta tensão, na segunda parte do artigo, teremos a oportunidade de problematizar marcos axiais da história do Ocidente (a queima das bruxas e a Inquisição, o Iluminismo e a ciência materialista, o marxismo e a razão instrumental capitalista, o fetichismo do Eu e o revivalismo New Age), que sustentam a hipótese que, além de Deus e da crítica ao poder das religiões organizadas, a modernidade levou a efeito uma extorsão da magia do mundo que tornou obscuros os caminhos da espiritualidade. Daremos conta que o escravo africano, ou já nascido no Brasil, não podia subscrever o monoteísmo sem negar a sua própria condição porque o monoteísmo (cristão e islâmico) vem do fundamento das velhas fés absolutistas e tinha uma finalidade: a obediência do homem-escravo ao senhor da terra. Na esteira da resistência afro-brasileira e dos processos de luta pela abolição da escravatura, procuraremos polemizar que o escravo quer libertar-se das correntes com que o agrilhoaram enquanto o revoltado metafísico luta contra toda a espécie de correntes, as que o amarram ao pelourinho bem como aquelas que o deixam preso na sua própria mente, no seu imaginário e nas suas limitações humanas. É o quilombo de Palmares de um lado, e o terreiro de candomblé do outro. De um lado, a rebelião; do outro, a revolta metafísica, essa que se insurge contra a criação inteira. Um fresco da manifestação plural e singular da cosmovisão afro-brasileira, um mosaico da extravagante e omnipresente cultura dos orixás do culto de Ifá, onde «até as latrinas têm o ar de santuários», como averbava Michel Leiris no seu assombroso Diário de Campo (1931-1933) e que veio a chamar-se «África Fantasma».
Texto de Júlio do Carmo Gomes [jc@utopie-magazin.org]
Ilustraçōes de Ana Farias
Notes:
- O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, Nina Rodrigues, Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2006, pp. 51. ↩
- Orixás, Pierre Fatumbi Verger, Corrupio Edições, Salvador, 6ª edição, 2013, pp.26. ↩
- Cultos afro-brasileiros do Recife, René Ribeiro, 1952. ↩
- Cf. Verger, Pierre, op. cit., pp. 21. ↩
- Citado por Pierre Verger em Verger, Pierre, op. cit., pp. 22 . ↩
- Cf. Cultura Iorubá: costumes e tradições, Maria Inez Couto de Almeida, 2006. ↩
- Verger, Pierre, op. cit., pp. 17. ↩
- Ibidem, pp. 18. ↩
- Ibidem, pp. 25. ↩
- A Dominação e a Arte da Resistência Política, James C. Scott, Letra Livre, 2013, pp. 47. ↩
- Rodrigues, Nina, op. cit., pp. 108. ↩
- Ibidem, pp. 107. ↩
- Ibidem, pp. 112/113. ↩
- Citado por Nina Rodrigues cf. Rodrigues, Nina, op. cit., pp. 113. ↩