Pão, Pizzas, Punks e Putos
Um Moinho entre o campo e a cidade
Algures entre Espinho e Silvalde, entre a floresta e a autoestrada, entre o campo e a cidade, entre mudar o mundo e mudar o seu mundo – está o Moinho. Habitado por um grupo de amigos desde 2010, tornou-se «o epicentro de descobertas onde se faz ode a um modo de vida sustentável, partilhada e construída ativamente».
Aproximamo-nos por um carreiro entre ervas daninhas, ao som duma enxada e duma bateria. Os ramos da figueira obrigam a uma vénia. Passamos hortas e tralhas. E chegamos à velha casa, junto à ribeira de Silvalde. Foi usada como moinho até ao início dos anos 90. Faz quase nove anos que giram agora outras mós e se vão desfazendo ideias como a propriedade, o lucro, o individualismo e a família nuclear. À porta, uma carcaça de televisor serve de casota: «televicão». Entramos, fazemos um chá e sentamo-nos à mesa com três das moradoras.
«Chamámos-lhe um sítio de experimentação», conta Cinthia. As palavras podem soar vagas e não há uma definição coletiva deste projeto «rurbano» (entre o rural e urbano): o Moinho é algo diferente para cada uma que o habita. «Nenhum de nós quer trabalhar 40 horas semanais para um patrão, por dinheiro. Então organizamo-nos em conjunto para isso ser viável».
Desde há quase uma década, recuperam ruínas e constroem casas com materiais naturais e recuperados. Trabalham a horta. Fabricam cerveja, sumos e concentrados. Compõem música. Educam crianças.
O Moinho tem sido ninho de projetos mais ou menos efémeros. Um deles começou por se chamar Pão Rebelde: distribuía em projetos amigos no Porto, ou pela vizinhança, de bicicleta, pão cozido no forno a lenha, amassado à mão. Outro, Maria Moinho, quer levar «a magia do forno a lenha pelo mundo fora», propondo pão, pizzas, bolos e alimentação diversa em eventos e festivais. Também daqui saíram da casca projetos musicais, como as Panelas Depressão.
«Viemos de um certo ambiente que estava a acontecer no Porto e no país: a Es.Col.A da Fontinha, o movimento contra a cimeira da NATO, a Casa Viva, o Musas, o GAIA Porto… A afinidade e cumplicidade surgiu nesses contextos de ativismo, da música punk… E fez gostarmos uns dos outros», recorda T.
«É o mais importante, e é por isso que a gente ainda se atura», brinca Cinthia. «E crescemos uns com os outros».
Neste momento são quinze pessoas, três delas crianças. Há ainda três cães, um gato e quatro galinhas. Põem em comum os recursos, o espaço, a economia.
«É sobretudo nisto que este espaço é ativista: em vez de uma vida individualista, de uma família nuclear, conseguir ter outras formas de viver juntos e pensar o quotidiano. Aprendemos a conviver, a respeitar a diferença. Tudo o que vou aprendendo aqui ajuda-me e dá-me muitas ferramentas lá fora». Eva é mãe de uma criança de três anos e é palhaça – «o meu trabalho e a minha arma de intervenção social, a que me dedico militantemente». «O facto de não estar sozinha a educar apazigua-me. Ouço uma criança chorar, mas fico tranquila porque sei que alguém vai lá. E para as crianças é uma oportunidade de viver com diferentes maneiras de fazer, de falar, de educar».
Não há no Moinho uma visão militante comum. «Isso dá espaço para integrar várias coisas», diz Eva. Pontualmente, o espaço acolhe os eventos mais diversos: jornadas de medicina alternativa, bicicletada anti-fracking, festa das crianças, retiro de palhaços…
«Não há aqui propriedade, não há chefes, não há dinheiro», diz T. «E o não haver alguém que compra facilita muito a relação entre nós. É o mesmo que acontece em okupações».
Vivem aqui em troca de uma renda acessível e de um contrato renovado ano a ano. «Sabemos que podemos ficar aqui um ano, ou 5, ou 20. Não há o “isto é meu e vai ser para os meus filhos”. E não é isso que nos separa». Para já vão 9 e, ao contrário do que se poderia pensar, é justamente essa dimensão temporária que as anima e lhes permite fazer tanto. «Tira um peso, de ter de chegar a um resultado. Dá uma liberdade muito grande».
Como acontece em muitas okupações, há aqui uma sensação permanente de trabalhos em curso. «Um de nós podia ter dinheiro, comprar os materiais todos e acabar isto ou aquilo. Mas é o princípio da reciclagem e da reutilização de materiais que nos move», conta Eva. Não deixam de visualizar e sonhar, mas a realidade do Moinho é: «vamos indo e vamos vendo».
Todos os anos, convidam toda a gente a vir festejar os aniversários, que parecem só ter uma coisa em comum: ser sempre diferentes e nunca na mesma data. E as pizzadas, que se «tornaram tradição, a marca da casa», diz Cinthia. «É uma necessidade de festejar o ano que passou. É uma cena intergeracional: há mais crianças e também mais avós, há casais da idade dos nossos pais, há as vizinhas… A programação vai desde punk a oficinas para crianças, tudo misturado».
«Mais do que oferecer grandes bandas ou cursos incríveis, é um espaço onde as pessoas se sentem em casa. Que não está cheio de regras. E podem estar, tocar música, ajudar na cozinha…», observa Eva. Todas as atividades são a preço livre, sem fins lucrativos. «E o pessoal sente isso, que há uma outra proposta. E relaxam, ao nível da exigência. E vão procurando: “O que é que eu vou levar daqui, o que é que posso também dar em troca? Também quero ajudar”. Não é só um ato de consumo».
«Difícil não é fazer um telhado, é fazê-lo juntos»
Em abril de 2010 havia uma casa, há anos abandonada, que espreitava dum enorme silvado. E havia três amigos, com necessidades diferentes: uma casa para viver, um atelier para criar, um sítio para conviver e fazer música.
O primeiro inverno e primavera foram passados a reparar o telhado e isolar a casa do frio e da chuva. E o processo esteve longe de ser fácil. «Estávamos a aprender a fazer. E estávamos a aprender a fazer em conjunto. E quase sem ferramentas: era muito freegan, tentando não usar dinheiro e improvisar sobre o que tínhamos no momento», lembra T. «Vínhamos de um grupo de amigos alargado. Não era uma coisa clara: “vamos fazer um coletivo”».
«Uma vez estávamos aqui e o pessoal começou todo a dar bitaites: “Não! É assim que se faz!” E eu, que estava cá em baixo, a dar a massa: “Pessoal, descer do telhado! Vamos reunir!” As reuniões eram de urgência», recorda Cinthia.
«Havia muitos conflitos e problemas de ego, e dificuldade em ter ferramentas – sobretudo humanas. Para saber conversar, saber tomar decisões juntos», lembra Eva. «Isso também se aprende. Não é garantido na nossa sociedade, na nossa educação: estamos muito habituados a fazer o que nos mandam ou a querer mandar fazer».
O projeto deu um salto, no espaço e no humano, no potencial de fazer coisas juntos, na primeira primavera, com a chegada de pessoas para ficar e viver, para apropriar-se dele como casa e sítio de experimentação.
O segundo salto aconteceu com o nascimento das crianças. «Trouxe uma urgência. Construir casas fora da casa comum, tornar o sítio mais agradável, organizar e agilizar as compras, a cozinha, a limpeza», diz Cinthia, mãe de duas crianças. «Elas trouxeram outro tipo de energia e de relação entre as pessoas. Uma criança está, é pura, faz erros, faz merda. A gente aprende a comunicar, e a pedir a comunicação delas. A respeitar a sua liberdade, mas ao mesmo tempo dizer “Não. Estamos juntos, precisamos de nos ouvir”. Pedir: “não grites com os outros”. E isso tem efeito em nós, relembramos que queremos praticar isso na vida. É um processo maravilhoso».
«Ninguém o conhecia!»
Desde o começo que o Moinho é marcado pela passagem quase frenética de pessoas – e se alimenta dela. «É uma base nómada», diz T. «Já ficaram aqui centenas e centenas de pessoas: uns dias, uma semana, dois meses…».
«Eu tinha viajado e o sedentarizar não foi fácil», conta Cinthia. «Quero enraizar aqui, mas quero que este espaço traga pessoas de vários sítios, de vários projetos, que se encontrem e façam coisas juntas. E aprender com estas experiências. Eu já não ia ver o mundo, mas gostava que o mundo viesse até mim».
«Estiveram aqui pessoas que ensinaram bué. Vêm partilhar as suas ferramentas, os seus saberes. E este sítio já ensinou e inspirou muita gente. Uma troca», explica Eva.
Naturalmente, a curiosidade, a disponibilidade e o entusiasmo no acolhimento não é sempre o mesmo. «E nem tudo foi rosas, já se mandaram pessoas embora. Aprendemos sempre com as experiências mais difíceis».
«Nós próprios estamos todos a andar dum lado para outro», acrescenta T. «É isso também que mantém o Moinho. Irmos buscar ideias a outros sítios, crescermos fora daqui».
«Há poucos espaços assim, tão aleatoriamente abertos, em que chega gente aí de mochila “olha posso ficar aí?”, e ficam um mês. Tipo ele – ninguém o conhecia!». Ydriss, jovem viajante da ilha da Reunião, as rastas envoltas num lenço, olha-nos, sorri e prossegue calmamente a confeção do almoço comunitário. «E bem-vindo!».
«Sinto que é uma cena quase intocável», observa Eva, «como não termos televisão».
«Ó Dona Leonilde, eu sou de Esmoriz!»
«São pobres mas são felizes», era a expressão que Cinthia ouvia ao distribuir pão na vizinhança. «As imagens sobre nós vão mudando ao longo do tempo. No início era “hippies”, “drogados”. Agora até devem romantizar».
«Vejo claramente um impacto de a gente cá estar. É bom de se sentir», diz. «Quando chegámos, havia vizinhos cá na rua que não se falavam. E pelo facto de estarmos aqui já começaram a falar».
«Há uma crise à nossa volta. Muitos são idosos e os filhos deles com problemas. A maior parte está triste a trabalhar numa fábrica, ou desempregado, ou alcoólico», observa T. «Apesar de sermos “uns freaks”, que “não vão trabalhar”, vêem que somos responsáveis, estamos sempre a rir, damo-nos bem».
«Muitas nunca tinham visto pessoas doutros países. Não viajaram. Foram até Gaia, ou uma vez a Lisboa», diz Eva, que recorda em gargalhadas: «Eu usava o cabelo envolto num lenço. Um dia a vizinha viu-me ali com o rocket stove e disse “ah, no teu país fazem assim”. Ela pensava que eu era romena. E eu disse, “ó Dona Leonilde, eu sou de Esmoriz!”». «Nós éramos de Paramos, a aldeia ao lado», acrescenta Cinthia. «Eles foram percebendo que dá para conviver, pessoal de Paramos com pessoal estrangeiro. Muitos preconceitos foram-se desmontando».
«Ao início íamos muito porta a porta, na tentativa de trazer as pessoas cá. E fomos percebendo que as coisas aconteciam mais espontaneamente. Aquilo que eu idealizava como envolvimento comunitário dos vizinhos, que participassem do espaço, viessem para a horta ou fazer o pão… não aconteceu. Foi mais suave, subtil e mais interno o que isso».
Para Eva, viver no Moinho tem sido justamente «ir aprendendo a abdicar das ideias formatadas, do que queríamos que acontecesse. Aprender a aceitar. A olhar para os outros e para o que está realmente a acontecer».
E se um dia a câmara municipal quiser concretizar o plano que data dos anos 80 – expropriar todo o vale e fazer um «corredor verde» – dizem ter hoje uma rede muito mais forte do que pode parecer. Cinthia nem conhecia a vizinha que há tempos lhe disse: «Ó menina, não vos preocupais, vocês já fazem aqui parte do vale. Já foram adotados pela comunidade».
Toda a gente gosta de CU
A vontade é antiga e este ano ganha forma: criar uma rede de ajuda-mútua entre projetos coletivos que estão a acontecer por todo o norte do país. Do Rés da Rua, no centro Porto, ao Cimo da Vila, em Celorico de Basto, à aldeia de Landeira em S. Pedro do Sul, passando pela Quinta da Enterranha, no concelho de Sátão.… Todos bem diferentes, todos com características e desafios comuns. A inspiração vem das ajudadas nas aldeias ocupadas nos Pirinéus espanhóis. Por exemplo: todos os anos juntam gente e máquinas de todas as aldeias para ir de sítio em sítio, e num par de semanas fazer a lenha para todo o inverno, para todos.
«Pensamos não só em ajuda prática, para construir casas ou trabalhar a terra, mas também numa rede de apoio. Partilhar experiências e ferramentas de cada lugar, por exemplo, como é que a gente gere conflitos», explica Cinthia.O nome provisório é «CU – Coletivos Unidos», e vai servindo para piadas e títulos sensacionalistas. O primeiro encontro está marcado para setembro.
Texto de Francisco Colaço Pedro [franciscocolacopedro@gmail.com]
Fotos de Jan Slangen