Os Rohingya e os conflitos no Myanmar
Um olhar geral sobre as tensões étnicas, religiosas e nacionais.
Nos últimos anos, a República da União de Myanmar (antes conhecida como Birmânia) tem sido palco de uma das maiores crises humanitárias jamais vistas, com cerca de 600.000 pessoas deslocadas até à data. Esta crise, consequência de uma longa série de eventos históricos, motivada por sentimentos identitários – religiosos, nacionais e étnicos – e perpetuada por forças políticas, económicas, militares e religiosas, integra vários atores entre os quais o governo, as forças militares e as comunidades budistas e muçulmanas do país. A brutalidade da violência praticada, assim como o silêncio e a cumplicidade do governo do Myanmar, tem chamado a atenção da comunidade internacional, de várias organizações não-governamentais e dos media pelo mundo fora.
Contextualização Histórica
A condição que hoje se vive na República da União de Myanmar deriva de uma série de acontecimentos políticos e sociais complexos. Para entender melhor a sua situação presente é necessária uma contextualização histórica, com um foco especial sobre o estado de Rakhine (antes conhecido como Arakan), salientando alguns momentos críticos da História que levaram ao actual conflicto.
O último reino de Rakhine viu o seu fim em 1785, data em que foi anexado ao reino da Birmânia. De imediato surgiram as primeiras tensões étnicas na zona, com os muçulmanos a serem sujeitos a trabalho forçado. Contudo, apesar deste território ter um rico passado histórico, os seus problemas actuais derivam em grande parte do período de domínio colonial inglês, um período importante para a compreensão dos conflitos no Myanmar.
Entre 1824 e 1826 dá-se a primeira guerra entre a Inglaterra e a Birmânia e a região de Arakan é anexada à Índia Britânica. Com a anexação, e com a expansão do cultivo do arroz, aumentou o número de imigrantes muçulmanos (“Bengali Muslims”). Isto levou à alteração dos padrões sociais da região, com estas populações a tornarem-se alvo de segregação racial. Durante o seu domínio, que só começou oficialmente em 1885, os Britânicos procederam à dissolução da monarquia e à separação de poderes entre o estado e a religião, levando os monges budistas a perderem o seu prestígio e a sua posição oficial privilegiada. As noções de poder secular derivam de especificidades históricas do ocidente, moldadas por culturas cristãs e por ideologias políticas modernas ocidentais e demonstraram-se pouco adaptáveis às culturas locais. Apesar da disseminação destas ideias pelos regimes coloniais, as culturas asiáticas compreendem, muitas vezes, visões diferentes da divisão entre o poder humano e o divino. Esta diferença cultural radical tornou-se imediatamente um polo de tensão visto que a identidade nacional do Myanmar se encontra profundamente enraizada na religião budista.
O impacto nefasto da colonização britânica não ficou por aqui. A imposição de diferentes formas de governação por todo o país, com um governo direto no centro da Birmânia e indireto nos estados circundantes , fragmentou-o ainda mais, com terríveis consequências nas relações étnicas internas. Mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão invadiu o território, levando os Rakhine a apoiarem os japoneses enquanto os Rohingya, com o objetivo de criar um estado muçulmano independente dentro da Birmânia, assumiram o lado dos britânicos. Isto levou a confrontos violentos e massacres entre os dois grupos, que terminaram por contribuir, ainda mais, para a segregação das comunidades muçulmanas. Em 1948, com o final da Segunda Guerra Mundial, a Birmânia tornou-se independente. Após um processo de descolonização rápido, e que teve em pouca consideração as relações étnicas internas, o país foi dividido em quatro partes e em grupos étnicos dentro destas. No mesmo ano deu-se a Revolução Comunista. Por esta altura, um pequeno grupo de muçulmanos organizou-se para levar a cabo um plano de anexação da parte norte de Rakhine. Na resposta este movimento viu os seus líderes assassinados e os seus apoiantes presos.
Em 1959 os Rohingya foram reconhecidos como uma raça indígena do país e em 1960 votaram nas eleições nacionais. Porém isto foi sol de pouca dura, já que em 1962 o General Ne Win e o seu exército voltam a tomar o poder através de um golpe de estado. Com este golpe foram banidas todas as organizações políticas que se pudessem opor ao novo regime e instituíram-se novas políticas que negavam a cidadania aos muçulmanos, num processo de “Birmanização” que visava uniformizar uma identidade nacional, assimilando e oprimindo as minorias do país. Para além do agravamento das tensões causadas pelo novo regime militar, em 1971, com a guerra no Paquistão Oriental (que levou à criação do Bangladesh), um total estimado de 17.000 refugiados migraram para Arakan. Três anos depois, em 1974 Arakan ganhou o estatuto de estado. Esta nova constituição, que persiste até hoje, dividiu a nação em sete estados étnicos.
Entre 1977 e 1979, em resposta a um novo movimento migratório, o governo militar socialista da Birmãnia colocou em acção uma operação contra a “imigração ilegal” – “Operation Naga Min” – intimidando e forçando 200.000 muçulmanos a escapar para o Bangladesh. Durante esta operação, os Rohingya passaram a ser considerados imigrantes ilegais, tendo a Lei de Cidadania de 1982 fixado este estatuto ao excluí-los da lista das 135 etnias oficiais da Birmânia. Em 1989 a Birmânia mudou o seu nome para Myanmar, alterando também o nome do estado de Arakan para estado de Rakhine, com novos cartões de identidade que excluíam a maioria dos Rohingya. Um ano depois o país teve eleições livres, formaram-se alguns partidos muçulmanos e alguns representantes desta etnia foram eleitos. No entanto ,o regime ditatorial manteve-se e este povo passou a ser considerado uma ameaça para o estado.
Em 1991, uma nova operação – “Operation Pyi Thaya (Operation Clean and Beautiful Nation)” – levou cerca de 250.000 pessoas a fugir das suas terras de novo para o Bangladesh. Durante esta década, o exército aumentou a sua presença na parte norte do estado de Rakhine e foram impostas leis que restringiam os casamentos, as certidões de nascimento ou a liberdade de movimento dos Rohingya.
Duas décadas depois reavivou-se o conflicto. O ano de 2012 foi particularmente violento no Myanmar, ficando marcado por duas vagas de tumultos entre as comunidades Rahkines e Rohingya, desencadeados pela violação e assassinato de uma rapariga budista, alegadamente por parte de um grupo de homens muçulmanos. Nos conflictos morreram 200 pessoas e cerca 140.000 Rohingya abandonaram as suas casas. Este foi o ano de maior violência no Myanmar desde a sua independência. Em 2015, deram-se as primeiras eleições consideradas livres no Myanmar, que levaram Aung San Suu Kyi e o seu partido NLD à vitória.
Já em 2016 e 2017, vários postos policiais em Rakhine na fronteira entre o Bangladesh e o Myanmar foram atacados pelo grupo Arakan Rohingya Salvation Army (ARSA). A estes ataques o exército de Myanmar respondeu com “operações de limpeza” que passaram pelo incêndio de cerca de 200 aldeias e locais de comércio dos Rohingya, com o assassinato a tiro de vários civis, detenções arbitrárias, torturas e violações. Em Setembro de 2017, cerca de 400.000 pessoas (dos quais dois terços mulheres e crianças) estabeleceram-se em acampamentos improvisados no Bangladesh, junto à fronteira.
Desde aí a situação no Myanmar (e no Bangladesh) encontra-se fragilizada, com a comunidade internacional a pressionar o governo do país para que tome medidas contra as atrocidades cometidas pelo seu exército. As ocorrências levaram as Nações Unidas a reconhecer o caso como um exemplo clássico de “limpeza étnica”, com o governo de Aung San Suu Kyi, laureada com um Nobel da Paz em 1991, a pôr em causa as acusações e a negar os acontecimentos.
Etnia, Religião e Nacionalidade
Embora os conflitos étnicos permeiem a história do Myanmar estes nem sempre tiveram uma carga política. Muitos defendem que foi com o advento do colonialismo no país, com a imposição de políticas e categorizações étnicas (“dividindo para conquistar”) e com as diferentes formas de governo colonial já referidas que a etnicidade se politizou. O regime colonial incumbiu-se de impor um sistema classificatório étnico superficial, alterando sucessivamente os seus critérios, passando pela casta, religião, língua e até pelas marcas de nascença. Ao serem “essencializadas” estas categorias étnicas, todo o sistema classificatório revelou-se pouco funcional, já que se podia transitar facilmente entre diferentes classificações.
O regime pós-colonial não foi mais eficaz na sua redefinição das categorizações étnicas. A “etnia” mantém-se até hoje um conceito mutável; porém, o que ficou efetivamente definido foi uma distinção clara entre as etnias indígenas do Myanmar (taingyintha ou “filhos da terra”) e as etnias provenientes da China e dos restantes países do Sul da Ásia, entendidas como estrangeiras. É aqui que se notam as profundas relações que existem entre identidade étnica e identidade nacional no Myanmar, valorizando-se o taingyintha sobre a restante cidadania.
A religião também desempenha um papel central nos processos de criação de identidade étnica e nacional, pelo que estas se misturam e sobrepõem. A religião dominante no Myanmar é o Budismo e a sua associação com a nacionalidade tornou-se particularmente visível quando o primeiro ministro U Nu a declarou religião oficial da nação, dotando formalmente os monges budistas de autoridade política. Esses mesmos monges, por sua vez, evidenciam a coincidência entre religião, etnia e nacionalidade com o seu lema “ser birmanês é ser budista”. Esta justaposição tem vindo a ser confirmada e reforçada com as recentemente instituídas leis de proteção da raça e religião.
O Estado e o Budismo – Ódio Institucionalizado
No Myanmar as esferas religiosas, políticas e económicas encontram-se intimamente relacionadas. A classe monástica budista – Sangha – foi a única instituição cultural a sobreviver à última guerra anglo-birmanesa em 1885 e é, desde então, um símbolo de resistência contra o colonialismo. Todos os governos birmaneses desde a independência recorreram à Sangha para ganhar apoio e mobilizar a população. Usado na construção de uma identidade nacional o budismo é também utilizado como legitimador político em momentos de crise sendo instrumentalizado pelos governos para assimilar e integrar minorias étnicas, através de conversões forçadas. A invocação de sentimentos nacionais budistas é usada para desviar a atenção de crises na agricultura, no sector bancário e até para evitar manifestações contra o governo. Deste modo, ao instigar a violência contra os “outros” e, estando protegidos pelo estado, os monges têm tido um papel central na perpetuação da estigmatização e da violência contra os muçulmanos no Myanmar.
A inter-relação entre o Sangha e o Estado é particularmente visível através de dois movimentos nacionalistas e religiosos: o 969 e o Ma Ba Tha. O 969 é um grupo de monges budistas e de seus seguidores, congregados por uma forma de etno-nacionalismo extremo, com uma base ideológica de ódio pelo Islão. O líder do grupo, Ashin Wirathu, apela ao boicote de negócios geridos por muçulmanos, refere-se às mesquitas como “bases inimigas”, apela à proteção de mulheres budistas contra violadores muçulmanos e é um defensor das leis que restringem casamentos entre budistas e muçulmanos. O Ma Ba Tha, que inclui membros do 969, é explicitamente mais político e tem como objetivo a “proteção e promoção” do budismo através do combate ao Islão, assumido-o como a maior ameaça ao Myanmar budista.
Devido ao apoio do Estado e à posição de privilégio de que desfrutam, a mensagem dos monges dificilmente é posta em causa. Deste modo, o budismo extremista e as suas expressões de ódio racial e religioso são aceites e abertamente encorajadas, e os seus opositores são reprimidos.
Esta descriminação encontra-se institucionalizada no Myanmar, com a maioria budista a decidir a quem pertence à nação, negando a cidadania e direitos básicos aos Rohingya. Embora o termo “Bamar” seja hoje exclusivamente reservado para budistas, este já incluiu alguns grupos muçulmanos em certos momentos do passado, durante os quais os nacionalistas necessitaram do máximo apoio possível. Para concluir, e fazendo uso do conceito de Benedict Anderson de nação enquanto comunidade imaginada, o Myanmar é hoje uma comunidade que se imagina sem os Rohingya. Vive-se hoje, possivelmente, um dos períodos mais difíceis para os muçulmanos no Myanmar, cuja identidade e integridade se encontram sob constante ameaça. Com a violência a escalar ao nível do que alguns chamam “limpeza étnica” e outros “genocídio”, esta situação faz lembrar outros momentos sombrios da História, tais como a Alemanha nazi e o genocídio no Ruanda. Reconhecendo que a situação no Myanmar se encontra em desenvolvimento, impossibilitando afirmações conclusivas, resta apenas esperar que, tanto a comunidade internacional como o governo local trabalhem em conjunto com a população local para pôr fim à situação deplorável em que hoje centenas de milhares de pessoas vivem.
Texto de Guilherme Figueiredo [guilherme.r.t.figueiredo@gmail.com]
Fotos de United to End Genocide