Okupação rural

"Não viemos para o campo só para pastar"

6 de Setembro de 2018
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Por Francisco Colaço Pedro
franciscocolacopedro@gmail.com

Nas encostas dos Pirinéus espanhóis, multiplicam-se há décadas as okupações de aldeias deixadas ao abandono durante o franquismo. No final do Verão passado, o MAPA subiu as montanhas do Alto Aragão até às Jornadas de Resistência e Okupação Rural. Partilham-se ideias e práticas de autogestão no campo e lança-se um apelo – o de recuperar a antiga ruralidade para experimentar uma nova sociedade.

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Um casal idoso deu-me a última boleia do dia. Para além do colorido templo budista para onde descem e do asfalto estreito e serpenteante onde me deixam, não vislumbro outros traços de mão humana. Sobra-me a serenidade da montanha – e várias horas de marcha.
Desço um trilho na floresta quando ela surge enfim, em plano picado, enquadrada pela lua, as montanhas e o clamor duma multidão: a Casa Selba. Não são senão dois velhos casarões de pedra perdidos no monte. Porquê aqui toda esta gente? E porquê todas as fotos que têm percorrido as redes sociais clamando “A Selba fica!”, “Aldeias vivas!” ?

Nestas duas casas cabe um encontro, e em duas palavras cabe uma ideia: okupação rural.

“Pertencemos a uma geração de gente ‘expulsa’ das cidades, que se tornaram escaparates onde tudo o que se pode fazer é comprar e vender. Escolhemos a okupação rural como modo de vida. Cada vez somos mais a sentir a necessidade de deixar de alimentar a máquina do crescimento infinito, a colaborar para manter vivos territórios abandonados, tentando viver de modo mais coerente connosco mesmas e com o que nos rodeia”, lê-se no apelo às Jornadas de Resistência e Okupação Rural na Casa Selba.
Deste casario cuja memória remonta a 1600, talvez não sobrassem hoje senão pedras caídas por terra. Foi em 2010 que um grupo de pessoas vindas de Barcelona reabilitou as casas, recuperou as hortas, olivais e pomares e limpou o monte abandonado. Quando em abril de 2017 souberam que lhes esperava um julgamento por usurpação, as reacções de solidariedade correram a cordilheira e atravessaram fronteiras, e culminaram neste encontro.

Há quem venha de Lakabe (lakabe.org), aldeia navarra ocupada há quase 40 anos. Há quem venha da Can Masdeu (canmasdeu.net), antiga leprosaria na periferia de Barcelona okupada para dar lugar a uma comunidade de vida, um centro social e hortas colectivas. Se estes são porventura os nomes mais conhecidos, existem dezenas de okupações e colectivos rurais espalhados pelos Pirinéus – a maior parte aqui, na província de Huesca.

Lutxo e os seus filhos vieram desde Sieso de Jaca (siesodejaca.es). “Estes encontros são como sentir que tomas parte de algo”, conta-me quando nos sentamos na terra. “Fazemos todas mais ou menos face às mesmas dificuldades e alegrias, e é um momento de colectivizá-las, procurar soluções, e não se sentir tão bicho raro.” Os dias são repletos de actividades “que em cada encontro vão mudando: podem ir de resolução de conflitos a coisas mais práticas como reparar uma moto-serra.” No programa de hoje há um workshop de electricidade, uma conversa sobre infiltração de polícia nos grupos radicais, e outra sobre os Luditas.
“Há muita gente a quem interessa uma forma de vida parecida, e estas jornadas são a oportunidade de vir conhecer um sítio, conhecer gente com quem se tenha afinidade”, acrescenta. “Podem criar-se novos projectos, ou entrar-se nos que já existem.”
“Há dois anos que não havia encontro, mas eles já acontecem há mais de vinte”, revela Martin, que vive na quinta Nizibar, comprada colectivamente no lado francês da cordilheira. É ele quem tenta hoje reactivar a Llamada del Cuerno, o “boletim de agitação e contra-informação rural” publicado desde 2000, e o blogue da Rizoma, rede de colectivos rurais. Mostra-me também o “Manual básico de supervivência em comunidade”, uma fanzine que vai sendo actualizada com contribuições dos vários colectivos e encontros (disponível em colectivosrurales.wordpress.org).

“Queremos tornar visível esta forma de viver, e tudo o que criamos, para que possa ser reapropriado e transmitido”, explica Martin, “fazer uma ligação com a cidade e dar vontade a mais pessoas de vir para estes lugares colectivos e ocupados no campo, alimentar esta energia.”

‘Okupar foi os meus estudos’

Pedras e telhas passam de mão em mão, levantam-se muros, preparam-se vigas, trabalham-se hortas… Esta é outra vocação destes encontros: “O lugar onde acontece, durante aqueles dias, tem um monte de mãos que o vai ajudar a avançar”, explica Lutxo. O centro das atenções é o enorme telhado de uma das casas. “O mesmo se passou com o telhado da nossa casa comum – juntámo-nos 150 pessoas e fizemo-lo numa semana”.
Em Sieso de Jaca vivem hoje 30 pessoas, entre adultas e crianças. Foi em 2005 que Lutxo e as suas companheiras puseram fim às décadas de silêncio e abandono. “As primeiras obras foram as mais duras. Tínhamos de levar água em garrafas para trabalhar, usar uma bateria de carro para iluminação. Ficávamos todos na mesma casa. Era tudo muito precário.”

Apesar das incertezas, construíam projectando-se no futuro. “Tens sempre a dúvida sobre se te vão expulsar. Mas desde o momento em que chegámos começámos logo a concretizar o que fazer e como fazer – que casa reconstruir, que horta abrir. Decidimos não fazer as construções de forma precária ou provisória, mas aprender e pôr ali toda a nossa força e conhecimentos. Houve então uma explosão de empoderamento, de seguir com o projecto para a frente.”

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Pouco a pouco foram crescendo. Hoje há instalação de água e electricidade de fontes renováveis. As ovelhas pastam nas colinas, as crianças brincam nos bosques. Numa assembleia semanal procuram consensos sobre os assuntos da comunidade. As visitas são bem-vindas e convidadas a participar nos trabalhos comuns. Numa das casas há uma faixa de solidariedade com a Casa Selba, noutra um enorme símbolo okupa. “Os edifícios grandes estão destinados a uso comum. Almoçamos todos juntos na cozinha colectiva.”
Se a maioria continua a fazer trabalhos fora da comunidade, “a evolução é a de ter uma economia comum cada vez mais forte”. Para já esta inclui serigrafia, fabrico de mel e de licores com o que colhem na aldeia, a companhia de teatro Burbuleta, que cria e produz obras na aldeia para as fazer rodar pelo país, e ainda campos de férias com crianças e adolescentes. “Levamos seis ou sete anos fazendo-o, é super rico para a aldeia. Muitos miúdos que viveram ali os seus acampamentos continuam a vir visitar e a envolver-se.”

Ao contrário das várias companheiras com cursos universitários, Lutxo nunca estudou. “Cheguei muito jovem a um projecto destes – e isso foram os meus estudos. Desenvolvi-me mais como pessoa, a nível afectivo e de inteligência emocional, através da vida tão intensa. É como uma tomada de controlo sobre si mesmo. Eu podia decidir cada dia o que fazia. Se abro a torneira, sei de onde vem a água. Sei que tenho de ter lenha para me aquecer no inverno, e faço-o eu com as minhas companheiras. Sei de onde vem a comida, trabalho-a, vejo-a crescer. Fui tomando consciência do que é a ruralidade”.
Lutxo refere-se à antiga ruralidade: aquela em que os habitantes haviam aprendido a manter o seu ecossistema, a renová-lo. “Quando começa a modernizar-se, a entrar o estado a dizer como se tem de fazer as coias, a usar-se o papel-moeda, começa o declínio. Desde a revolução industrial que o campo começa a morrer, e agora está a agonizar.”

Até aos anos 60, estas aldeias de Navarra e Aragão, como por todo o campo espanhol, ainda fervilhavam de vida. “O franquismo acabou de esvaziar todas estas aldeias, com uma visão do género ‘esta parte de Espanha vai ser isto, aquela vai ser aquilo’”, concorda Martin. “Aqui era expulsar toda a gente para irem trabalhar nas fábricas, plantar pinhais nos terraços férteis das aldeia, e construir barragens para criar reservas de água para as planícies agrícolas de Saragoça.”

A Selba é propriedade da Confederación Hidrográfica del Ebro (CHE), que a expropriou em 1963 para a construção da barragem do Grado. Só nesta região, a CHE forçou 13 mil pessoas a abandonar as suas aldeias de sempre, deixando um vasto território abandonado e um sem-fim de memórias sepultadas debaixo de água.

Foi a partir dos anos 80 que pessoas da cidade começaram a reapropriar-se destes lugares e fazê-los reviver. “Reapropriar-se dum lugar onde seja quem o habita a decidir realmente aquilo que quer”, afirma Martin, “não mais haver essa pressão por parte dum estado centralizado, que vem de cima e que está lá apenas para nutrir um sistema capitalista.” Mais do que a auto-suficiência, busca-se uma autonomia em relação a esse sistema e uma interdependência assente numa economia solidária.
Indo para além da mera crítica e do activismo de rua pontual, uma comunidade ocupada é para muitas uma forma de activismo mais holística. Em vez de apenas lutar contra o sistema – viver a alternativa e passar os ideais à prática do quotidiano.

‘Não lhes pedimos nada, só queremos viver tranquilas’

Só à terceira tentativa o despejo aconteceu: vinte todo-o-terreno com um exército de anti-distúrbios, detendo 30 pessoas e ferindo outras tantas, puseram fim à experiência de ocupação. Estávamos em 1997, na aldeia de Sasé, aqui em Huesca, onde o colectivo Colores tinha recuperado casas, estábulos, moinhos e instalado uma escola. A acção brutal levou a meses de protestos e trouxe o tema da okupação rural para as ruas e para os media.

Desde então, a ocupação de aldeias e território rural abandonado tem gozado de vinte anos duma certa tranquilidade. Estas aldeias são território público, propriedade das autarquias ou entidades estatais, nalgumas das áreas mais despovoadas do estado espanhol. Muitas estão longe de qualquer estrada. Um isolamento que as mantém menos visíveis e acessíveis para as autoridades.
“Faziamos tudo a pé! E aqui a polícia não vem a pé para te expulsar, nem que lhes pagassem o dobro”, contam-me. “A verdade é que eles não acreditavam que nós fôssemos realmente ficar.” As condições são duras, os invernos longos e frios – poucos criam no arrojo de jovens simples da cidade para manter tais projectos. E eles brotaram como cogumelos.
No entanto, nos últimos meses voltaram as pressões e ameaças, e a Casa Selba foi a primeira a vê-las chegar à porta. Em maio de 2017 enfrentaram um julgamento por usurpação. “A CHE não só nos quer expulsar, como ainda que levemos sanções económicas e penais”, contam no seu blog. Foram absolvidas, mas permanecem em risco de despejo. Entretanto, ao abrigo da famosa “lei mordaça” que surgiu em resposta ao movimento 15M, o governo de Huesca passou uma multa de 500€ pela organização da manifestação de solidariedade que decorreu no exterior do tribunal, sem quaisquer incidentes.

Mais a sul, outro alucinante exemplo desta repressão é a aldeia de Fráguas em Guadalajara. As pessoas que a ocuparam em 2012 têm sido, dada a proximidade a Madrid, uma forte fonte de inspiração para um retorno ao campo e à autogestão, e foram acarinhadas pelos antigos moradores, expropriados pelo franquismo em 1968. Pelo crime de dar vida a esta aldeia, enfrentam agora penas de quatros ano e meio de prisão e de 26.000 euros para pagar o derrube das casas que elas mesmas reconstruíram.
Na Selba como em Sieso de Jaca, a acção directa pela ocupação acontece frequentemente depois de contactos – frustrados – com a administração local. Mas nem sempre.

Em 1986 um grupo de pessoas apresentou ao governo de Aragão um projecto de reconstrução e repovoação de aldeias no vale da Solana, solicitando a sua cedência legal à associação Artiborain. Hoje ela agrupa as aldeias de Aineto, Ibort, Artosilla e Solanilla, onde vivem 150 pessoas. O projecto promove a opção de usar responsavelmente no lugar de comprar individual ou mesmo colectivamente, propondo “realizar nas aldeias uma convivência diferente, baseada na não propriedade individual dos espaços e no uso partilhado e solidário dos recursos”, e procurar uma “relação harmoniosa com a natureza”.

A legalização permanece um tema controverso. “Todos os projectos que se tornaram legais rapidamente se tornaram aborrecidos, foram-se conformando com as leis e a regulação e envolvem mais dinheiro”, diz uma vizinha.
A maior parte das okupações procura conseguir alguma tolerância e reconhecimento por parte das autoridades, para ter menor risco de despejo e maior segurança para o seu futuro. Mas tal pode significar impostos, vistorias de casas autoconstruídas, constrangimentos burocráticos, multas… uma institucionalização e assimilação pelo estado que compromete a autonomia da comunidade.
Em Sieso, as habitantes venceram recentemente uma longa luta pelo recenseamento no município. “A okupaçao é ilegal porque alguns assim o decidiram”, lembra Lutxo. “Sinto-me com legitimidade total de usar num contexto rural estes espaços que foram sustentáveis durante séculos, que são património da humanidade.”

Pela história e pelo território

“Espero que esta cronologia de projectos colectivos de gente que (e espero não ofender ninguém) não tem ido ao campo só para pastar, mas que busca também uma mudança social de base, se siga ampliando e actualizando.” Lutxo e um vizinho de Sieso introduzem assim uma pequena história do movimento de okupação rural, que os fez dar-se conta do quanto ela vai rica e longa.
Para a contar podemos viajar cem anos no tempo e até ao Vale de Santiago em Odemira. A Comuna da Luz foi ali criada em 1917 por António Gonçalves Correia e terá sido a primeira comunidade anarquista em Portugal. Com cerca de quinze pessoas, havia-se dedicado à agricultura e ao fabrico de calçado, praticando o vegetarianismo e o naturismo, experimentando um modelo educativo inspirado pelo pedagogo e anarquista espanhol Francisco Ferrer. Esse sonho de provar que era possível substituir o Estado burguês por uma organização social mais justa durou apenas dois anos. Associada ao surto grevista dos trabalhadores rurais que varreu o Alentejo e ao assassinato de Sidónio Pais, a Comuna da Luz foi alvo de repressão e António Gonçalves Correia preso.

Martin vê as raízes da okupação rural no movimento anarquista desde o início do século passado, e que em Espanha foi tão presente: durante a guerra de Espanha, entre 1936 e 39, vários grupos anarquistas levaram à prática a colectivização da terra.
Foi a partir dos anos 50 que a ditadura franquista e a modernização provocaram enormes migrações do campo para as cidades. E por essas três mil aldeias deixadas ao abandono, vários grupos vêm desde os anos 80 instalando projectos colectivos. Entre 1990 e 1993 existiu a Federação Anarquista Ibérica de Colectividades do Campo, e tiveram início os “encontros de okupação rural”. Na sequência dum deles, em 2008, surgiu a Rizoma, rede de colectivos rurais. Procura ligar tanto ocupações como colectivos em terras compradas ou arrendadas, que tenham uma economia ligada à terra e vivam em comunidade, e queiram “promover a transformação social, interdependência, auto-gestão e cooperação horizontal”.
Para lá das aldeias abandonadas, a afinidade e solidariedade estende-se às ocupações que defendem lugares contra a construção de grandes projectos: a ZAD em Nantes, o Anti-TAV no Valle de Susa, a floresta Hambach em Colónia, a Anti-MAT em Girona. “Os objectivos são comuns, a defesa do território e experimentar novas formas de vida, ao mesmo tempo que se procuram fórmulas de emancipação individual e colectiva”, lia-se no apelo das jornadas.

Nos últimos anos, a vaga de consciencialização e activismo que varreu o Estado espanhol com o 15M contribuiu para difundir a okupação rural. Exemplo disso é Libres – La serie de okupación rural (libreslaserie.es). Financiada por crowdfunding e registada sob licença Creative Commons, a série foi lançada na internet em 2013 e premiada por todo o mundo. Vários repovoadores, no entanto, criticam-na por veicular uma imagem irrealista, superficial e estereotipada do que é okupar uma aldeia.

‘Não por falta de alfaces’

Hoje “estamos numa fase de grande questionamento”, confessa Martin. “Não conseguimos trazer novas pessoas, nem fazer esse trabalho de comunicação em relação à gente na cidade. Os lugares e as redes locais estão frágeis, têm dificuldade em durar no tempo.”
Tal como aconteceu aqui na Casa Selba, é comum um projecto que começa com uma dezena de pessoas seguir apenas com uma família. “Muitas estão cansadas de viver fechadas nas suas aldeias em condições super duras. Não é o mesmo nível de conforto da cidade, e está-se isolado de tudo, com muito menos relações sociais”, lembra Martin.

Em 2008, Lakabe promoveu o primeiro “Desenredos”, um encontro que se passou a realizar de aldeia em aldeia. Com o lema “não só de horta vivemos”, e a consciência de que quase todos os projectos colectivos falham “não por falta de alfaces, mas por falta de entendimento entre o grupo”, foca-se nos vários aspectos da vida comunitária: partilha emocional, relações humanas, resolução de conflitos, género, poder, comunicação, sexualidade.

“Acreditamos que estamos a fazer algo diferente, e acabamos por usar os mesmos esquemas mentais que nos fizeram procurar uma alternativa”, lê-se numa edição da Llamada del Cuerno. As aldeias okupadas são antes de mais espaços de aprendizagem – implicam autoquestionamento e não ser demasiado dogmático nos seus ideais.
As crianças correm pelos terraços da Selba repletos de alecrim neste final de verão. “Aprendo contigo e contigo caminho. Encanta-me tudo o que já partilhámos. Quero-te livre. E quero-me livre contigo.” Em torno dos acordes duma guitarra e das chamas duma fogueira, canta-se La Otra. “Dizem que dá medo a liberdade. Não senti-la nunca mais, medo me dá.”
Martin, quanto a ele, não se imagina viver numa cidade. “Muitas vezes as pessoas partem para a cidade para procurar o anonimato. Para o bem e para o mal, quando vivemos no campo não podemos ser anónimos. Quando o tecido é realmente denso e há um espírito de aldeia, sentimos que fazemos parte duma família.”

 

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