Catalunha: Independência contida, autonomia em risco

9 de Março de 2018
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Tudo indica que o processo de independência da Catalunha, na forma de República, foi contido pelo Estado espanhol. O desenrolar do conflito e os seus antecedentes históricos foram abordados longamente na última edição deste jornal. No artigo fazíamos referência a uma estratégia «pensada e posta em prática deliberadamente pelo Estado espanhol», que tinha por objectivo a sua recentralização. A resposta estatal ao desenvolvimento do processo independentista revela a aplicação de uma técnica militar, usada também noutros campos da dominação (político, económico ou financeiro), conhecida pelo acrónimo PRS (problema, reacção, solução), desde o momento em que foi aprovado no Congresso espanhol o estatuto de autonomia referendado pela população catalã em 2006.

 

Ameaça à unidade de Espanha como problema

O pilar em que essa estratégia assentou foi o recurso do estatuto autonómico apresentado ao Tribunal Constitucional pelo Partido Popular (PP), em Julho de 2006. Nos meses anteriores, uma campanha animada por Rajoy, então líder da oposição do governo de Zapatero, «em defesa das regras do jogo acordadas nos pactos de transição de 1978, da nação espanhola e da igualdade entre espanhóis», recolheu quatro milhões de assinaturas com o objectivo de convocar um referendo em toda a Espanha sobre o Estatuto catalão, que não prosperou «por ser inconstitucional», dando início a um período de crispação que foi endurecendo até hoje. Por essa altura, o apoio à causa da independência da Catalunha nas sondagens de opinião era de 14 %. A decisão do Tribunal Constitucional foi conhecida em 2010 e declarava a inconstitucionalidade de alguns artigos do estatuto, motivando a primeira grande manifestação na Catalunha, que reivindicava o «direito a decidir». Esta foi mobilizada por uma organização cultural de defesa da língua catalã (Omnium), cujo presidente, Jordi Cuixart, é um dos actuais presos independentistas. No ano seguinte, o PP ganha as eleições com a maioria absoluta dos deputados no Congresso espanhol. Em 2012, Rajoy recusa um «pacto fiscal», aprovado por todos os partidos do parlamento catalão (menos pelo PP, que se absteve), que era visto como a última possibilidade de entendimento entre Catalunha e Espanha. Estava criado o problema. O governo espanhol encarregar-se-ia de o exponenciar nos anos seguintes com decisões que aumentaram o estrangulamento económico da Catalunha, ataques à política linguística, intromissões nas competências do governo autonómico e recursos ao Tribunal Constitucional de leis aprovadas pelo parlamento catalão. Em menos de um ano, estas políticas elevaram para 45 % o apoio à causa soberanista, que recolheu também a adesão daqueles que se sentem incómodos em viver num Estado com tiques franquistas.

A chuva e a violência policial marcaram a jornada de 1 de Outubro, data em que se realizou o referendo para a independência da Catalunha, declarado ilegal pelo governo espanhol.

Reacção do independentismo catalão

No pós-franquismo, o primeiro partido a introduzir no seu programa o objectivo da independência da Catalunha (em 1989) foi a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC). Essa decisão coincide com a integração nas suas fileiras de dezenas de militantes da organização independentista Terra Lliure (Terra Livre), que praticava a luta armada. E quem mediou com o Estado espanhol a libertação dos presos e o abandono da violência por parte da organização foram os então dirigentes da ERC. Nas eleições realizadas dois anos depois conseguiram 8 % dos votos, elegendo 11 deputados, quase dobrando o resultado das eleições anteriores. É a partir de 2012 que o movimento independentista ganha realmente força com a criação da Assembleia Nacional Catalã (ANC), organizada em assembleias territoriais e de sector de actividade, cuja principal característica é a transversalidade política e social dos seus membros. O seu presidente, Jordi Sanchez, é outro dos presos independentistas. Nas eleições realizadas nesse ano, passa a ter assento parlamentar a Candidatura de Unidade Popular (CUP), plataforma de várias organizações da extrema-esquerda anti-capitalista, ecologista, feminista e independentista, elegendo três deputados. O partido de direita Convergência Democrática da Catalunha (agora Partido Democrata Europeu Catalão, que concorreu às últimas eleições com a lista Juntos pela Catalunha, organizada por Carles Puigdemont, o presidente exilado) só em 2012, quando governava a Catalunha e Rajoy recusou o «pacto fiscal», se aproximou das posições independentistas. Foram estes os actores que dirigiram o processo que conduziu à realização do referendo de 1 de Outubro (1-O) e à declaração unilateral da independência da Catalunha.

Com a realização do referendo, a repressão estava «cantada». Milhares de polícias de choque tinham sido destacados de todo o território do Estado espanhol com a missão de o impedir. Esses polícias não regressariam com o rabo entre as pernas às suas localidades de origem, de onde partiram aplaudidos por conterrâneos agitando bandeiras espanholas e cantando «a por ellos!». A surpresa para todos foi a resistência de quem participou na votação, pondo a ridículo aos olhos do mundo o governo espanhol. Esta resistência introduziu um factor inesperado no conflito catalão. Ter conseguido realizar o referendo, com a participação de mais de dois milhões de votantes que escolheram o «sim» à independência, colocou os dirigentes independentistas perante a disjuntiva: não assumirem o resultado e serem considerados traidores por uma parte significativa dos independentistas, ou assumi-lo e desencadear mais reacção do Estado.

Depois de muitas hesitações, foi declarada unilateralmente a independência no parlamento da Catalunha. A multidão que acorreu ao Palácio da Generalidade, no centro de Barcelona, para festejar a proclamação e defender a sede do governo autonómico, esperou, em vão, que o presidente Puigdemont a proclamasse da varanda, como fizeram no passado os presidentes a quem tocaram essas oportunidades históricas, apesar de efémeras. Mas nem Puigdemont apareceu nem a bandeira espanhola chegou a ser arriada do mastro situado no telhado do edifício.

 

O caminho incerto da solução

À declaração de independência, proclamada pelo parlamento autonómico em cumprimento do mandato obtido pelos resultados do referendo, respondeu imediatamente o governo estatal com a suspensão da autonomia da Catalunha, através da dissolução do parlamento, demissão do governo e convocatória de eleições. O governo de Rajoy assumia o poder executivo autonómico, demitindo todos os cargos de nomeação política. Esta intervenção foi executada com base no artigo 155 da Constituição, que permite «adoptar as medidas necessárias se uma comunidade autónoma atenta gravemente contra o interesse geral de Espanha, para a obrigar ao cumprimento forçoso das obrigações constitucionais». A aplicação deste artigo contou com o apoio dos partidos unionistas, agora também designados «monárquicos» (Partido Popular, Partido Socialista Operário Espanhol e Cidadãos), e com a oposição de todos os partidos independentistas ou nacionalistas do Estado espanhol e do Podemos, que a consideram inconstitucional. Designadamente, questionam a legitimidade do presidente do governo para dissolver por decreto um parlamento eleito, demitir um presidente escolhido pelo parlamento autonómico e convocar eleições, sem que estas atribuições lhe estejam conferidas na Constituição.

Tal atitude do Estado provocou a debandada do governo autónomo, levando o presidente Puigdemont a exilar-se com quatro dos conselheiros na Bélgica e os restantes a optarem por comparecer perante a justiça espanhola, sendo enviados para a prisão. Esta resposta revelava que os responsáveis políticos não se tinham preparado para a evolução dos acontecimentos num cenário de êxito do referendo de 1 de Outubro. A justificação de vários dos governantes e dirigentes independentistas para o recuo nas suas posições foi que «a atitude agressiva e ameaçadora do Estado espanhol punha em risco a vida de cidadãos da Catalunha». Clara Ponsatí, conselheira de educação do governo demitido, duas semanas depois de chegar ao exílio em Bruxelas, afirmava: «Não estávamos preparados para dar continuidade política ao que fez o povo da Catalunha a 1 de Outubro», reconhecendo implicitamente a inépcia do governo catalão perante a participação massiva e resistência à brutal repressão desencadeada pelo Estado naquele dia. Em jeito de autocrítica, admitia também que «dar resposta a esta acção contundente do povo catalão é o que quiçá não soubemos fazer da maneira mais acertada». Sublinhando, de seguida, o erro do governo e do independentismo catalão por «não ter em conta a força do nacionalismo espanhol, que estava adormecido, e é administrado de forma anti-democrática e às vezes violenta».

Estas declarações, proferidas numa altura em que Madrid acusava os dirigentes soberanistas de cobardia e de terem enganado catalães e catalãs, foram objecto de crítica nas fileiras independentistas, mas revelavam verdades incontornáveis, definidas em poucas palavras pelo filósofo Santiago López Petit(1): «Não fomos enganados. O Governo sim que se autoenganou. Acreditou na política. Obstinou-se em fazer ver quem era o mais democrático quando a democracia não existe. Existe o democrático, que é a forma como hoje o poder exerce o seu domínio; (…) que esvazia o espaço público de conflitividade, neutralizando-o política e militarmente; que é esta Europa, autêntico clube de Estados assassinos, que externaliza as fronteiras para não ver o horror. Aqui não houve fracasso da política como gostam de dizer agora os bem-pensantes. A política democrática consiste em calar e silenciar as dissidências que poderiam ameaçar a ordem.»

As iniciativas do governo, reforçadas pela actuação do aparelho judicial contra os principais dirigentes dos partidos independentistas e organizações da sociedade civil catalã, também tinham por objectivo conseguir uma vitória eleitoral dos partidos unionistas, com o regresso das instituições autonómicas à normalidade do ordenamento constitucional espanhol. O que, aparentemente, era exequível graças à mobilização da cidadania contrária à independência e, principalmente, pela pouca firmeza dos dirigentes independentistas no momento de concretizar a República.

Apesar das condições extraordinárias em que decorreu a campanha, com os principais candidatos independentistas presos ou exilados, os resultados das eleições realizadas no final do ano, as mais participadas de sempre na Catalunha, vieram confirmar a maioria absoluta de deputados independentistas no parlamento autonómico, ainda que os partidos não-independentistas, onde se inclui o Podemos, os tenham superado ligeiramente em número de votos. Juntos pela Catalunha, a lista liderada e organizada pelo presidente exilado, Puigdemont, foi o partido independentista mais votado, contrariando todas as previsões que davam a Esquerda Republicana da Catalunha como vencedora e o seu dirigente Oriol Junqueras, preso em Madrid, como favorito a presidir o governo. Um mês e meio após o acto eleitoral imposto pelo governo espanhol, inexplicavelmente aceite com resignação pelos partidos independentistas, a Catalunha continua sem governo constituído devido às dificuldades criadas pelo Tribunal Constitucional à investidura de Puigdemont. Se podia ser candidato a deputado estando a ser processado judicialmente e no exílio, é contraditório que depois de eleito não possa ser investido presidente. Atendendo ao que já fez até agora, é uma ingenuidade pensar que o Estado espanhol passará pelo ridículo de permitir a investidura. Tudo indica que o seu futuro passará por ser um presidente da República catalã simbólico, no exílio: um regresso ao passado (durante o franquismo, os presidentes da Catalunha viveram essa situação, até que, no início da transição, Josep Tarradellas regressou ao país).

A fricção entre independentistas e o governo de Madrid aumentará nos próximos dias devido à investidura do presidente, à formação do novo governo e à perseguição judicial, que se intensificará com a audição no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de vários dirigentes soberanistas. Mas a repressão não se ficará por aqui, a avaliar pelas declarações do actual chefe (2) da Unidade Central Operativa (UCO) da Guardia Civil: «estamos a ir de porta em porta, todo aquele que cometeu ilegalidades a 1 de Outubro será chamado à justiça». A repressão da Catalunha que teve a pretensão de se rebelar será grande. Apoiado nos partidos «monárquicos», o Estado espanhol persistirá em humilhá-la. Agora, não havendo mais o pretexto do «terrorismo basco», tem a necessidade de manter a tensão com o independentismo catalão, que utilizará para se recentralizar e ao mesmo tempo justificar o desmedido aparelho repressivo que tem montado. O apoio de mais de dois milhões de catalães à causa soberanista não só lhe garante esta tensão, como continuará a contribuir para activar o nacionalismo espanhol. Tempos históricos, mas difícieis, para os catalães, que estão mais perto de perder a autonomia do que de ganhar a independência, o que não quer necessariamente dizer que o futuro que se avizinha seja melhor para os outros povos do Estado espanhol.

 

Os protagonistas da recentralização

Uma coincidência que deve ser realçada pelo aumento exponencial da importância que adquiriu como sujeito político, no decorrer do conflito entre o Estado e Catalunha, foi a fundação em Barcelona (2006), em plena discussão do estatuto de autonomia, de um novo partido: Ciutadans (Cidadãos). No seu programa incluía a defesa da Constituição espanhola, destacando um dos seus princípios básicos: «a soberania reside no conjunto da cidadania espanhola, não em cada uma das Comunidades Autónomas», e propunha-se a «racionalizar o sistema autonómico». Para presidente foi escolhido um jovem advogado, Albert Rivera, ex-militante das juventudes do PP. Três meses depois, era o cabeça de lista do partido às eleições autonómicas, que elegeu três deputados. O cartaz da campanha eleitoral apresentava-o nu, cobrindo os genitais com as mãos, debaixo do lema: «Nasceu o teu partido». O aumento da influência por parte do Ciutadans está patente no resultado alcançado nas últimas eleições para o parlamento da Catalunha, em 21 Dezembro: foi o partido mais votado, elegendo 36 deputados (o PP elegeu apenas quatro), com Inês Arrimadas, uma jovem advogada, filha de um oficial da polícia franquista, na liderança. Alberto Rivera preside agora o Ciudadanos (Cidadãos), um partido com o mesmo programa, mas à dimensão estatal, que nas eleições legislativas de 2016 elegeu 32 deputados para o Congresso espanhol. Nele, vem defendendo uma reforma da Constituição «que não dê privilégios a uns territórios ante outros», isto é, uma reforma que, em lugar de reconhecer a singularidade da Catalunha, irá pôr em causa também a autonomia do País Basco e de Navarra, apresentando-se como a única voz entre os políticos que enuncia a recentralização do Estado. Ter sido o convidado espanhol da última reunião (2017) do Club Bilderberg, onde foi apresentado como «a jovem promessa» pela banqueira Ana Botín do comité directivo deste club dos mais poderosos do planeta, indica que contam com ele para o que for preciso. Segundo várias sondagens, o Ciudadanos poderá ultrapassar o PP, desgastado pelos casos de corrupção e pela gestão do conflito catalão, nas eleições espanholas previstas para 2019, se estas não forem antecipadas.

 

Ler também o artigo “Catalunha na Berlinda”, da edição #18 do Jornal MAPA

Notas:

  1. Santiago López Petit, filósofo catalão, fundador do colectivo Espai en Blanc. Citações retiradas do artigo Catalunya com laboratori polític, publicado no blog: Crític, periodisme d’investigació. Pode aceder-se ao artigo aqui: goo.gl/g1ygqm.
  2. Coronel Manuel Sánchez Corbi, condenado a quatro anos de prisão e seis de inabilitação por torturar um preso basco, em 1997. A pena seria reduzida pelo STJ a 1 ano, mantendo a inabilitação. Seria indultado pelo governo de Aznar em 1999. Agora chefia um importante instrumento repressivo do Estado espanhol. Notícia aqui: goo.gl/siQt2m.

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