Isto vai arder
O que se convencionou chamar “tribos urbanas” (expressão discutível, certamente mais eficaz para propósitos de legibilidade governamental e contenção do seu potencial do que para qualquer outra coisa) desaparece e as fronteiras entre as diferentes culturas musicais esbatem-se. O exército dos perdidos e descontentes alarga-se. A fidelidade a identidades rígidas dá lugar a formas híbridas de exploração musical e estilos antes reservados a nichos fechados saltam para fora das suas zonas de conforto, sem que tal seja visto como uma grande ousadia ou heresia. Isto pode ter tantas vantagens como desvantagens e é, ao mesmo tempo, consequência da domesticação operada pela indústria do entretenimento, através da apropriação e comercialização de formas marginais ou subversivas, como deriva da fluidez do mundo contemporâneo, pelo menos da perspetiva deste cantinho onde vivemos. Mas, acima de tudo, pode-se dizer que a música se assume crescentemente, para muitos, como um espaço de sociabilidade plena e abrangente e menos como um mero agregador comunitário para almas perdidas. Consolida-se como uma plataforma para reclamar e enfrentar o mundo e não apenas como um “buraco” para fugir dele. Por outras palavras, há uma linguagem ou gramática que se estende e une cada vez mais sectores, atraídos pelo confronto e não pelo conformismo do “there is no alternative” ou “no future” das quatro últimas décadas. A revolta abandona os seus recreios compartimentados. São vários os projetos que o confirmam, sendo o funaná-punk, carregado de negrume, sujidade e velocidade, de Scuru Fitchadu, um dos exemplos recentes mais sonantes. Mas é de Ângela Polícia que quero falar, músico de Braga, alter-ego de Fernando Fernandes e uma das surpresas de 2017, com o registo de estreia Pruridades – que, não por acaso, descobri numa noite de Lisboa a abrir para Scuru Fitchadu.
Quando grita “Graças a quem matou o meu deus/ Assim não há esperança e ‘tá-se muito bem!” (in “Graças!”) ou avisa que “Isto vai arder” (in “Isto vai arder!”), não está a levar a mensagem desesperada duma comunidade isolada mas, sim, a expressar uma sensação difusa, e cada vez mais extensa, perante o mundo. Provavelmente, aquela que une a “irmandade dos esquecidos”, habitantes da base da pirâmide, os “drogados, marados, abandonados, génios ou tolos” (in “Submundo”.) E Ângela Polícia sabe disso. O som de Pruridades mistura a acutilância do hip-hop, o groove do trap e a raiva do punk, para rebentar em todas as direções; Ângela tanto arranha a garganta para cuspir as palavras e levantar a voz, como declama ou nos embala num registo mais soul. As letras, em consonância como esse vaivém de emoções, tanto expressam uma angústia introspetiva como se metem onde não são chamadas e apontam o dedo, para na melhor tradição do punk negar, basicamente, tudo.
Pruridades combina “prurido” com “prioridades” e essa sobreposição ilustra bem o conteúdo do álbum, em que sentimos o incómodo a transformar-se em insuportável e a dar lugar à urgência das prioridades, transbordando sem rodriguinhos. Essa angústia explosiva, pouco dada à contemplação e ansiosa por pisar o risco, é uma das grandes qualidades deste trabalho de Ângela Polícia, reforçado pela banda sonora certa. É a expressão duma latência que atravessa cada corpo que navega pela rua e pelos escritórios dos nossos dias e que anseia por abandonar o subsolo dos ansiolíticos e das máscaras. É a expressão duma potência. Ângela Polícia está aí para mantê-la viva.
Diogo Duarte
diogo.mainselduarte@gmail.com