Okupas: uma história que se escreve a cada dia
“Afinal queremos tudo”, lê-se numa faixa pendurada na fachada de um prédio na Rua Marques da Silva, em Lisboa. “Ocupando a cidade, combatendo a autoridade”, numa outra faixa que pende dos portões da antiga escola primária José Gomes Ferreira, no Porto. Mais a Sul, em Setúbal, celebram-se 17 anos de existência da Casa Okupada Setubalense Autogestionada, ou COSA.
É Outubro de 2017, e as semanas vão-se dobrando sobre si próprias, umas mais memoráveis que outras. As últimas semanas, ou meses, têm resultado em múltiplas histórias para serem contadas em anos vindouros. Isto é, no que à ocupações diz respeito. E há quem esteja a dedicar-se a fazer essa história, e a constituir uma historiografia dessa história também.
Este movimento não é coisa nova em Portugal. São muitas as memórias e casas que sobram do Processo Revolucionário em Curso, de uma onda de ocupações que se deu entre 1974 e 1978. Durante esses quatro anos, era “praticamente legal ocupar casas devolutas”, explica Ricardo, membro fundador do Arquivo Digital de Ocupações. Não obstante, o processo começou a abrandar com a entrada em vigor da Constituição Portuguesa, em 1976, que preservava e garantia os direitos de propriedade que começavam a ser questionados e desmantelados durante o PREC.
O Arquivo Digital de Ocupações não pretende analisar o período de ondas de ocupações em Portugal dos anos 70 – tenta antes fazer uma “historiografia” do movimento de ocupações pós-1993. Ricardo pauta o início do período de estudo com o surgimento da “Casa Reciclada”, no Porto. Aqui, faz uma distinção entre “ocupações” e “okupações”, sendo que são as segundas que compõem o corpo de estudo deste arquivo.
“No pós-25 de Abril, as ocupações tinham uma motivação popular”, explica, “enquanto que as ocupações que se dão a partir dos anos 90 têm uma motivação política”. Não se descarta, de forma alguma, a questão da habitação, que era central nas ocupações dos anos 70, mas a discussão sobre a habitação, nesta “nova” forma de ocupação, tem outros contornos. “Já não é só uma questão de necessidade, é um debate político sobre o que é a propriedade. Há uma crítica feroz sobre a propriedade. Nos anos 70 a necessidade de habitação estava acima da razão de questionar a autoridade.”
Garante que o apoio popular que estas ocupações tinham facilmente explica a quantidade de casas devolutas libertadas para habitação: “Havia comités de ocupações, quando hoje já nem associações de moradores existem”. E isso explica a quantidade de casas entregues ao abandono nos dias de hoje, quando ao mesmo tempo se discute mais e mais o que é o acesso à habitação. “Há uma falta de responsabilidade civil para com a população, e não há uma base popular para avançar”, garante, sublinhando que o contexto de hoje é “completamente diferente”, caracterizado também pela “visão muito má do que são as ocupações, que surge logo após a Constituição”.
Então, nesta nova onda de ocupações (ou okupações, pela sua conotação política distinta das ocupações de ’70), surgem novas preocupações e novos debates. São esses temas que Ricardo e os demais colaboradores do Arquivo Digital de Ocupações pretendem recuperar e escrever.
Uma historiografia feita a partir de dentro
A ideia do Arquivo também não é nova. Ricardo explica que já andaria a germinar há sensivelmente dez anos, mas não no formato que agora assume. O projecto irá consolidar-se em duas grandes ideias: um arquivo digital de acesso público e, mais tarde, um livro que junte algumas das mais relevantes histórias acerca do movimento que se propõem a documentar.
“O movimento da okupação está muito alicerçado e enraizado nalgumas premissas do movimento anarco-punk”, assegura, e acrescenta que “já houve a edição de dois livros sobre historiografia do punk em Portugal”. Ainda assim, o estudo que depois resultou na publicação desses livros levanta algumas dúvidas ao colectivo que mobiliza o Arquivo: “mas quem são estas pessoas, que autoridade têm elas para falar sobre este movimento?”
Ricardo não duvida da legitimidade académica dos envolvidos nesses dois livros, mas garante que há uma diferença fundamental: “eles vêm de fora falar sobre uma coisa na qual não participam, nós falamos a partir de dentro numa coisa em que participamos. Estamos a escrever a história do movimento de okupação partindo dos seus intervenientes”. Uma das grandes preocupações dos colaboradores do Arquivo é que “a nova geração que integra o movimento anarquista e anarco-punk já não conhece estas histórias, e se não houver passagem de testemunhos, só sobra a visão dos académicos”. Sublinha: “existem os académicos que escrevem a história, e os intervenientes que a fazem”.
Até para Ricardo e os demais elementos do Arquivo a história está a provar-se surpreendente. Durante um ano de “trabalho arqueológico”, como o descreve, já deram conta da existência de perto de 150 okupas entre 1993 e 2017. Dividem esses 24 anos de historiografia em três grandes fases, cujos limites temporais estão abertos a discussão.
O primeiro momento que estudam pauta-se entre a fundação da Casa Reciclada, no Porto, em 1993, até ao despejo da Kasa Enkantada, em Lisboa, em 2002. Ricardo aponta a Kasa Enkantada como um momento vital da história do movimento pela relevância que este projecto assumiu no panorama nacional. Acredita que esse primeiro momento era, acima de tudo, “experimental”, mas que evoluiu para uma fase de confronto e acção que distingue os anos que caracterizam como sendo o segundo momento desta historiografia.
De 2002 até 2008/2012, o movimento ganha “maturidade”, como descreve. Surgem múltiplos “espaços autónomos” nas cidades, como “o RDA, a CasaViva, a Severa”, que complementam o movimento de okupação e lhe permitem “um ponto de apoio e dinamismo”. Por operarem dentro de um modelo legal, com espaços arrendados e associações constituídas, estão mais protegidos. Acrescenta que imediatamente após o despejo da Kasa Enkantada, nos dois anos que se seguiram, houve 12 okupações que surgiram em retaliação pelo despejo – mesmo que “algumas delas não tenham durado mais do que uns dias”.
Então, essa segunda fase que o Arquivo delineia estende-se entre o despejo da Kasa Enkantada e o “pós-crise”, como define Ricardo. Esse período de “pós-crise” pode-se estender entre 2008 e 2012, e representa uma nova forma de estar no movimento. Ricardo aponta o caso do Espaço Colectivo Autogestionado do Alto da Fontinha (Es.Col.A.), no Porto, como o ponto de entrada para o terceiro – e actual – momento do movimento de okupações.
“Foi o caso da Fontinha que trouxe isto das okupações de volta à discussão pública”, acredita Ricardo, sublinhando que esta é a sua opinião individual, e que não caracteriza a do Arquivo. Relativamente à efemeridade da maioria das okupações que se deram após a Fontinha, que caracteriza como “okupações flash”, não está preocupado. “Mesmo que só durem uns dias, nota-se maior maturidade nos projectos políticos e sociais das okupas”, acredita.
Das 150 okupas que Portugal conheceu desde 1993, é-lhe difícil apontar as que terão sido mais relevantes na história, mas acredita que “os casos mais paradigmáticos foram os que queriam mudança social”, e enumera alguns: a Casa Reciclada, a Casa de Cascais, a Zarabatana (Queluz), a Kasa Enkantada em Lisboa, a Fontinha, a C.O.S.A. (Setúbal)… Mas ainda é demasiado cedo no traçar desta tumultuosa história para determinar com certeza quais foram os seus momentos mais disruptivos e icónicos.
“Afinal, queremos tudo” e “é proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”
Se, como Ricardo assegura, esta história é escrita e feita pelos seus intervenientes, os últimos meses têm sido convulsos no que à história das okupações diz respeito. Em Setembro, junta-se uma assembleia de mais de 150 pessoas num antigo e devoluto imóvel camarário em Lisboa. Na fachada do edifício azul lê-se “A cidade é de quem a ocupa. Assembleia de Ocupação de Lisboa”. Lá dentro germinam ideias.
Inês Silva, integrante do colectivo que dinamiza a Assembleia (AOLX), conta que “não havia uma ideia concreta para a casa”, daí a importância de convocar essa reunião aberta a toda a população. “Era fundamental uma ligação à comunidade e, por isso, as pessoas podiam ir lá apresentar as ideias que tivessem para realizarem ali, desde creches sociais até habitação”. Decorriam as campanhas para as eleições autárquicas, e como Inês sublinha múltiplas vezes “o tema da habitação foi central durante os debates autárquicos”.
A porta do imóvel já estava aberta, pelo que aquando da entrada do colectivo no espaço foram enviadas cartas, nomeadamente à Vereadora da Habitação de Lisboa e à Polícia de Segurança Pública, que davam conta desta iniciativa. Entretanto, e antes ainda das eleições, houve uma breve visita da Polícia Municipal à AOLX, mas que Inês não sobrevaloriza: “A Polícia Municipal teria de ter ido lá para nos avisar que tínhamos 90 dias para sair, conforme a lei, mas estavam completamente desinformados dos procedimentos”. Até à data não houve qualquer tentativa de contacto por parte da Câmara Municipal de Lisboa, nem sequer para tentar proceder a um despejo.
Actualmente a AOLX está em fase de obras, e de ideias. Inês Silva refere dois grandes projectos: que a casa sirva de “sede” a um movimento de okupações mais amplo do que aquele que existe, com apoio jurídico, documentação legal, e espaço para reuniões; e que sirva também um propósito de habitação temporária para pessoas que tenham sofrido um despejo ou que não consigam encontrar casa para arrendar na cidade.
Inês sublinha o teor “temporário” desta habitação que refere. Por um lado, pela questão legal que se lhes impõe. Se a qualquer momento chegar um aviso da Polícia Municipal que anuncie um despejo em 90 dias, nunca poderá estar gente a viver lá mais tempo do que isso, para protecção das próprias pessoas. Por outro lado, a casa não servirá para alojamento permanente pelas suas características voláteis e pela discussão que pretende criar. Ainda assim, nada é certo. Antes de serem tomadas decisões delicadas – “quem entra, quem fica primeiro, quanto tempo fica…” – têm de se concluir as obras, que estão a avançar a um ritmo estável.
Para já, não está em cima da mesa que se transforme a AOLX num Centro Social Okupado, pelo contexto do bairro em que a casa se situa. “Os Anjos já têm muita vida social e associativista”, explica Inês, pelo que não fazia falta mais um centro social. “A habitação é a maior preocupação social, neste momento, então os espaços complementam-se”, e daí a relevância da AOLX naquele bairro em específico.
Sendo que talvez se assemelhe mais às ocupações dos anos 70 do que às okupações que o Arquivo Digital se propõe a compilar, a AOLX tem uma preocupação fundamental que é a habitação: “podemos discutir a propriedade privada, mas há necessidades imediatas e concretas a suprir, e a que temos de responder”. Não obstante, é demasiado cedo para definir a natureza da casa, pensa Inês Silva. A ideia é que a AOLX vá para lá dos Anjos e da grande casa azul onde se instala. Aquela ocupação é tão somente o primeiro passo da Assembleia, que visa legitimar a okupação como acção social e política, mas não só.
Mais a norte, e exactamente um mês depois de se encher a casa lisboeta com 150 pessoas ferventes de acção e ideias, uma escola primária no Porto enche-se com outras tantas pessoas igualmente ardentes. Uma noção algo familiar para muitos portuenses. A 14 de Outubro, a Escola Básica José Gomes Ferreira, perdida entre as Ruas do Bonjardim e de Faria Guimarães, nas velhinhas ruelas operárias da cidade, enchia-se de barulho, música e vassouras.
Uma faixa pendurada no gradeamento da escola deixava ler “É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”. Lá dentro, corria água, faziam-se planos, e discutiam-se ideias. Rebaptizou-se a escola: “A Travêssa”. Desimpediu-se o acesso à porta da escola, forrado de folhas caídas e lixo sortido, preparou-se uma mesa com comida para ser partilhada, ligou-se uma coluna e ouviu-se música. Nos olhos de quem já tinha visto e vivido um Porto que teve uma Fontinha, acendia-se um brilho, entre a esperança e a nostalgia. No manifesto colado à porta e publicado no blog, lê-se que os okupas queriam “retomar os bairros cujas gentes são, a cada dia, brutalmente expulsas e varridas nesta verdadeira fábrica de turismo”. Uma das discussões que mais prevaleceu foi a dominante no Porto por estes dias: gentrificação.
Os vizinhos abriram o seu bairro para os novos rostos que chegavam a cada minuto. “Bem-vindos ao nosso bairro!”, gritou um, assim que se entrou pela porta da escola. “Pensávamos que nunca mais vinham!”, confessava uma senhora, esticando o pescoço para ler a faixa. Foram chegando panelas, instrumentos de cozinha, mesas, cadeiras, livros escolares. Rostos novos, rostos curiosos, rostos idosos. Todos sorridentes.
Foi sol de pouca dura. A okupação não tinha atingido as 48 horas quando foi sacudida por marretas, gritos e pontapés, com a PSP, a PM e até a PJ a entrarem pela Travêssa adentro. Da acção de despejo resultaram 21 pessoas detidas, todas constituídas arguidas – sem saberem de que crime – e colocadas sob termo de identidade e residência. No comunicado da CMP que seguiu o despejo, teciam-se acusações de insalubridade, vandalismo e destruição de equipamento. No gradeamento da Travêssa, para além da faixa com a frase de José Gomes Ferreira, via-se uma bandeira LGBT e uma outra: “Ocupando a cidade, combatendo a autoridade”, que mereceu menção especial no comunicado municipal.
Após a ferida aberta que Rui Rio provocou na cidade com o brutal despejo da Es.Col.A., e a rápida extinção da Biblioteca Popular do Marquês, ficou sempre um sabor amargo na boca dos portuenses. E ao testemunharem o veloz fenómeno de gentrificação e turistificação que assola a cidade, havia que agir prontamente. A resposta das autoridades, seja do actual Presidente da Câmara que detém a maioria absoluta e está no seu último mandato, seja das Polícias que actuam na cidade, ou até dos pressupostos inquilinos do espaço (que seria o Instituto Politécnico do Porto), foi mais veloz e eficaz ainda.
A história faz-se de resistências
Se a história da Travêssa foi uma que poucas linhas ocupará na historiografia que Ricardo e os seus companheiros escrevem no Arquivo, o mesmo não é verdade para a Casa Okupada de Setúbal Autogestionada (C.O.S.A.). Enquanto na velhinha escola primária se desimpedia caminho para um novo projecto, na mais antiga okupa em funcionamento de Portugal celebravam-se 17 anos de vida e resistência.
A C.O.S.A. foi okupada a 13 de Outubro de 2000, ainda durante o momento que Ricardo caracterizava como sendo “a primeira fase do movimento”. Passaram “políticos, comandantes das forças policiais, governadores civis, os processos judiciais, a repressão policial e as difamações nos jornais”, como escrevem no seu blog, mas a C.O.S.A. mantém-se resistente e de pé. Ainda assim, os últimos meses têm sido algo conturbados para este centro social.
Dias depois do 15º aniversário do projecto, foram notificados os ocupantes da C.O.S.A. de que estaria em processo uma ordem judicial iniciada pelos proprietários da casa de forma a que se procedesse ao despejo. Explicaram à data que o proprietário original, entretanto falecido, teria deixado aquele imóvel a uma sociedade de herdeiros que é proprietária de muitos outros imóveis devolutos, asseguram. Constava da notificação que os ocupantes tinham 30 dias a contar do dia da recepção da carta (16 de Outubro de 2015) para esvaziar o edifício e abandoná-lo. Esse foi tão somente o princípio de uma nova jornada de luta para os setubalenses que dão vida a uma casa outrora decadente e devoluta.
Os ocupantes da C.O.S.A. recorreram da decisão judicial e tentaram dialogar com os proprietários do imóvel – que numa primeira fase terão acedido ao pedido, mas nunca o fizeram. Pela segunda audiência, a 2 de Junho deste ano, e após múltiplas irregularidades processuais, acusam, a juíza terá determinado a restituição do imóvel aos seus legítimos proprietários. Irão recorrer novamente, mas para já o futuro da C.O.S.A. é incerto. Excepto num dos traços que fazem a sua história: a resistência. A C.O.S.A. promete resistir como resistiu ao longo dos 17 anos que fizeram o seu percurso, agora com a existência d’O Covil, uma espécie de “gabinete” de suporte okupa, onde os interessados poderão procurar ajuda e conselhos para expandirem o movimento, libertarem novos espaços e criarem novos projectos.
Os dias que na Travêssa se viveram intensos de esperança e projectos futuros, na C.O.S.A. viveram-se de celebração e de resistência. Outras histórias se delineiam, para lá de pequenos apontamentos, como a Travêssa, e de grandes capítulos, como a C.O.S.A. Certo é que não é uma história curta, nem uma que vá ficar por contar.