Onde há fumo há mais do que fogo

incêndio do Andanças e a história que ficou por contar

9 de Outubro de 2017
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422 carros destruídos: não há precedente para o incêndio que no verão passado varreu o estacionamento do festival Andanças, em Castelo de Vide. Mas se nesse 3 de agosto as imagens dos media se obcecaram com a desolação material, no festival prosseguia a música e a dança. Ofereciam-se roupas e tendas, abraços e boleias. Semanas depois, surgia a Ajudada, uma rede informal de solidariedade e apoio-mútuo. Nas vésperas do Andanças 2017 e do final da Ajudada, uma história de como perante uma dificuldade há mais do que o egoísmo humano a vir à tona. Uma história de como as pessoas se podem organizar de forma criativa e solidária – alternativa à logica do mercado (seguradoras) e do estado (tribunais). Esta é a história que ficou por contar.

É o terceiro dia do Andanças. É a terceira vez que Julien faz o vaivém entre o festival e o estacionamento. Estão 40 graus, o jovem artista plástico está exausto e de coração partido – e prepara-se para abandonar a meio o festival onde já trabalha, voluntariamente, há um mês. Mas a caminho do estacionamento, onde o carro já está cheio e pronto para partir, vê uma coluna de fumo negro.

Impossível saber como começou. Próximo do local, Paulo descobre várias viaturas a arder. Desiste de salvar a sua, desiste de voltar ao festival para perto dos filhos, e junta-se de imediato aos cordões humanos que se formam. Como Julien, em pânico, “chegavam muitas pessoas a correr para tentar salvar os carros”. Travam-nas e afastam-nas para longe do perigo. “Muitas vezes parando e consolando-nos uns aos outros”, recorda Paulo, também ele voluntário. “’É só um carro… O meu também ardeu’”.

O festival de música e dança popular é evacuado por precaução, numa serenidade que contrasta com a voracidade das chamas. “Sem tempo para pensar”, enquanto o seu carro arde, Paulo junta-se às equipas que verificam o recinto e abrem cada tenda a garantir que ninguém fica para trás. Pelo menos garante que os seus filhos saíram.

Quando a protecção civil chega já a multidão está em segurança, ao longo da estrada da barragem de Póvoa e Meadas. Vários músicos haviam trazido consigo os instrumentos. Ali, longe do descompasso das explosões e da negra cortina de fumo, surgem valsas, quadrilhas e mazurcas. Com carrinhas de caixa aberta Paulo e a organização distribuem água, melancias, pêssegos pela multidão. Por fim, o reencontro com os filhos: “As crianças lá estavam com os adultos a fazer brincadeiras, cantorias e danças. Foram poupadas àquelas imagens que correram o país.”

Não há qualquer vítima, nem floresta queimada – mas em hora e meia tinham ardido 422 carros. Chegam televisões e fotógrafos e refastelam-se com o fumegante cemitério automóvel. “Nunca tinha acontecido nada assim em Portugal, nem aparentemente na Europa”, observa Graça, uma das coordenadoras do festival. “Os jornalistas iam à procura do drama, e ficavam tristes por não encontrar ninguém aos berros”.

Acabo de perder o carro. Em que posso ajudar?”

Face aos problemas – como iríamos voltar, como nos iríamos arranjar sem carro – as perguntas dos meus filhos eram do estilo: A que workshops podemos ainda ir hoje? Podemos ir ver o carro? O que é o jantar?”, conta Paulo. “Tudo se iria resolver a seu tempo.” Apenas três horas após a evacuação, recomeça o festival.

Artistas e técnicos que acabavam de perder o carro, outros sem saber ainda se o seu estaria entre os destruídos, correm para o recinto – para receber o público de volta com música a tocar nos palcos. Uma avalanche de voluntários mete ordem nas coisas que tinham sido abandonadas como estavam. Não há qualquer dano ou roubo.

Há pouco, Eva não continha as lágrimas ao ver arder o carro que tinha sido do seu avô. “O meu primeiro e único carro! Tinha-o há 3 meses bem vividos.” Agora, alguém a lembra que está programada para tocar esta mesma noite. Não pensa duas vezes: “Claro, vamos embora!” A concertina, instrumento da sua vida, está sã e salva.

O concerto foi uma experiência fortíssima”, lembra Eva. “Foi uma forma de me libertar e de poder dar algo às pessoas, algum conforto com a música.” Quase toda a gente tem um amigo que perdeu o carro e os bens que este continha. Julien não pára de chorar. “As pessoas estavam sempre a olhar por mim, com compaixão. Sorriam, abraçavam-me. E eu sentia essa compaixão ao ver outros chorar. Havia uma extrema beleza e solidariedade”. Uma reunião junta toda a gente num palco: lesados, organizadores, protecção civil. “Descobri que eram quatrocentas pessoas como eu!”.

Psicólogos que desfrutavam do festival juntam-se voluntariamente à organização para apoiar as pessoas mais perturbadas. “Músicos que perderam todos os instrumentos foram mesmo assim dar workshops logo a seguir ao incêndio”, recorda Paulo. “Qualquer pequena coisa que pudéssemos fazer por eles representou imenso para nós”. Outros artistas, também tendo perdido o carro, juntam dinheiro a vender os poucos cds que não haviam ardido – e doam-no a quem mais precisa.

Os filhos de Paulo fazem desenhos para o grande placard que logo surge na entrada com dezenas de pedidos e ofertas de boleias. Oferecem-se tendas e sacos-cama. “As pessoas juntaram um monte de roupa de que nos podíamos servir”, diz Julien, que para além de toda a roupa perdeu valiosos materiais de trabalho. “Numa das lojas de roupa o comerciante disse-me: ‘leva o que quiseres’.”

O desenrolar da história tem um preâmbulo: o incêndio deflagrou no estacionamento de artistas e voluntários, pessoas mais próximas daquilo que referem, repetidamente, como “o espírito do Andanças”.

O Andanças faz parte das férias com os meus filhos”, explica Paulo, “são ali vividos intensamente valores como partilha, alegria, respeito pelas pessoas e pela natureza”. “É a minha segunda casa”, conta Eva. “Desde miúda é um mundo onde me sentia livre.” O festival abriu-lhe as portas para a música tradicional europeia e de miúda na plateia passou a artista no palco. “Desde 2009 toco todos os anos. É o único sítio onde volto sempre.”

É noite de encerramento do Andanças e Eva actua uma última vez. É o concerto menos ensaiado que já deu: 1,2,3 Soleil devia ser um trio mas, depois do que acabam de viver, junta-se no palco uma multidão de músicos em catarse.

Vai uma Ajudada?

Como Eva, Julien ou Paulo, são centenas de histórias. “Para algumas pessoas a perda dum carro desequilibra-as financeiramente de modo terrível. Ficaram com situações muito dramáticas. Há quem não viva nas grandes cidades e dependa do carro para fazer tudo”, testemunha Rui, antigo coordenador no Andanças.

As seguradoras tentam desmarcar-se ao máximo”, ri Eva. “Mesmo quem tinha seguro contra todos os riscos, por vezes havia cláusulas que excluíam acidentes destes.” Numa operação de marketing, uma seguradora decidiu ressarcir todos os clientes. Outras arrastam processos até hoje. O seguro do festival só actuaria se houvesse responsabilidade da organização – e o ministério público concluiu não se poder imputar responsabilidade a ninguém. Nas televisões surgiu um advogado representando diversos lesados e prometendo atacar judicialmente os organizadores.

Alguns de nós sentimos que tínhamos de fazer algo”, conta Rui. Hoje, é um dos dinamizadores voluntários da Ajudada: uma rede autónoma de solidariedade e apoio-mútuo que junta lesados e amigos do Andanças. A ideia é disponibilizar apoio psicológico, legal, financeiro ou material, partilhar boleias, emprestar instrumentos musicais… Fizeram reuniões de norte a sul. Criaram uma linha de telefone de apoio. Abriram uma conta bancária comum – “procurámos um banco solidário, mas em Portugal ainda não existe” – e são os próprios lesados a geri-la e a decidir em conjunto os critérios de distribuição do dinheiro angariado.  Em maio, subiram ao palco do Festival Ajudada em Lisboa os artistas que perderam o carro e os bilhetes foram para apoiar os lesados que mais precisavam. Já em novembro acontecera no Centro Social Autogestionado La Tabacalera em Madrid o “Solidanza”, um festival semelhante para apoiar músicos espanhóis.

Há um espírito que nos une que é contracorrente. É mais fácil as pessoas acomodarem-se à queixa, apontar dedos e ir a tribunal. É o que está instituído na nossa cultura. Esta é uma nova forma de olhar o mundo. Ninguém queria que o incêndio acontecesse. Todos juntos, podemos colaborar para a melhor solução possível, numa perspectiva de responsabilidade social alargada.”

Ajudada” alude a uma prática ancestral comum em zonas rurais, quando a comunidade se juntava para dar apoio nos trabalhos agrícolas de uma propriedade. Uma ajuda de todos a cada um onde homens, mulheres, crianças e anciãos tinham todos sua tarefa. Foi também o nome de um encontro em Portalegre em 2013, ano em que o Andanças se mudou para a região, que se propunha pensar um novo modelo de economia, a partir da comunidade, da dádiva e da partilha.

As Ajudadas representam muito, nesta época de individualismo feroz”, diz Paulo. “É uma iniciativa linda”, elogia Eva, que actuou no Festival Ajudada com o grupo Ó Chibinha, e que quando precisou obteve através da rede um carro emprestado.

Na recta final da iniciativa, que dura até ao próximo Andanças – edição mais pequena, de 8 a 11 de Agosto em Castelo de Vide –, Rui reconhece que a Ajudada não teve o impacto mediático ou a massificação da ajuda que desejava. Considera também que o grupo de lesados que procurou ser indemnizado de forma mais convencional, indo a tribunal, cindiu um pouco o movimento. “Se estivéssemos todos juntos tínhamos eventualmente conseguido mais, nomeadamente junto das seguradoras.”

E, ainda assim, não desarma sobre a relevância da Ajudada. “É um exemplo duma forma criativa e construtiva de nos ajudarmos uns aos outros. Queremos ajudar a tornar isto tanto quanto possível um caso positivo para situações futuras. É como uma vela que a gente acendeu, e o campo abriu-se.”
Mais informação sobre a rede Ajudada

Qualquer pessoa pode contribuir para o fundo comum da Ajudada através do NIB/IBAN – PT50019300001050077440082.

Caixa à parte: Menos um carro”

É quarta-feira e é a primeira vez que a Cicloficina dos Anjos abre num lugar que não a Recreativa dos Anjos em Lisboa. Estamos no festival Andanças, acaba de haver um incêndio e tresanda a carros queimados.

Para cá chegar, organizaram o Pedalanças – uma “viagem ambientalmente sustentável e tão próxima da natureza quanto possível”, três dias de bicicleta para desfrutar sem pressas das paisagens.

Os autocolantes que se distribuíam na banca parecem de repente de mau gosto e são retirados: “Menos um carro!”, lê-se.

Desta oficina comunitária onde todos os dias os participantes do festival podem arranjar bicicletas e aprender a fazer remendos, Carlos testemunha agora “uma solidariedade incrível”. “Também houve pessoal que entrou em pânico e bazou. Mas o acidente uniu muito mais a família Andanças. Com o tempo as pessoas lesadas começaram a perceber que há coisas bem piores, que foi só um carro. E algumas apareceram pela cicloficina, lamentavam não ter vindo de bicicleta e pediam “Ainda têm aqueles autocolantes? Quero levar um.”

Este ano volta a haver Pedalanças. “Estamos à espera de muito mais pessoas!”, afirma Carlos.

Francisco Colaço Pedro
As fotos são cedidas pela Associação PédeXumbo

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