A escola da irresponsabilidade
Uma escola em que não se reflete e não se desenvolvem afetos põe os indivíduos em segundo plano.
Nelson Nares
nelsonares@gmail.com
Este texto surgiu do imperativo de refletir e partilhar ideias sobre a escola que temos. Não há a vaidade de mostrar saber mais do que os outros, apenas não se pode ignorar o que já se sabe. Até porque o que se expõe não é exclusivo e já bastante foi pensado há muito tempo.
Tudo o que se torna tabu é muito mais frequente do que se pensa. Aliás, é a norma, embora, por se querer encobrir tudo, não pareça. Sobre esta escola, podíamos escolher ao acaso um aluno que se tenha tornado professor e obteríamos quase invariavelmente a mesma resposta:
Não tinha gostado da escola e sabia que muitos outros também não. Os professores davam ordens, castigavam por não se «saber» da maneira que eles queriam que se «soubesse» e no caso de alguém discordar era visto como mal-educado e arrogante e era ridicularizado. A dúvida era mal vista. Se o aluno tinha começado a refletir, o professor punha como limite aquilo a que não sabia responder.
Os programas rígidos mutilavam o interesse e a convivência, as relações mantinham-se numa espécie de medo e submissão e uma admiração por aqueles adultos que pareciam saber tudo. Perante pessoas assim e as suas limitações de criança, tinha vergonha de dizer que não se sentia bem e tudo o que ele queria era poder imitá-los. Não conseguia, sentia-se culpado por isso, mas tentava agradar. Querer corresponder a expetativas é cansativo, a única coisa que se consegue é aguentar por algum tempo que a dúvida pareça uma certeza a favor do outro. Frequentemente impunham trabalhos extremamente aborrecidos. Mas tudo aquilo que o aluno não pode acompanhar é inútil. Até que descobriu que podia ser ele a escolher os livros que queria ler. Leu às escondidas. A exclusão forma ignorantes, a não ser que um acaso os obrigue a serem honestos consigo mesmos; aqui o acaso foram os livros. O objetivo da leitura é engrandecer. De todos os livros que leu, nenhum pôde ser aproveitado em nenhuma disciplina; percebeu que havia uma separação enorme entre a vida, a potência de agir, para Espinosa, e a formalidade cega que o fazia esmorecer assim que passava o portão da escola.
Desconfiado, pensou que talvez os adultos tivessem dúvidas que escondiam atrás de todas aquelas certezas; talvez também os mais novos tivessem alguma coisa a partilhar com os mais velhos. Passou a perceber que nem tudo o que o adulto dizia era para ser levado a sério, que se podia ser adulto e, nalguns aspetos, imaturo, que se podia ter muita informação e pouco conhecimento, que se podia ser rígido e pouco rigoroso, mas que se podia também ser humilde, rebelde, corajoso e mesmo assim não ser aceite. O desrespeito nasce da quebra de confiança. Tinha receio. Calou-se.
Mais tarde, já durante o curso em Pedagogia, percebeu que eram raros aqueles que tinham entrado nele por gosto. A verdade é que mesmo os que se sentiam motivados, depois de estagiar, acabavam desiludidos e cansados perante a brutalidade de controlar o comportamento de crianças e jovens e sob a ameaça de uma avaliação. Controlar comportamentos é uma maneira de imbecilizar. Quando finalmente começou a trabalhar concluiu o que já sabia: tudo continuava na mesma, todas as mudanças eram de superfície e já há demasiado tempo.
Mas o que mais o chocou foi perceber que muitos professores se inquietavam de mais com as condições de trabalho, mas na sua perspetiva. Assumiram o fracasso do que vivem criticando. Ainda hoje dizem que desde que um aluno os acompanhe já valeu a pena, quando deveriam dizer que desde que um aluno se sinta deslocado alguma coisa falhou. Foram raros os que encontrou que realmente se preocupavam com a qualidade do produto final: os estudantes. A escola deveria ser para todos e não para alguns. Ficaram algumas palavras que certamente são as de todos os descontentes se se pudessem expressar.
Precisamos de mais ética e de menos moralismo, de dizer o que pensamos pensando também no outro, para se poder melhorar o que é mais justo para todos. Só a falta de ética permite que alguém engane um país inteiro, que se exija o exemplo que não se pode dar, que se julgue saber tudo quando nem sequer se sabe o que o outro sabe, que se pretenda ter razão à força. É importante substituir a teimosia pela perseverança e a revolta pela rebeldia. Os primeiros refilam e reagem pela violência, os segundos refletem. É de esperar que as novas gerações não acreditem em muito no que se acreditou, que questionem mais e percebam que calar o que se sabe é dar poder a quem não quer saber.
Diz-se que os jovens nunca foram tão imaturos, que sabem muito pouco, mas não se tem discutido as razões. Há algumas possíveis.
Escolhas
Qualquer bebé, forçado pelas suas necessidades, já sabe fazer escolhas. Prefere um conhecido em vez de um desconhecido, este objeto em vez daquele, enfim, uma brincadeira em vez de uma outra. Mas quando chegam à escola, as crianças param de praticar a escolha. Das poucas vezes que lhes é permitido, fazem opções todas elas de pouca importância. Se a escola permite optar entre duas disciplinas, não pergunta ao aluno se estaria interessado numa outra; se um escritor visita uma escola, ele tem de saber que quase sempre não é por escolha dos alunos. E mais, tem de saber que o seu livro foi lido de empurrão e que assim sempre podem fugir às aulas. São submetidos a um guião de leitura feito por quem não gosta de ler e que só produz aversão aos livros.
A excessiva teoria roubou-lhes a capacidade da prática, anestesiou-lhes a consciência e o discernimento, e dessensibilizou-os. Memorizam para esquecer, acumulam informações, mas não constroem conhecimento, gostos, interesses, que não se medem com tabelas nem por anos. É importante partilhá-los, não catalogá-los e por mais teorias que surjam, que não se traduzam em números. A informação esquece-se mais facilmente por ser mais concreta; o conhecimento é abstrato mas é mais duradouro. O modo de avaliar resulta de uma medição artificial dessa abstração que é a inteligência. Assim, não veem significado no seu trabalho e surge um vazio depressivo causado pelo cansaço e pelo desânimo. A escolha serve para responsabilizar e para conhecer os limites da cidadania sem autoritarismo; a falta dela cria medo de decidir e prepara seres que compensam o fracasso pessoal com aversão a limites.
No caso da Filosofia, da Literatura e da Ética, disciplinas que deveriam trabalhar a reflexão crítica e o pensamento complexo, tornaram-se também elas tecnicistas, sem relação com a vida. Quando é pedido ao aluno a sua opinião, ele dá a do professor, aquela que vem nos livros. Ora, ninguém que não questione pode ensinar a questionar. Assim sendo, não interessa saber, desde que se saiba repetir. Foram arrastados à passividade, que é hoje o que mais se pratica. Só cada um pode conhecer as suas necessidades, mas não as têm em conta e isto é desalentador para quem pode e quer ver.
Convivência
Há insuficiências de convívio. A escola criou muros a que vem chamando salas de aula. Não é desejável que uma criança passe todo o tempo rodeada de outras só da mesma idade; aprende-se muito mais convivendo com todas do que só com a sua. A juntar a isto, a relação dos alunos com os professores é hipócrita, porque todos começaram a achar que tudo aquilo que é aprender é verificável nos testes de avaliação e por isso menos importante. Uns querem notas altas, não lhes interessa muito saber; os outros fingem que cumpriram o seu trabalho, se alguma coisa correu mal, a culpa não é deles. Pensam a criança a partir do adulto infantilizado, cheios de hábitos e teorias que apequenam a consciência. Nunca alguém saberá o que o outro quer a não ser por aproximações. É uma estratégia de todo o autoritário imaginar que o outro quer o que ele tenha feito querer; o respeito, como tudo o que se constrói durante a vida, é posto de parte, o que revela o vazio nas relações. A única maneira de estarmos juntos é termos os mesmos princípios para diferentes necessidades, é termos a necessidade dos mesmos princípios. O objetivo de receber recompensas e evitar castigos torna-os interesseiros, pouco éticos e não lhes permite refletir e desenvolver afetos. Uma escola em que não se reflete e não se desenvolvem afetos põe os indivíduos em segundo plano. Isto tem repetido padrões de imaturidade cada vez até mais tarde pelo afastamento e por falta de referências, que umas gerações deviam ir buscar às outras; esta é uma das causas de intolerância, de incompreensão do outro e de um sentimento generalizado de falta de esperança. Sem convívio os outros tornam-se estranhos. Compreende-se mal o mundo se não se compreende bem a si próprio.
Ritmo
Um outro problema é o do ritmo: cada aluno tem o seu. Uns precisam de mais tempo, outros de menos. Os que têm de ir mais rápido, sentem-se frustrados porque vão deixando de perceber o que estão a estudar; os que têm de ir mais devagar ficam impacientes, aborrecem-se; todos seguem um ritmo que não é o de ninguém, nem do professor, é o ritmo do programa, que é sempre extenso de modo a não sobrar tempo para refletir. Assim se justifica que um aluno tenha frequentado durante anos aulas de uma língua estrangeira que não fala. Ninguém amadurece o saber à pressa. Conhecer implica tempo, dedicação, experimentação e erro.
Competição
Para os fazer avançar, põem-se os alunos a competirem por notas em vez de colaborarem, de se ajudarem uns aos outros. A competição é uma separação. Vivem competindo porque estão a acumular dados como quem acumula pontos num jogo; se quisessem conhecer saberiam que se aprende muito mais com os outros do que sozinhos. O mal-estar criado na própria escola foi o de ter sido criada para produzir trabalhadores e não pensadores; ela cria marginalização, isolamento, incompreensão, preguiça e manha; é psicologicamente violenta: caiu o castigo físico mas ficou a ameaça verbalizada. A avaliação tornou-se um detetor de erros penalizáveis e um mecanismo de defesa ao lidar com sentimentos de impotência: o mau comportamento leva à expulsão e faz cair a nota final.
Não conheço duas pessoas que sejam exatamente iguais. Esta escola segue o modelo de fábrica. Os professores, tal e qual foram tratados, tratam os alunos como se fossem cópia uns dos outros: todos têm de repetir o mesmo, da mesma maneira e ao mesmo tempo e chegar à mesma conclusão. O pensamento único sempre foi uma ameaça à Integridade e à Liberdade, e sempre causou estragos em Democracia.
Devíamos pensar melhor na reação dos alunos sempre que não há aulas. Seria essencial questionarmos a ideia do sacrifício, que nada tem a ver com empenho, esforço ou dedicação. Continua-se a pensar que têm de fazer o que não querem e à força, como se cada um se desenvolvesse por imposição exterior e o prazer em aprender fosse um desleixe. Tudo aquilo que se pode fazer melhor, com gosto, com ética, deve substituir aquilo que é aborrecido e inútil, antiquado, caduco. Já todos devíamos saber que o tédio está por trás de problemas como o défice de atenção e a hiperatividade.
Não é de estranhar que quando tenham de tomar decisões elementares, como o que desejam estudar ou o trabalho que querem ter, se sintam desorientados.
Seguidismo
Mas também os professores tiveram de ceder. Perderam elevação, conhecimento e vivem problemas sem significado como se fossem assuntos importantes. Um desentendimento, um erro, uma falta de educação entre alunos pode ocupar boa parte de uma reunião sem se chegar a lado nenhum. É o aluno que se deve elevar e não o professor que se deve rebaixar. Todos os dias, os que questionam, vão saindo do sistema quando podem, outros eternizam baixas médicas e consultas de psiquiatria, outros ainda vão para cargos administrativos de todo o tipo (direção de escolas, coordenações, sindicatos, cargos políticos…), vale tudo para escaparem às aulas. Hoje já não há excelência no ensino tradicional. Nele, não há professores excelentes, nenhum deve ser distinguido. Premeia-se o seguidismo. Para ser considerado competente, ele tem de ser submisso e pouco criativo, saber pouco, preferir a repetição ao questionamento, aceitar baixar o nível de consciência, ser autoritário sem ter autoridade, ser capaz de dizer uma coisa e fazer outra. Hoje já lhe é possível ensinar matérias que não domina, corrigir testes a que não sabe responder, tirar mestrados e doutoramentos sem préstimo; até ser-se ministro da Educação sem perceber do assunto. Quando falta o saber, resta à tirania tomar o lugar. Se a escola é prejudicial aos professores, não há razão para ser benéfica aos alunos. Afinal, não são só os alunos que não gostam desta escola, os professores também não.
Responsabilidade para partilhar e orientar o saber
Não basta ignorar as soluções até que tudo se torne mais prejudicial. Foge-se daquilo que em público se defende e não se reflete nas consequências desastrosas que o sistema está a provocar. Não há problemas de aprendizagem, há problemas de «ensinagem», disse-se, e também que os mais velhos já não podem impedir os mais novos de saberem o que de facto sabem. O professor, mais do que controlador, tem agora o papel de orientador do saber. O bom de se aprender é poder partilhar com todas as dúvidas que a curiosidade traz. Devemos formar seres humanos atualizados, conscientes, críticos, éticos, com capacidade de autogestão, universalistas, cuidadores do planeta e com gosto pelo saber, e não máquinas de repetição adoentadas pelo tédio. Continuamos a olhar para as crianças e jovens como se fossem muito pouco e tivessem o valor numérico das avaliações, que têm como base a discriminação.
A hierarquização das relações humanas e o pleno sentido de responsabilidade não se dão bem; é um indício de incapacidade de partilhar, não sabendo muito bem como se organiza o mundo, querer dominar totalmente o outro sob uma formalidade rígida que faz acreditar que a imposição é colaboração, recordando virtudes de que só um moralista se lembra para esconder os próprios erros. O oprimido oprime sempre para baixo, não tem em conta o outro. Infelizmente, em baixo estão sempre os que não podem decidir nada, os que, pela horizontalidade que a Internet impulsiona, começaram a duvidar da palavra «hierarquia». Ser responsável é sobretudo querer sê-lo. Por esta razão, os jovens não assumem responsabilidades que eles não escolheram. Impedir as crianças e os jovens de participarem nas decisões e atividades da sociedade, dizendo-lhes para esperar até se tornarem adultos, afasta-os do interesse pelo bem comum. Ninguém se esforça por aquilo que não ajudou a construir ou que não deseja; até pode ceder, mas faltar-lhe-á vontade. Chegou a altura de valorizar primeiro a vida e não o que lhe serve de apoio. O professor tem de partilhar dúvidas em vez de dar e ter certezas e abandonar a vaidade de quem imagina saber tudo.
É arriscado abandonar os mais novos a terem como pedagogo a Internet; é este um enorme descuido o de deixar alguém com pouca bagagem formar-se sozinho. O sentido de irresponsabilidade é de época. Há um descuido geral pelos mais jovens que, por exemplo, a indústria cinematográfica e de jogos de computador tem aproveitado fazendo mesmo passar para o fantástico o que era do terror; deste modo, fazem crer na normalização da violência disfarçando a falta de conteúdo com filosofismos. Estamos a educar seres humanos que começaram a ver na barbárie diversão quando ainda nem sequer puderam discernir valores. Estão a Absorver uma mistura perigosa: a de se acharem importantes e aceitarem o ódio como um valor moral. É possível educar para tudo. Inverteram-se valores. Hoje, ser objetor de consciência é uma ameaça onde a estupidez aspira a dominar.
As gerações mais velhas têm de partilhar responsabilidades com as mais novas. Esta escola é para velhos, não é democrática. Ela não deve preparar para a vida, tem de ser a vida e servir a comunidade. Sem educação todos somos piores e desde que não esqueçamos os porquês e para quês nunca estancaremos. Mas os professores, que têm por dever estar atualizados, são agora o principal empecilho à mudança no Ensino. Neles, o medo, que os fez esperar na segurança do que já não funciona, é maior do que a vontade, e bem poderiam ser excelentes, não nos papéis, mas no que são e no que fazem. Será a única maneira de educar também excelentes cidadãos.
Cada vez mais professores acham que deviam fazer alguma coisa para mudar o sistema e foram forçados a fazer o mesmo que detestaram que lhes fizessem a eles. Foi para se dedicarem a crianças e jovens que se formaram, mas, deixados levar por um sistema que pouco ou nada tem de educativo, foram-se tornando nas suas autocríticas, reduzidos a meros executantes que se preocupam mais com a burocracia do que com o que importa. Parece interessar mais empregar um adulto que preparar um aluno.
Educadores e pedagogos, que sem serem livres do erro, como Agostinho da Silva, José Pacheco e Rui Canário (Portugal), Nancie Atwel (Estados Unidos), Paulo Freire e Rubem Alves (Brasil) e muitos outros, ajudaram a compreender a escola, livre de fragmentações e cartesianismos, para que se aprenda verdadeiramente, se leve a sério o respeito pela condição de cada um, os valores, a sabedoria e o conhecimento vão a par, porque a educação e a formação não se dissociam. Desejo que seja este um caminho possível para todos, até que se descubra outro ainda melhor. Nada foi feito para sempre.
Imagem: MC
Ilustrações: HUMA