Corpo Ciborgue, Sexo Olímpico
com Pedro Feijó
Jogos Olímpicos, Rio de Janeiro, 2016. Caster Semenya, da África do Sul, ganha a prova dos 800 metros. Ao cumprimentar as suas colegas, a canadiense Melissa Bishop, classificada em 4º lugar, e a inglesa Lynsey Sharp, em 6º lugar, Semenya foi ignorada. A crueldade não parou por aí: a atleta polaca que ficou em 5º lugar, Joanna Jozwik, disse “estou feliz por ser a primeira europeia e a segunda branca”, referindo-se às atletas do Burundi e do Quénia, em 2º e 3º lugar. Enquanto que Sharp e as suas colegas brancas viram a sua indignação largamente difundida por um Reino Unido derrotado (assim como por outros meios mediáticos europeus), a África do Sul celebrou a vitória e lançou a hashtag #handsoffcaster.
Há sete anos que Semenya tem estado sob escrutínio público, depois de vencer pela primeira vez a prova dos 800 metros no Campeonato Mundial. A sua aparência e desempenho desportivo motivaram uma investigação conduzida pela Associação Internacional de Federações de Atletismo (AIFA), que revelou níveis altos de testosterona. Foi tornado público o diagnóstico feito a Semenya de hiperandroginismo – níveis de testosterona superiores ao espectro definido como ‘normal’ para o corpo feminino. Teve por isso, de submeter-se a tratamentos de supressão hormonal para poder continuar a competir.
O caso de Semenya não é isolado. Em 2013, a atleta indiana Dutee Chand foi também diagnosticada com hiperandroginismo, mas recusou os tratamentos, tendo inclusive levado a situação a tribunal, que decidiu a favor da necessidade de comprovar a vantagem que a testosterona extra daria a mulheres atletas. Ainda assim, o nível hormonal é actualmente o indicador adoptado pelo Comité Olímpico Internacional (COI) para excluir atletas. Em Janeiro de 2016, o COI anunciava que este ano atletas fora do binário homem-mulher poderiam competir desde que sujeitos a tratamentos hormonais que comprovassem níveis de testosterona abaixo de 10nmol/L nos 12 meses anteriores.
É urgente desconstruir a ideia de que nos Jogos Olímpicos – ou em qualquer competição desportiva – assistimos a uma celebração do corpo da nação enquanto corpo natural, não modificado, não excepcional. O Michael Phelps tem pulmões anormalmente grandes, a Simone Biles tem um equilíbrio e forças excepcionais, o Usain Bolt é incrivelmente rápido. Todos tiram partido das suas vantagens – ou desvantagens, noutros contextos da vida. A premissa de que na competição (em desporto, mas também em qualquer outra esfera) se começa em pé de igualdade é falsa. As tecnologias disponíveis – roupas, tratamentos, dietas, drogas ‘aprovadas’, assim como os regimes intensivos de treino, fazem da atleta alguém que pratica modificação corporal extrema. O seu corpo e seus níveis hormonais não podem ser concebidos como sendo meramente biológicos, mas também como sociais (ou antes, talvez seja mais que tempo de compreender que o biológico não é contrário ao construído, e que também a biologia foge ao essencialismo). Um homem que tenha um bebé ao seu cuidado tem níveis aumentados de estrogénio. As mulheres ocidentais passam metade da vida a ingerir doses hormonais diárias (pílula), e a outra metade a tomar ‘reguladores hormonais’ combinando estrogénio e testosterona; um regime farmacêutico que precisamente fantasia fazer a preservação daquilo que na verdade cria, o corpo feminino natural. Compreendendo que diferentes regimes sociais e tecnofarmacêuticos operam para dar origem a corpos diferentes – ou para os assemelhar – que esperar de um caso tão extremo como é o de uma atleta de competição?
Ainda assim, não nos esqueçamos, os eventos de competição desportiva assentam na criação de numerosos critérios de normatividade corporal. Critérios absolutamente artificiais, numa tentativa de tornar a competição mais justa (se é que a competição alguma vez pode ser justa). A construção corporal encontra-se com as conhecidas antíteses da competição: por um lado a necessidade da imagem da igualdade de oportunidades inicial, garantindo o mérito e justiça da prova; por outro a necessidade de desigualdade para que qualquer prova possa chegar a termo. Semenya e Chand nasceram com uma característica fisiológica que transformaram numa vantagem competitiva, tal como muitos atletas tiram partido de uma fisionomia vantajosa para nadar, correr, saltar ou atirar pesos. A vantagem hormonal não pode ser separada de outras variações biológicas, que não são reguladas e que mesmo quando são vantajosas, não são consideradas injustas para a competição.
O que é interessante é que enquanto que a excepcionalidade corporal do atleta de competição é celebrada a cada prova, nem todas as modificações ou desvios corporais são admirados da mesma forma: operações plásticas, tratamentos e níveis hormonais, operações de mudança de sexo, bio-hacking, mutilação corporal, piercings e tatuagens, etc. As atletas transgénero, por exemplo, são repudiados pelas mesmas pessoas que aplaudem um conjunto de corpos transformados por regulação hormonal, medicação e regimes físicos de mutação, representando uma selecção nacional – uma selecção que começa logo ao nível genético e que continua ao longo de uma vida de treino intensivo. Dado isto, os Jogos Olímpicos estarão próximos de ser o mais celebrado evento ciborgue do mundo.
Para alguns, a potência de Semenya transformou-a num homem a correr entre mulheres, pondo em causa o direito do corpo feminino a ganhar. Se os atletas são categorizados pela facilidade/dificuldade em performar uma prova, então porque é que a excepcionalidade de Semenya não é celebrada como a de Phelps ou de Biles? Porque falamos de género, de normatividade sexual e de binarismo. Porque mesmo com o critério virado para as medições hormonais, é o cistema sexo-género – e a sua assumpção binária – que confere sentido aos resultados, que os legitima ou não. E enquanto que as linhas difusas do que é ou não é doping deixaram de parecer interessantes, o sexo é discutido de forma efusiva. Só isso explica o safari sexual do jornalista inglês Nico Hines, que foi ao Rio de Janeiro caçar atletas olímpicos LGBT no Tinder para depois escrever um artigo expondo publicamente as suas identidades.
A expressão de Sharp ficará para a história como a imagem de uma atleta injustiçada porque no centro da discussão está o não-binarismo de Semenya e, pelo caminho, de grande parte da comunidade LGBT. Nenhuma onda de solidariedade e indignação nasce em apoio aos atletas que perderam para o Usain Bolt. A sua frustração, que grita “por mais que tente nunca consigo alcançar, por mais que tente nunca consigo alcançar”, é a frustração de qualquer atleta que não chega ao pódio. O que Sharp e parte do mundo não percebe é que essa é também a frase que milhares de pessoas marginalizadas repetem todos os dias, da profundidade da sua inadaptação, deparando-se apenas com ouvidos moucos e olhos que só vêem monstruosidade.
(fotos de Domingos de Alcântara): Intervenção de Lígia Veiga, Companhia Mysterios e Novidades, “Jogos da Exclusão”