Cantinho da Ribeira
No concelho de Beja, depois de Baleizão e Catarina Eufémia, cabe à Trindade e ao Cantinho da Ribeira um lugar ainda hoje vivo no imaginário das resistências contra os senhores da terra. De vidas ceifadas pela ceifa impiedosa dos poderosos e pelas armas das polícias. O imaginário é alentejano, o narrador, por hábito e credo, comunista, mas as histórias formam parte de uma geografia e de um rosto universal onde haja gente que no seu ganha-pão não se contenta com as migalhas.
No Cantinho da Ribeira, um conjunto de Montes onde se encontram as ribeiras de Terges e Cobres a caminho do Guadiana, morreu em 1932 António de Dias Matos depois de um combate fervoroso com a guarda e a tropa, num um-contra-todos digno de filme. Em 2005, este era recordado num registo do Arquivo de História Oral de Beja, pelo maioral de ovelhas residente nesse lugar: “O homem era um bocado de um homem, que devíamos ter cá hoje pelo menos um cento de homens daqueles, calhando as coisas não estavam mal conforme estão, pois. Era daqueles homens que não gostavam de lhes estarem assim fazendo coceguitas detrás da orelha”.
A história foi posta a escrito no retrato social desse Alentejo, que é Seara de Vento, romance de 1958 de Manuel da Fonseca (1911-1993). Tal como com a Planície Heróica de Manuel Ribeiro (1878-1941), que decorre ali ao lado nas terras de Albernoa, não podemos passar sem esta obra se queremos conhecer o Alentejo do século passado. Do mesmo modo, cabe-nos agora o convite ao percurso pedestre Pelos Montes do Cantinho da Ribeira (descarregável no site do município de Beja), para conhecer esta história imortalizada por Manuel da Fonseca.
Em 1932, o caso ficou conhecido para a história como “A tragédia de Beja”. Tal como o personagem Palma de Manuel da Fonseca (que transporta os acontecimentos à década de 50), o homem é António de Dias Matos, do Monte da Pereira, trabalhador rural falsamente acusado pelo senhor da terra de roubo de cereais, vindo-se a dizer depois pelo povo que a responsabilidade do roubo coubera a um dos filhos do agricultor. Mas o que a lei cumpria era o que o posicionado senhor da terra ditava, e não a sabedoria popular. Prendem António Matos e levam igualmente para o posto de Beja a sua mulher. Numa história que o tempo eterniza, esta surge morta na cela da esquadra. Ter-se-ia, na versão oficial, enforcado com o seu próprio lenço. O companheiro e pai de sete filhos é liberto pela ausência de factos, mas entre a falta de trabalho e comida, apenas tem lugar para alimentar a sua revolta. E, carregando-a mais do que ao seu expediente contrabandista, carrega a arma e as munições, direito à Herdade da Moleneta. E três da família do agrário ali ficam logo. Regressa a sua casa e aguarda. A primeira guarda volta atrás repelida, e é em força e com metralhadora da tropa que o cerco se faz. Manuel da Fonseca ainda terá guardado para si uma das muitas balas que ficaram cravadas nas taipas da casa. A luta é feroz e só depois de despachados para o hospital uns tantos guardas e para lá deste mundo o comandante da operação, é que se cravam as balas e as mãos em António de Dias Matos. Aprisionado pede água no caminho, mas apenas recebe a última bala no peito.
A história digna de filme assim o será. Em Março deste ano começaram as primeiras filmagens da adaptação ao cinema de Seara de Vento por Sérgio Tréfaut, que já dera a conhecer a região no documentário “Alentejo, Alentejo” (2014) regressando uma vez mais às raízes familiares paternas e comunistas. O Cantinho da Ribeira é um desses episódios que sem o conhecermos não podemos entender esta vasta paisagem e tão pouco caminhar e saber na seara o que nos diz o vento.
A rota circular soma 18.5 km com uma variante de 1,3 km e duração aproximada de 5h. Tem início na Junta de Freguesia da Trindade e é toda ela integrada na ZPE (Zona de Protecção Especial) de Castro Verde, área de conservação de avifauna estepária como a abetarda ou o peneireiro-das-torres. Junta-se-lhe à paisagem cerealífera e à vinha da Herdade da Mingorra, algum montado de azinho junto da ribeira de Terges, acrescida da beleza aí pela vegetação ribeirinha e pelo terreno, terreno acidentado que se diz os homens, de tempos a tempos, percorrem.