Ocupação: uma carta de S. Paulo

29 de Outubro de 2016
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Manuel Bivar
Miguel Carmo
Fotos de Leandro Moraes (Revista Vaidapé)

 

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A meio do mês do maio, umas quatro horas da manhã, um grupo de secundaristas é expulso do ocupado Colégio Estadual de Cavalcanti e caminha de noite e à chuva, durante horas, em direção à ocupação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). São 36 moças e moços que entram na cidade universitária descendo um barranco, onde são acolhidos com espanto por alguns estudantes. “Não é terrorista, é secunda!”, recorda um deles sorrindo. Ali é-lhes entregue uma sala. “Os secundaristas são nossa inspiração.” Frase que se repete em bocas muito diferentes, desde que no final de 2015 a região de São Paulo assistiu a um movimento de ocupação de escolas secundárias e técnicas que teve no seu ápice mais de 200 escolas ocupadas. Espécie de surto que tem contado em vários momentos com a colaboração dos movimentos de sem teto e o apoio de muita gente. Uma semana depois, num debate organizado pelo movimento negro no interior da Funarte ocupada em São Paulo, equipamento do Ministério da Cultura (MinC), uma mulher negra toma a palavra: “Foi preciso chegar a velha para endoidecer, fui no cerco à casa do Temer, junto dessas 30 mil pessoas, e depois da PM [Polícia Militar] atacar caminhei, caminhei pela cidade até Ipiranga.”

É difícil caminhar na megalópole de 11 milhões onde o vertiginoso crescimento da segunda metade do século XX foi acompanhado de lógicas de planeamento que privilegiaram o automóvel e a segregação. Em São Paulo há poucas praças, as calçadas são estreitas, os viadutos muitos, o verde dos semáforos para pedestres dura segundos e a confrontação diária com a arrogância dos automobilistas que aceleram para matar pedestres e ciclistas pesa. Em 2015, o tempo gasto diariamente pelos paulistanos no trânsito era em média de 2 horas e 38 minutos.

Talvez por isso, quando no 15 de outubro de 2011 (o 15O) um grupo decide montar acampamento debaixo dum viaduto no Vale de Anhangabaú, no centro da cidade, as principais pautas não foram as das praças europeias e estadunidenses. O Brasil de 2011 declarava crescimento e não crise, e o Ocupa Sampa, que reuniu mais de 250 barracas por 2 meses, falou de transportes, espaço público, problemas ambientais e indígenas e declarou luta à desigualdade social, homofobia, violência policial contra negros, machismo, especulação imobiliária e a falta de moradia para a população pobre.

Transportes públicos foram uma das principais causas do movimento e o MPL (Movimento Passe Livre), que dois anos mais tarde protagonizou as maiores manifestações do Brasil contemporâneo, integrou o Ocupa Sampa. O acampamento foi considerado um laboratório de novas práticas sociais e políticas e sobretudo de novas mídias digitais. Os acampados reconheciam que os problemas ali falados eram incomparavelmente mais importantes para Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, do que para Higienópolis, o bairro chique do centro da cidade, mas que a internet, principal ferramenta de comunicação do movimento, não chegava ao “pessoal da periferia”.

leandro_moraes_revista_vaidape_9-jpgTambém a questão do transporte foi o mote para um protesto em Higienópolis, quando em frente ao luxuoso shopping, com o nome do bairro, se juntaram em junho de 2011 umas mil pessoas convocadas por facebook para o Churrascão da Gente Diferenciada. Os ricos moradores de Higienópolis tinham declarado guerra à Prefeitura, que anunciara a construção de uma estação de metrô no centro do bairro, porque traria “gente diferenciada”, “o povão”, e um “bando de camelôs e maconheiros”. A prefeitura acatou e decidiu não construir o metrô. O Churrascão teve certo impacto e foi inspiração de um movimento em Porto Alegre, no mesmo ano, que lutou contra a construção de um parque de estacionamento na principal praça da cidade. Movimento este que se prolongou e contribuiu para o início do levante de 2013.

As incursões de gente diferenciada no shopping Higienópolis continuaram. Em fevereiro de 2012, o Comitê Contra o Genocídio da Juventude Negra juntou 300 pessoas em passeio pelo shopping que gritaram contra o racismo e a política de “higienismo social”. A Nova Luz, um mega projeto imobiliário para a zona central da cidade conhecida como Cracolândia, foi um dos projetos higienistas referidos pelos manifestantes. Ironicamente, como explicava Wilson Honório do coletivo Quilombo, Raça e Classe, Higienópolis funda-se quando a estação de trem da Luz é inaugurada e a burguesia paulistana foge da zona pois “começou a sentir o cheiro de preto e pobre”.

Talvez este protesto tenha sido o precursor dos chamados rolezinhos. Em São Paulo, o primeiro deu-se no shopping Metrô Itaquera, no final de 2013, quando cerca de 6 mil adolescentes convocados pelas redes sociais ali passearam. Segundo pesquisa do jornal Folha de S. Paulo, 82% dos paulistanos se declaravam contra estas reuniões de jovens periféricos e na maioria negros que “apenas queriam ‘causar’ e chamar a atenção” e eram favoráveis à sua repressão e proibição. O movimento foi desconsiderado por muitos como apolítico e talvez tenha sido com espanto que em 2015 a população de São Paulo se confrontou com uma, nunca antes vista, mobilização política de adolescentes. 

Mãe, Pai! Tô na ocupação, é só pra tu saber eu luto pela educação!” Há um funk secundarista que se ouve nas escolas, nas ocupações e sempre que se reune um grupinho deles. Após toda a perseguição sofrida na ocupação do Centro Paula Sousa, os estudantes mandam recado para seus pais em vésperas de uma expulsão violenta no início deste maio, 2016. O Centro, responsável pelas escolas técnicas do Estado de São Paulo, esteve ocupado durante uma semana na sequência do escândalo de desvio de verbas referentes ao fornecimento de refeições na rede de escolas.

A história que antecede é conhecida: em novembro de 2015 são ocupadas mais de 200 escolas em resposta à proposta de reorganização feita em setembro pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). Estava previsto o fecho de 94 escolas, a recolocação de 400 mil alunos e professores, e a separação por diferentes escolas dos vários ciclos de idade, com efeitos diretos sobre famílias com vários irmãos na mesma escola. E.E. Diadema no ABC paulista e E.E. Fernão Dias na capital são as primeiras, entre 9 e 10 de novembro, iniciativa que alastra em menos de 20 dias às duas centenas de escolas. No final do mês, um domingo, o vazamento para a imprensa de uma reunião da Secretaria Estadual mostra que a mobilização está sendo tratada como “questão de guerra”. Na segunda-feira há um acirramento da violência da PM contra os estudantes. A luta cresce. Os estudantes contam em vários momentos com o apoio logístico de pais, do sindicato de professores (APEOESP) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Nos primeiros dias de dezembro o governador anuncia a revogação do plano de reorganização e o Secretário de Educação demite-se. Após o recuo, várias celebrações e manifestações tomam ruas e escolas. No dia 9, um grande protesto unificado percorre o centro, a Paulista e a Consolação. Ruas cortadas com fogo e lixo e contentores. Alguns bancos são atacados e orelhões arrancados. No final do ano grande parte das escolas tinha sido desocupada livremente seguindo as sugestões do Comando das Escolas Ocupadas, que reúne em assembleia as muitas ocupações. Mas o movimento não parou, virou “um ciclo sem fim.”

leandro_moraes_revista_vaidape_10-jpgQuando perguntámos a um grupo de secundaristas como nasceu a ideia de ocupar a resposta é Chile. O documentário A Revolta dos Pinguins e o manual, também chileno, Como ocupar um colégio?, traduzido em outubro passado pelo coletivo Mal-Educado. O movimento secundarista não assume uma liderança dirigista, tem uma cultura de horizontalidade e de autonomia da luta de cada escola, o que traz à memória o MPL que em junho de 2013 obrigou o governo estadual a voltar atrás no desejo de aumentar as tarifas de transporte público. Alguns deles tiveram no levante de 2013, com 14 e 15 anos, a primeira vivência de manifestações, onde começaram a “criar pensamento crítico”, como nos explicam. As decisões do Comando saídas de uma assembleia em novembro de 2015 são explícitas: 1. Não desocuparemos as escolas; 2. Não queremos nenhuma negociação a portas fechadas; 3. Nosso posicionamento será sempre declarado em público; 4. Entidades como UMES, UBES e UNE (Uniões de estudantes municipal, paulista e brasileira) não nos representam! Nossa luta é uma só! No documentário Acabou a Paz, Isto aqui vai virar o Chile! Escolas Ocupadas em SP, de Carlos Pronzato, uma moça diz: “É como na discussão sobre feminismo. Homem está totalmente convidado a participar mas ele jamais poderá interromper uma mulher ou tomar a frente, a mesma coisa com a relação dos movimentos com a gente, eles devem nos apoiar mas nunca tomar a frente.”

Neste março recomeçaram as ocupações secundaristas, desta vez rastilhadas pelo “roubo da merenda”, esquema que envolve diretamente o governador do estado, Alckmin, e o presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP), Capez. A ocupação do Centro Paulo Souza ganha visibilidade e em seguida a da ALESP. Esta, liderada pelas uniões estudantis conseguiu que fosse aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar irregularidades. No portão muitos entregavam sacos com comida e roupa através das grades aos ocupantes sitiados pela PM. Um padre da esquerda católica discursa na ocupação: “vocês estão purificando a Assembleia.” Também a torcida do Corinthians, Gaviões da Fiel, a maior e mais antiga claque organizada do país, toma posição levando faixas contra o roubo da merenda para os estádios desde o início do ano, o que gerou uma onda de revistas compulsivas pela PM a adeptos e na sua sede.

O movimento secundarista rola agora em muitas outras cidades. Neste maio, cresceu no Rio Grande do Sul um movimento de ocupações que se espalha por várias dezenas de escolas. No Rio de Janeiro, a ocupação da Secretaria de Educação foi fortemente reprimida e novamente ocupada. Em Goiás, onde o historial de ocupações autónomas remonta também a novembro de 2015, idem. Um espetro secundarista percorre o movimento social, num encontro que não é livre de tensões, mas que não deixa por isso de ser produtivo: “nós passámos umas dez ocupações e o que sentimos na ocupação da USP foi muito partidarismo, até um certo elitismo, trataram-nos literalmente como crianças, quando para muita gente ali é a sua primeira ocupação. Secunda é muito família, mesmo com as divergências de ideais e políticas tem essa comunhão”. E continuam, com um enfático ‘a gente’ que nos fica a ressoar na cabeça: “a gente se respeita, e a gente entende que tem um alvo e um objetivo maior, a gente consegue deixar as nossas diferenças ideológicas no gelo, não que eu não tenha a minha posição, eu tenho a minha posição, mas o objetivo maior agora não é ficar falando o que você faz ou deixa de fazer, é falar o que a gente vai fazer. A gente consegue ter essa maturidade de passar por cima das diferenças e de construir a combatividade da luta junto.”

Alguns secundaristas vindos da USP começam a chegar à Funarte no centro de São Paulo nos primeiros dias de ocupação. É um movimento que se alastrou pelo país contra a extinção do MinC e contra o novo governo Temer. As primeiras ocupações começam em Curitiba e São Luís no dia 13 de maio e desde aí muitas outras: Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador, Natal. No dia 18, há prédios do Minc ocupados em pelo menos 12 capitais estaduais, no final do mês são já 27 prédios ocupados, não sobrando nenhum estado de fora. A ocupação é por tempo indeterminado, diz a assembleia em São Paulo. “Funarte é pouco”, “Não estamos aqui só pelo MinC”, se vai ouvindo noutras ocupações. Gabriel Medina, militante do PT e do coletivo ARRUA diz-nos que “o fundamental é a ocupação ser um espaço de experimentação e troca de linguagens artísticas para pensar estratégias potentes de diálogo com a cidade, os cidadãos, os trabalhadores, para melhorar a nossa capacidade de resistência”. Entretanto começa a circular nos celulares a nova versão de Carmina Burana, Fora Temer!, tocada por uma enorme orquestra improvisada na Funarte do Rio.

Uma espécie de épico governamental e mediático desenrola-se em paralelo. Após a constituição do governo provisório composto apenas por homens brancos, “machistério” diz-se, cinco mulheres recusam sucessivamente os convites para encabeçar a Secretaria Nacional da Cultura, a última delas a cantora Daniela Mercury, lugar por fim aceite por Marcelo Calero, homem. Com o alastrar das ocupações, com a equipa do filme Aquarius denunciando o golpe em Cannes, o governo recua e anuncia a volta da pasta ministerial. Entre muitas respostas, a da Frente Nacional de Teatro: “As ocupações não estão aqui para negociar pontos do governo golpista, mas sim para enfraquecer, atacar e acuar esse governo. É importante dizer abertamente: nenhuma das nossas reivindicações terá sido atendida enquanto o governo como um todo não cair. A reabilitação de um MinC e outros ministérios, no contexto de exceção que configura o atual golpe, significa apenas um recuo tático da parte dos golpistas, que visam ganhar tempo diante da evidência de que vão cair (…). O momento é de ir para cima deles com ainda mais energia, e em conjunto com todos aqueles que percebam o desmonte que se está fazendo. Não podemos deixá-los respirar! Ofensiva total!”

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As ocupações da Funarte, e uma “cultura” em confronto com o governo, não são uma novidade pós-impeachment. Em São Paulo, a Funarte foi ocupada em Julho de 2011. A ocupação com o lema “é hora de perder a paciência” apresenta-se contra a mercantilização da cultura, a precariedade das condições de trabalho, a redução dos editais públicos e do orçamento para a Cultura. Os trabalhadores do MinC fizeram longas greves nacionais em 2011 e 2014. As políticas culturais do MinC de Gilberto Gil/Juca nos governos Lula já vinham sendo desmontadas nos últimos governos PT. Para Ana Beatriz, do Grupo de Articulação Política Preta (GAPP) da ocupação da Funarte-SP, e Fernando, antigo aluno da Escola Livre de Teatro na periferia de Santo de André, a política de edital, os Pontos de Cultura, os CEUs produziram transformações importantes na periferia brasileira e na população negra. Ana fala dos CEUs (centros culturais nas periferias com cinema, teatro, piscina e biblioteca) criados entre 2001 e 2004 pela prefeitura de São Paulo e dos editais do Minc: “a periferia ia se assistir nos CEUs, lugares de encontro, e algumas pessoas começaram a pensar que podiam viver de propostas artísticas. Isso da população negra ter um trabalho não braçal era impensável até então. (…) Os grupos que se tinham organizado por conta desse movimento já tinham um pensamento artístico quando surgem os editais.” Para Fernando, “esses editais deram um boom em espaços periféricos que já desenvolviam ações e que foram assim empoderados, mas já não saem editais para os Pontos de Cultura há alguns anos”. O MinC Gil/Juca reconheceu através dos Pontos de Cultura que a cultura já estava sendo produzida na periferia e que necessitava apenas de ser apoiada e legitimada. Compreende-se assim a ideia, repetida em muitos momentos, de que já tem “golpe antes do golpe” e a vontade de prolongar a luta muito para além do “volta MinC” ou do “Fora Temer”. Ao contrário do que insistem os editoriais da Folha de S. Paulo, a ocupação da Funarte não se reduz à polarização Fora Temer – Volta Dilma.

Desde os primeiros momentos crescem várias ocupações dentro da ocupação. A do GAPP, a partir de uma evidência inicial: a branquitude maioritária da assembleia e a invisibilidade da periferia. “As pautas relevantes para a maior parte da população não tinham relevo na ocupação, não tínhamos uma voz de decisão dentro dela e, numa lógica de produzir uma ideia de representatividade negra, eramos sempre chamados quando se precisava de uma imagem para os mídia. Aí começámos a chamar amigos e conhecidos de coletivos periféricos, de Pontos de Cultura, de culturas tradicionais para englobar um grupo que está propondo uma ocupação concetual e artística pensando o colonialismo brasileiro dentro de uma ocupação de artistas que era majoritariamente branca.” Numa das assembleias, este grupo decide acompanhar todas as intervenções de negros com um gesto coletivo silencioso disperso pela assembleia: corpos negros levantam-se em uníssono, sempre muito devagar, com o punho esquerdo prolongando-se acima. Este gesto teve outra vantagem: a disputa pelo protagonismo político veiculada aos eixos partidários, sempre esgotante nos espaços assembleários, ficava assim debilitada.

A ocupação secundarista e a ocupação LGBT são outras duas ocupações que ganham força e se cruzam numa multiplicidade de outras presenças.

No documentário Temporada de Caça (1988) várias pessoas são entrevistadas na Paulista, a grande avenida ladeada de arranha-céus, sobre a vaga de assassinatos de travestis e homossexuais durante a Operação Tarântula, lançada em 1987 pela Polícia Civil de São Paulo com o objetivo oficial de “processar os travestis e homossexuais por ultraje ao pudor público e crime de contágio de AIDS”. Tranquilamente, os entrevistados apoiam a matança. Este ano, também na Paulista, a Parada LGBT de São Paulo reuniu dois milhões de pessoas. A mudança é avassaladora mas não consensual e a avenida é recorrentemente chamada de Sodoma. Silas Malafaia, famoso pastor da Assembleia de Deus falava para a “Igreja baixar o porrete em cima desses caras” e Marcos Feliciano, o pastor e deputado (PSC) que propôs a lei de cura gay em 2013, enquanto ocupava o cargo de presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara durante o governo PT, é um feroz crítico da Parada. O pastor Sargento Isidório, deputado estadual, vai mais longe em suas análises e associa a grave seca que atingiu São Paulo em 2014 ao facto de ali se realizar a maior parada gay do mundo.

leandro_moraes_revista_vaidape_4-jpgUma avenida dividida. De um lado, em frente ao enorme edifício espelhado e gradeado da Federação das Indústrias do Estado de S. Paulo (FIESP) exigiu-se a destituição da presidenta Dilma Rousseff, do outro, no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp) gritava-se “golpe”. A 13 de maio, 128 anos depois da abolição da escravatura, um grupo de negras, negros e negrex reuniu-se em frente à FIESP a que chamaram A Casa Grande Moderna. No dia antes Michel Temer tomava posse como presidente interino, recebia em seu gabinete a benção de Silas Malafaia e extinguia o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que incorporou no Ministério da Justiça entregue a Alexandre Moraes, ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo. Moraes é acusado dos crimes de maio de 2006 quando a polícia assassinou pelo menos 493 pessoas em suposta retaliação aos ataques do Primeiro Comando da Capital, organização que controla o tráfico de droga da cidade e de quem o ministro terá sido advogado. O movimento Mães de Maio lembra todos os anos pelas ruas de São Paulo a matança indiscriminada de seus filhos. O ministro é ainda acusado de violência diante de protestos, como o que ocorreu na Paulista no início do ano organizado pelo MPL e que resultou em vários feridos. Sob a sua gestão foram pela primeira vez utilizados blindados israelitas para enfrentar manifestações que agora estarão mais livres para atuar depois de Dilma Rousseff, em seus últimos dias de governo, ter aprovado um novo quadro legal antiterrorismo.

No centro da avenida, a faixa vermelha da ciclovia é metáfora das divisões do país. Em 2015, o deputado estadual Raymond Diwan (PSDB) entrou com queixa na justiça contra as ciclovias promovidas pelo prefeito Hadad (PT), “nem na China, que é um país comunista, a faixa é vermelha”, dizia. Uma famosa semióloga descrevia as ciclovias como a mais descarada propaganda vermelha do PT e apontando o “problema do vermelho para o nosso sistema nervoso central”.

São Paulo, uma cidade onde o carnaval não tem tradição teve este ano o maior carnaval de rua de sempre com cerca de dois milhões de pessoas em 355 blocos. Estes blocos, com reivindicações políticas das mais variadas, ocupam as ruas com festa e purpurina, promovem a libertação dos corpos e novas formas de ver a cidade, o que tem sido importante para uma forte queerização do centro. Têm sido frequentes as represálias a blocos que negam registar-se no carnaval oficial da prefeitura e a comunicar seu percurso à polícia. Outros movimentos, como o do Parque Augusta que enfrentou uma empreiteira ocupando um pedaço de mata atlântica e exigiu a construção de um parque, parecem estar a ganhar força. Peter Pál Pelbart descreveu este movimento como um caminho inverso ao dos bandeirantes, um adentrar da cidade para proteger a floresta.

Projetos como o Florestas de Bolso e Novas Árvores Por Aí querem invadir São Paulo de mata atlântica, quebram calçadas e plantam trepadeiras no minhocão, o enorme viaduto construído durante a ditadura militar e que rasga o centro da cidade. 

No centro dezenas de enormes prédios estão ocupados por movimentos de luta por moradia como o MTST e a Frente de Luta por Moradia, entre outros. 15 mil moradores de rua dormem em diversos acampamentos.

leandro_moraes_revista_vaidape_5-jpgDesde os anos 1980 que os movimentos sociais organizados em torno da moradia vêm ocupando terrenos da periferia. Em meados dos anos 1990 essas ocupações deslocam-se também para os edifícios do centro. Recentemente, na periferia e no centro, uma nova vaga de ocupações está em curso. As notícias sobre ocupações e despejos violentos executados pela PM são notícia frequente. Foi o caso do número 911 da Avenida Prestes Maia, de 22 andares, onde 378 famílias viviam na segunda maior ocupação vertical da América Latina. Ocupado pela primeira vez em 2002, despejado, ocupado novamente em 2010, enfrentou pelo menos 20 tentativas de reintegração de posse.

Em junho de 2014, na véspera da Copa do Mundo, 300 famílias ocupam um terreno em Itaquera, próximo do estádio onde se deu o jogo de abertura. Dias depois já eram 2000 famílias acampadas, na maioria vindas dos bairros próximos, e que declaravam não conseguir mais pagar os altos valores do aluguer da região.

Em São Paulo, entre 2008 e 2014, os preços de compra valorizaram-se em 200% e os do aluguer acompanharam a tendência – aumentos muito superiores aos ganhos salariais e de renda dos mais pobres. A situação agravou-se com a coincidência das obras da Copa do Mundo e Jogos Olímpicos e do aumento da disponibilidade de crédito, particularmente após 2009, quando o Minha Casa Minha Vida (MCMV) lançou 100 biliões de reais no crédito imobiliário em 2 anos. Informações de Raquel Rolnik em seu recente e lúcido livro A Guerra dos Lugares. Segundo a arquiteta e urbanista, não há dúvida que o MCMV, programa federal de estímulo à produção de casas de baixa renda, beneficiou sobretudo o setor imobiliário, em especial as grandes empreiteiras. O programa atribuiu o poder de decisão sobre a localização e desenho do projeto aos agentes privados e uma vez que o teto de preços e dimensões das unidades estavam previamente estabelecidos, o lucro do empreendedor baseou-se na redução do custo de produção. O resultado foi a construção de mega empreendimentos padronizados nas piores localizações das cidades, onde o solo é mais barato, fora da malha urbana, em áreas sem infraestrutura, sem comércio ou equipamentos públicos, precariamente conectadas ao tecido urbano e com condições inadequadas de transporte público.

O número e proporção de população em favelas tem crescido. Em São Paulo, em 1973 eram 70 mil pessoas (1% da população), em 2000, 1.2 milhões (11%), números que se mantinham em 2010. Fala-se recorrentemente em violência nas periferias e favelas, diz Rolnik que “a violência policial que redesenhou as cidades nas últimas décadas permanece como uma das questões urbanas centrais e é estrutural e institucional. Representa uma das formas mais visíveis de dominação étnica e de classe e impõe limites para a extensão da cidadania e da democracia ao conjunto do território”. “Uma em cada quatro pessoas assassinadas em São Paulo é morta pela polícia”, anunciava este ano o jornal Globo.

Uma “guerra dos lugares” está em curso e a ocupação é uma das suas manifestações.

A sina do samba de Adoniran Barbosa tem cada vez menos adeptos. É isso que mostrou e mostra a luta do MPL:

Não posso ficar nem mais um minuto com você

Sinto muito amor, mas não pode ser

Moro em Jaçanã

Se eu perder esse trem

Que sai agora às onze horas

Só amanhã de manhã

leandro_moraes_revista_vaidape_1O custo do transporte público e o direito à mobilidade foram as causas que uniram tanta gente nas manifestações de 2013. Uma luta específica sobre uma questão transversal e um ponto de fraqueza do sistema: é essa a inteligente estratégia do MPL. Junho foi forte, gente da mais diversa se encontrou e produziu protestos imprevisíveis. Eliane Brum assinou um artigo no El PaisBrasil sobre o ato realizado em frente à FIESP a 13 de maio: “as elites que apoiam o impeachment ainda não compreenderam: seus privilégios continuarão a ser contestados. (…) Tanto o PT quanto aqueles que agora estão (ou continuam) no poder ainda não compreenderam a potência de 2013. A polifonia que ocupou as ruas naquele momento, para além de qualquer controle possível, segue nas ruas, apesar das bombas de gás da polícia. É essa a força simbólica dos negros e negras e negrex que se postaram diante da “Casa Grande Moderna”. (…) Quem acha que é o fim da história ainda não entendeu que ela mal começou.”

Talvez 2013 não explique a “potência” do ato em frente à FIESP. Talvez ela seja anterior, mais profunda, e esteja a vir da periferia. De uma periferia que cansou de ser analisada, de ser apalavrada pelo centro: o morro que descerá ao asfalto em defesa da democracia. “Não queremos nem precisamos que ninguém nos represente. Hoje, somos aproximadamente 106 milhões, devemos ser representados por nós mesmos (…). Da mesma forma que não tem sentido um pai de santo representar uma bancada de evangélicos, é pertinente que os pretos e favelados protagonizem sua nova história”, diz o dirigente do partido em formação Frente Favela Brasil. Uma periferia que agora, e essa é uma história bem recente, está conectada entre si. “O que eu vejo é que a periferia está completamente unida – você não tem noção de como está unida. Eu falo aqui [do celular] com todo mundo. Tem grupo no Brasil inteiro, até fora do país: grupo de pai de santo, mãe de santo, advogado, o pessoal do rap, de todas as periferias. Todo mundo trabalhando, filha. Não tem mais volta. (…) Essa juventude que está aí, essa massa gigantesca de 16, 17, vinte anos, nunca mais vai trabalhar de cabeça baixa. Pode trabalhar em silêncio, mas a cabeça nunca mais vai abaixar”, diz Eliane Dias, produtora dos Racionais Mc’s.

Os secundaristas são também esses jovens periféricos que não parecem estar dispostos a ficar em silêncio. Alunos de escola pública, escola de pobre no Brasil, e que decidiram tomar o centro, tomar as instituições. Talvez perguntar, como faz Renan Porto, se não seria possível expandir a experiência dos secundaristas a outras instituições. “Por exemplo, pensar numa reapropriação de um hospital por parte dos seus usuários, amigos e familiares, e debater seus gastos, as políticas voltadas para ele”. Ou como sugere Raquel Rolnik, de ocupar para “liberar” o lugar, desafiando a tentativa das autoridades de excluí-lo, de ocupar para criar “processos coletivos de construção de ‘contraespaços’: movimentos de resistência à redução dos lugares a loci de extração de renda e, simultaneamente, movimentos de experimentação de alternativas e futuros possíveis”.

Talvez seja esse o futuro.

Chegou o tempo de ocupar tudo. De plantar mata atlântica, de despoluir o Tietê, o Pinheiros, o Tamanduateí. De virar negra e negra da terra. Negro e negrex. Enfim, de quebrar as estátuas dos bandeirantes e queimar a Casa Grande.

Maio de 2016 (artigo disponível em www.buala.org)

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