Betão na Ria de Aveiro
Fotografias: Miguel Crespo
O Parque da Ciência e Inovação da Coutada
Há 3 anos atrás noticiávamos no MAPA os protestos populares no lugar da Coutada, Ílhavo, perante a destruição das suas casas e terras em nome do Parque da Ciência e Inovação (PCI). Um projeto liderado pela Universidade de Aveiro, autarquias de Ílhavo, Aveiro e várias empresas (Visabeira, Martifer, Rosas Construtores, Civilria e os bancos CGD e BES). Moradores e agricultores associados desde 2012 no Coletivo de Intervenção na Defesa dos Interesses dos Habitantes da Coutada (CIDHC) contestavam o interesse público da PCI nos seus 35 hectares de terras, denunciando a operação urbanística e especulativa em causa.
Perderam a batalha. E como em outros tantos exemplos dessa parceria público-privada com financiamentos europeus, sobra uma megalomania sem retorno à vista. Fora o rasgo na Ria de Aveiro, fora a condenação de uma vivência rural e humana pela demagogia do “desenvolvimento”. Mas fica também toda uma história a que não falta um sem número de acusações de ilegalidades, cujo elencar João Paulo Pedrosa, da Quercus e do CIDHC, tem dado conta nas redes sociais e nas interpolações feitas aos organismos públicos. E sem hesitar no terreno atravessou-se sozinho frente às máquinas da obra em 2014, valendo-lhe um processo judicial que ainda corre.
O enunciado das irregularidades é preocupante. Mas em nada surpreende face ao habitual quadro de compadrios e desresponsabilização nas obras públicas. Junto do CIDHC e através de João Paulo Pedrosa, quisemos antes saber da situação e do impacto atual que a PCI teve nas gentes e na vida da Coutada. Ouvidos 13 residentes afetados pela PCI, os relatos anónimos por opções próprias, dão conta uma vez mais dos impactes que resultam sempre que a um lugar e às suas gentes é-lhes eleito e imposto o “progresso”.
O emprego da cenoura ou a cenoura dos empregos
Todos os residentes questionados acabam por fazer um simples exercício de contas: no que é que valeu a pena o PCI? Diz-nos um morador que “a resposta tem que ser dividida em duas partes: aspetos globais e aspetos específicos. Se há vantagens globais neste projeto eu respondo: haverá, com certeza. As universidades são quase sempre motores de desenvolvimento das cidades e das regiões. Benefícios específicos para esta região – muito poucos na minha perspetiva. Este tipo de projetos é concebido para movimentar fluxos mais vastos e dirigidos a outros destinatários. Portanto, não traz benefícios diretos à envolvente mais próxima, pelo menos que possam ser medidos objetivamente. Se me perguntam se acho isso correto eu devo responder que não. Tem de haver uma forma de conciliar as duas coisas.“ Isto porque “o projeto do PCI é perfeitamente abstrato – tanto podia ser implementado aqui como no outro lado do mundo. É feito num gabinete por pessoas que, provavelmente, nem conhecem a realidade local. Isto é lamentável e, infelizmente, prática corrente. Não admira que tenha sido rejeitado por diversos habitantes locais (que não foram tidos nem achados), a quem foi imposto. Mas este fator “extraterrestre” do projeto põe também em risco o seu sucesso. As ligações institucionais à universidade são frágeis e muito mais frágeis são aquelas ao tecido empresarial local, sobretudo nos dias que correm. Falta-lhe um elo físico e social. Decididamente, não aprendemos com a História.”
Menos dúvidas demonstram a maior parte das pessoas ouvidas. Responde uma delas: “tenho muita dificuldade em ver algo positivo neste projeto. Não se esqueçam de que ele foi feito há mais de dez anos, no tempo das vacas gordas. Oxalá eu me engane e aquilo não se transforme em mais uma zona industrial abandonada.” Daí que outro morador descreva o PCI como “um esbanjamento inútil de dinheiro”. “Já viu a área disto? É completamente desproporcionado. Vai destruir um local fabuloso, com boas terras de cultivo, uma bonita paisagem, sem necessidade. Podiam construir o PCI noutro lado que o efeito era o mesmo e, se calhar, ficava mais barato. Até agora houve dinheiro da União Europeia para construir o PCI, mas onde está o dinheiro da contrapartida nacional? Pois é, não há. E depois quem o vai manter? Uma obra desta envergadura é uma amante cara. A câmara de Ílhavo está cheia de dívidas e a universidade está falida. Vão pagar os do costume: os contribuintes”. Outra opinião não hesita em prever “mais um elefante branco. Não há dinheiro para manter um projeto como este aqui em Ílhavo. A autarquia tem um buraco financeiro enorme, a universidade de Aveiro tem dinheiro para pagar os salários e pouco mais… Os outros membros da PCI-SA quem são? Empresas de construção civil (o Rosas construtores está em insolvência) e dois bancos nossos conhecidos: CGD e BES. É preciso dizer mais alguma coisa? Isto vai correr mal…”
Analisando o projeto como um investimento um dos residentes considera que este “não é um bom investimento. Em primeiro lugar porque não há de facto nenhum estudo sobre a viabilidade do empreendimento. Para mim, e para qualquer empresa não suicida, isso seria o suficiente para não avançar. Seria demasiado arriscado. Depois, há os benefícios (não quero chamar-lhe lucros). Falou-se muito na criação de emprego na região… Este discurso da criação de postos de trabalho é típico dos políticos em campanha eleitoral. Neste caso, os números variaram dos 20 000, inicialmente, para os 5 000, para depois se quedarem pelos 500, o que diz tudo sobre a sua seriedade”. E prossegue numa “questão muito pertinente: a relação entre o montante do investimento e o seu retorno. E aqui parece-me ter existido um investimento infinitamente maior do que o necessário para o retorno pretendido. É que um projeto deste tipo quase não necessita de infraestruturas! Quem conhece este meio sabe que as pequenas empresas (start-ups) funcionam em qualquer lado e a ligação a centros de investigação, universidades e afins apenas necessita de um “facilitamento” institucional. Dito isto, é possível estabelecer uma rede de investigação e desenvolvimento espalhada pela região ou até pelo planeta. Neste sentido, parece-me que a condição que serviu de base a este empreendimento (contiguidade à universidade de Aveiro) é um perfeito disparate! Do meu ponto de vista, seria até muito mais favorável ao desenvolvimento se essa rede estivesse disseminada pela região. Poderia, inclusivamente, ser um modo de estimular os vários polos industriais da zona do baixo Vouga que, neste momento, são estruturas desarticuladas e em degradação acelerada.”
Outro dos moradores não compreende este projeto “a não ser pela ganância. Quiseram uma área enorme de que nunca irão precisar. O edifício central da universidade é colossal. O que vão meter lá dentro? Computadores? E não me venham dizer que teve de ser construído aqui por precisar de estar junto à universidade. No século XXI ninguém acredita numa justificação dessas. Julgo que isto foi uma manobra hábil para uma empresa privada se apoderar destes terrenos.”
Consensual é o impacto na paisagem. Recorda-se o antes e o depois. “Esta zona é muito característica pelo seu ambiente e paisagem. É muito sossegada, tem campos de cultivo e muita vida animal. Nasci aqui e custa-me ver este ambiente destruído para lhe meterem uns blocos de betão iguais a tantos outros.” Outro morador aponta-nos como “dantes faziam-se aquelas terras lá ao fundo onde estão agora os blocos. Agora o trator só vem aqui por causa daquele bocado de terra, mas qualquer dia esse também vai embora para fazerem mais blocos.”
Chamam-nos à atenção de como o betão numa paisagem protegida pode não ser natural, mas ser algo legal: “Já observaram bem a Coutada do outro lado da ria? Vemos lá aqueles mamarrachos que construíram mesmo em cima da margem…. É horrível! Têm um impacto enorme! Destruíram a paisagem toda! Se fossem blocos de apartamentos era especulação imobiliária, assim não é; se fossem as casas dos que lá moravam eram “clandestinos” e “atentados à paisagem”, como disse em tempos o presidente da câmara de Ílhavo, Ribau Esteves: assim já é progresso. O progresso é betão. Depois fazem-se uns espaços verdes ajardinados para dar um ar “ecológico”. Engraçado, não é? Veja como se fazem as coisas neste país: o PDM de Ílhavo não permitia que se construísse neste local. Então muda-se o PDM e já está! Nós aqui na Coutada participámos na discussão pública desta alteração do PDM. E o que aconteceu? As nossas opiniões foram pura e simplesmente desprezadas.”
Pesadas as coisas parece claro, como numa das opiniões recolhidas que o PCI “não trouxe vantagens nenhumas. Se vai trazer algumas não há de ser para nós, aqui na Coutada. As vantagens são sempre para os mesmos, os políticos, os da universidade, os bancos…” Um exemplo mais preciso, “criaram ali uma linha de autocarro que passa no PCI e liga ao centro de Ílhavo. Podia ser uma coisa boa, mas o autocarro passa uma vez por semana – uma vez por semana! Tem algum jeito? Ainda não vi nenhum a passar…” Outro ainda: “Meteram lá no PCI uns candeeiros todos estilosos e a nossa rua quase não tem iluminação pública. Também não consigo entender porque não melhoraram o piso da rua. Afinal até foram os camiões da obra a passar que o estragaram ainda mais! Estamos fartos de pedir para meterem mais um ou dois contentores do lixo na rua, mas dizem que não mora aqui gente suficiente para isso. E é isto que eu não percebo: se vai haver progresso tem que ser para todos.”
A generalização é simples: “dantes a Coutada era dos que aqui viviam. Tinham terras, cultivavam-nas para si ou vendiam. Agora os terrenos são todos deles, do PCI.”
À margem e divididos
“Muito pouca gente fala nisto: aqui na Coutada estamos a ser segregados. Já tivemos uma amostra disso na forma como fomos tratados por causa deste projeto, de que tomámos conhecimento através de uma carta registada com ameaça de expropriação. Mas também fomos tratados com desdém e tentaram silenciar-nos durante a nossa legítima contestação. Durante as obras, igualmente, nada foi acautelado para nos proteger: os camiões circularam pelas ruas, destruíram o pavimento, derrubaram muros e entraram por dentro de terras privadas. Houve algumas casas que ficaram com um muro à frente. Isto diz bem da atitude que têm para connosco os iluminados que nos querem vender este projeto – somos um entrave ao seu “progresso”. Por isso não tenho dúvidas de que iremos ser segregados e transformados num gueto, condenados a adaptar-nos ou a desaparecer. Lembra-me uma certa aldeia gaulesa no tempo dos romanos. Para mal dos nossos pecados, não temos a poção mágica…”.
Este sentimento é de um travo acentuadamente amargo porque com a PCI tão pouco agora os vizinhos disfrutam de um momento em que se reúnam de bem com todos. Vantagens? Perguntamos uma vez mais. Há quem nos responda: “as vantagens são para os promotores do projeto, claro! É para eles e para os amigos deles que vão os postos de trabalho. Têm dúvidas? Nós ficamos com os sacrifícios… Quem também lucrou com isso foram as pessoas que venderam os terrenos agrícolas que lá tinham. Preferem receber dinheiro do que continuar a cultivar as terras só que se esquecem que gastam o dinheiro e acaba tudo! Se continuassem a cultivá-las talvez não tivessem tanto dinheiro na mão, mas sempre produziam riqueza para eles e para os outros. São egoístas. Uma coisa que o PCI trouxe foi o conflito e a antipatia entre os habitantes. As pessoas que venderam estão no seu direito, mas nós, que não queremos vender nem sair daqui, também estamos no nosso! Agora olham-nos de lado, quase nem nos falam….Parece que cometemos algum crime.”
O processo de implantação do PCI foi tudo menos pacífico. Uma das vozes ativas no protesto afiança “o desgaste psicológico foi enorme. Não há palavras para o descrever. Foi a atitude das forças da ordem, que gostam muito de estar de bem com os políticos em vez de proteger e zelar pelos interesses dos cidadãos, como deviam. A GNR, por exemplo, coloca-se ao serviço de uma empresa privada, como esta PCI-SA, para entregar em mão notificações de expropriação. Quando lhe é feita uma denúncia de que estão a ser realizadas obras ilegais diz que a empresa “se esqueceu” da licença, mas não faz nada! Foram os tribunais, que só nos fazem perder tempo e dinheiro. Fazem vista grossa às ilegalidades (que deram como provadas!) porque vão ser criados muitos postos de trabalho (e isto, pode ser provado?). Uma vergonha! Já nem falo das numerosas cartas que escrevi a instituições governamentais que, ou ficaram sem resposta, ou chutaram para canto… A comunicação social só passa notícias favoráveis ao PCI.” Conclui: “a luta é demasiado desigual. É a “democracia” que temos.”
O sentimento de despossessão não esconde a raiva a um dos afetados: “Tiraram-me da minha casa para fora! Enquanto lá estive não houve dia em que não me pressionassem, que não me ameaçassem, que não me mandassem bocas, que não passassem para dentro do meu terreno! Tive de deixar a casa que tanto me custou a construir e vir viver para uma casa velha onde nem consigo meter o trator. Semearam o ódio aqui na Coutada. As pessoas zangaram-se umas com as outras, dividiram-se por causa de meia dúzia de patacos que lhes ofereceram pelos terrenos!“
O antes e o depois vem sempre ao de cima. Recordando como este ”era um lugar sossegado. Agora o sossego foi-se. Temos uma zona industrial nas traseiras da casa e vista para uns blocos de betão. As pessoas que venderam as terras ao PCI acham que nós somos uns chatos e que só arranjamos problemas. Chamam-nos “os magnatas”. Já nem bons vizinhos temos…”. O mesmo refere outro morador: “o PCI veio dividir as pessoas. Trouxe ódio e intriga e fez vir ao de cima sentimentos mesquinhos das pessoas aqui na Coutada. Houve pessoas que se insultaram e deixaram de se falar, outras que foram marginalizadas. Pessoas humildes que iam ser despojadas dos seus terrenos tiveram o apoio e a solidariedade de muito poucos. O PCI não abriu apenas uma brecha no território, separando casas e quintais. Abriu também uma brecha social. Quanto a mim, é o mais grave.”
O grito de revolta surge silenciado nestas eiras de terra, mas não sem uma perspetiva mais ampla do rumo das coisas. “Estão a destruir o país todo com estas coisas. Isto produz riqueza? Trabalhar com computadores não traz riqueza. O que é que essas pessoas comem? Os computadores? Temos que importar quase tudo porque produzimos cada vez menos. Estas terras que nos querem levar (já levaram grande parte delas) produzem quase uma tonelada de milho por ano, para além de outras culturas (três por ano). Em contrapartida, todas as semanas chegam ao porto de Leixões navios carregados de trigo. Diga-me lá se isto faz algum sentido? Cá por mim, procuro fazer a minha vida normal enquanto não me levarem o quintal. Depois não sei…”
Na Lagoa de Óbidos também arrasaram com tudo. Árvores, vegetação mesmo em cima da praia. Vejam esta reportagem:
https://www.publico.pt/2015/08/07/local/noticia/arvores-e-coberto-vegetal-estao-a-ser-destruidos-para-dar-lugar-a-mais-um-resort-em-obidos-1704262
Muito embora certas coisas nao estejam bem, temos que nos convecer que o progreco nao pode parar por causa de meia duzia de sacos de batatas ou meia duzia de alqueires de milho. Foi mal para alguns sera bom para outros. Sao coisas inerantes ao regime em que vivemos. Manda quem pode e nada se pode fazer.