Estivadores de Sines: entre o medo e a luta
Ilustrações de José Smith Vargas
A “Guerra dos Portos” é uma “Guerra Social”. De um lado, estivadores na defesa da sua condição qualificada contra a condição precária que se pretende ser, mais do que apenas a norma legal, a coisa mais normal deste mundo para um trabalhador. De um outro lado, patrões portuários impondo a precarização através da liberalização do trabalho portuário: salários mínimos e grandes lucros. A luta dos estivadores é, portanto, uma luta social. Por isso, os media diabolizam o estivador e desinformam o quanto baste, de forma a que, em seguida, os patrões anunciem o despedimento coletivo sem qualquer base legal, contando com a costumeira ajuda da polícia e o discurso economicista cada vez mais amedrontado dos governos – seja antes da direita, seja agora da esquerda. Nisto tudo gagueja o sindicalismo engajado no jogo parlamentar, mas será cada vez mais ruidosa a solidariedade a esse outro sindicalismo que já ninguém esquece vindo dos 300 estivadores do Porto de Lisboa. E que se ouvirá no dia 16 de Junho nas ruas de Lisboa.O que se quer impor no Porto de Lisboa é o modelo da subalternidade e dos salários mínimos que já existe no Porto de Sines. No último número do MAPA – edição em papel – fazemos um retrato desse modelo portuário da precariedade a que se resume no fim de contas as razões da guerra dos portos, desta e de outras guerras sociais.
Entrevista a Filipe Gonçalves (SETC/Sines). 20 estivadores estão a remar contra a maré em Sines entre centenas de estivadores imersos num sindicato amarelo (Terminal 21) e longe da força dos estivas do SETC de Lisboa.
Em Portugal falar dos estivadores é sinónimo de combatividade. Mas se no Porto de Lisboa os estivadores já deram contas de quanto vale a solidariedade nas ruas, o que se passa em Sines? Falámos com Filipe Gonçalves, o delegado sindical dos 22 associados que, desde 2014, recusam o silêncio entre os 700 estivadores que trabalham naquele que é o modelo portuário de excelência, feito à custa de salários mínimos e da desqualificação profissional da estiva.
Falar de sindicalismo hoje em dia resulta em falar de impotência. A lamúria está ao nível do descrédito que atinge a classe política e não poderia ser de outro modo. São cara e coroa da mesma moeda que edificou o sindicalismo de Abril num corpo de profissionais reformistas que se eterniza a si mesmo longe do mundo do trabalho. Os estivadores do Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal (SETC) deixaram cair um (e mais do que um) petardo nesse sindicalismo. Desde o auge dos protestos em 2012 o sindicalismo dos estivadores é sinónimo de combatividade, solidariedade e internacionalismo. Não gritam “Um por Todos e Todos por Um” da boca para fora. O grito vem de dentro e esse orgulho de família incomoda as cliques partidárias – e a CGTP – perante uma verdadeira claque de trabalhadores. E claque, aqui, não desmerece o sentido de classe.
O que está em causa desde o início permanece e é a razão das greves convocadas este ano. Como antes, está em jogo “uma ofensiva que tem como objectivo assegurar o poder patronal nos portos, de forma a generalizar a precariedade e a promover a desqualificação numa profissão submetida a condições de trabalho particularmente duras e perigosas” (1). A precarização tem a sua bandeira no modelo portuário de Sines. Aí o ruído dos estivadores não se ouve e a PSA, a multinacional Autoridade Portuária de Singapura, impôs a sua “paz social” com o controle do Sindicato XXI.
Em 2014, Filipe Gonçalves, siniense de 38 anos e filho de estivador, disse basta. Deu um passo em frente, farto de “estar constantemente a ouvir mentiras de um sindicato que é do patrão e que defende meia dúzia”. Nunca mais teve uma vida fácil. Isso não o desmotiva, porém, de lutar nesse outro sindicalismo que foi encontrar no SETC. Não sem antes “ver se era viável ou não, quais as ideias deles, como funcionavam, se tinham algumas ligações à CGTP, UGT… tive esse cuidado pessoalmente. Acabei por perceber que eram um Sindicato apartidário, sem filiação a nenhuma dessas organizações; um sindicato que está ligado ao IDC [International Dockworkers Council], uma organização internacional muito bem estruturada por estivadores que fazem a luta do coração, pois para nós não há fronteiras, não há barreiras, não há muros, nem arames farpados e lutamos todos pela mesma causa.”
Esse não é o espírito que prevalece em Sines, onde o SETC reúne neste momento apenas 22 associados num universo de 700 trabalhadores, dos quais cerca de 300 estão associados ao Sindicato XXI. É preciso entender como se chegou a esta situação.
A história que Filipe Gonçalves nos conta é relatada com indignação. Esta é também a história de Sines, cuja vocação piscatória foi relegada para último plano quando assumida, desde o Estado Novo ao Gabinete da Área de Sines dos anos 70, como a grande aposta da industrialização portuguesa, trazendo nos anos 80 e 90 “um grande desenvolvimento a Sines”. Algo que não se sente hoje à sua volta. Aqui, a grande aposta foi e continua a ser o sector portuário. “Em 2003, a PSA arranca com estivadores que já estavam no Porto de Sines, mas que eram estivadores que faziam carga geral no terminal do carvão. Nesse arranque e com essas pessoas conseguiu-se que os primeiros estivadores que vieram para o Terminal XXI tivessem um salário justo. A partir do momento em que há um conflito, os estivadores do terminal do carvão da Eporsines [empresa de trabalho portuário] separam-se da PSA, a PSA consegue contratar alguns desses estivadores para o grupo deles e, a partir daí, começam as negociações para liberalizar o trabalho portuário. Aliás, quando a PSA mostra interesse em se instalar em Sines com o governo da altura, tenta logo mudar as leis do trabalho de forma a ter mão de obra mais barata; não o conseguiu de uma forma, conseguiu-o de outra: o seu plano B que era criar um sindicato amarelo.” Aceitaram “que se criasse uma empresa fictícia que é a Laborsines, detida pela PSA. Os sócios gerentes da Laborsines, que é a empresa que me paga, são sempre administradores da PSA”. “Meia dúzia deles venderam o nosso futuro e deixaram-nos nesta situação. Foi essa luta em 2003 e 2004 que afastou o sindicato de Lisboa deste sindicato que se formou aqui, pois o sindicato de Lisboa sempre achou um absurdo passar de salários minimamente aceitáveis para salários mínimos nacionais. E este Sindicato diz, a dada altura, que é melhor um ordenado mínimo que um ordenado de 1000, 1200€.”
Mencionámos a Filipe Gonçalves o obituário do advogado – e dirigente benfiquista – José António Martinez, falecido dias antes, e veiculado pela MSC (o armador suíço que opera em Sines elogiando o Terminal XXI pela “sua rápida operacionalidade, alheia a quaisquer constrangimentos”). O elogio fúnebre era o de ter sido a pessoa que “concebeu e negociou o acordo de estiva vigente no Terminal, dotando-o do mais avançado e eficiente contrato de trabalho deste sector no País. (…) modelo contratual [com] que a atual lei do trabalho portuário foi feita.” Tendo sido “determinante na relação com os trabalhadores deste setor do Terminal XXI, dirimindo questões e encontrando sempre soluções adequadas que garantiram a paz social vivida naquele Terminal”(2). A reacção é imediata: “É tudo mentira! Esse homem liberalizou o trabalho portuário, esse homem ameaçou estivadores e fez da estiva em Sines o que ela é hoje: as pessoas vivem no limiar da pobreza. Quando foi criada a Laborsines – empresa fictícia – dois dias antes de começar a trabalhar, esse homem dirigiu-se a nós pessoalmente, os primeiros trabalhadores, e disse-nos: ‘Quem tiver unhas vai tocar guitarra. Vocês neste momento estão com ordenado, incluindo o subsídio de turno, de 740€, mas daqui a 8 meses, quem mostrar que consegue ser estivador passará para um salário base de 950€.’ Atingi esse salário quase 9 anos depois! Esse homem mentia e juntamente com o Sindicato XXI e a empresa, liberalizou totalmente o trabalho portuário. Eu tenho um contrato sem termo de uma empresa de trabalho portuário para cedência de pessoal, coisa que era impossível ter acontecido se essa gente não tivesse criado esta situação.” A liberalização do trabalho portuário reside na “substituição dos actuais trabalhadores portuários por outros trabalhadores a contratar, não só em condições precárias, como também em condições remuneratórias substancialmente inferiores” com o “intuito de aniquilar os actuais profissionais da classe” como consta do pré-aviso de greve de Abril deste ano do SETC.
O modelo portuário que querem vender
E é “precisamente este o modelo que eles querem implementar em Lisboa. É contra este modelo que neste momento os estivadores em Lisboa, Setúbal e na Figueira da Foz lutam”; um modelo defendido por “todos os governos que têm passado, o que para mim não faz sentido. Uma cidade que vive com salários mínimos e no limiar da pobreza, não é uma cidade que se vai desenvolver, muito pelo contrário, vai afundar-se socialmente cada vez mais. Como é que uma cidade se desenvolve quando os milhões e milhões de euros que aquela empresa gera desaparecem de lá, não sei se para o Panamá ou para onde… Eu sei é que a população de Sines em nada beneficia com aquilo. Há emprego, mas com salários de 530€; 10% dos trabalhadores têm bons salários, os restantes ganham o ordenado mínimo.”
A diferença salarial da estiva de Sines a par da desqualificação profissional é a principal luta do Sindicato dos Estivadores. Perguntamos, pois, que sentido faz hoje o título do jornal Público em 2012, no auge das lutas: “Porque são os estivadores de Lisboa ricos e fortes e os de Sines pobres e fracos” (3)? “Faz todo o sentido. Pegando nas declarações do responsável do Sindicato XXI na altura (o mesmo ainda hoje) vemos que ele assume que o sindicato foi criado para defender os interesses do patrão e da empresa. Assim continua hoje tirando um pequeno sector, os operadores de grua, que com esta última direcção, em três meses, definiram o seu futuro. São eles 6 ou 7% dos trabalhadores, ficando todos os outros à parte e não havendo qualquer negociação. Tens um vencimento que é o ordenado mínimo, que são 530€, incluindo sábados, domingos e feriados. Porque é que os estivadores de Lisboa são ricos e os de Sines pobres? Porque estivadores que tinham as mesmas condições dos estivadores de Lisboa e que estavam em Sines entregaram a estiva para preços do salário mínimo nacional.”
Para Filipe Gonçalves “as prioridades aqui são um salário igual a todos os estivadores nacionais. E toda a gente se queixa disso e está contra os salários aqui praticados, mas só no facebook. Ninguém tem coragem para lutar directamente e no terreno”. O que pesa nas suas palavras é, no fundo, a diferença entre Sines e os estivadores em Lisboa, cerca de “300 que funcionam em família”. “Esse espírito de família foi quebrado aqui em Sines. Desde logo porque criaram categorias profissionais dentro da empresa, dividindo para reinar. A dada altura, quem era de Sines não era contratado. Iam buscar pessoal às aldeias mais próximas – e não é que as pessoas das aldeias sejam menos do que nós, atenção. O problema é que essas pessoas dos montes, dos sítios isolados, que trabalham e não falam, que estão habituadas a andar atrás dos animais, que não estudaram muito, não reivindicam, não sabem o que é a cidadania, o que são direitos e o que são deveres. Assim se foi recrutando pessoal, bem como através dos que já lá estavam e indicavam que esta ou aquela era boa pessoa para lá… Tudo isto foram factores que bloquearam. Esta coisa do sindicato, juntamente com a empresa, dividir as pessoas por sectores fez com que houvesse uma divisão. Criaram-se nichos dentro da própria empresa de trabalhadores de elite e trabalhadores reles e isso foi a estratégia mais eficaz que eu vi ali. É o mesmo que o capitalismo. Ainda que não concorde com ele, está melhor do que nunca: o rico cada vez mais rico, o pobre cada vez mais pobre.”
Dividir para reinar. Isolar para reprimir.
Da entrada do SETC em Sines, recorda Filipe Gonçalves, que logo “aquando da primeira reunião houve chefes de turno a ameaçar diretamente o pessoal que mudasse. Mudámos em Julho [2014], e em Setembro os que mudámos de sindicato fomos todos submetidos a testes de urina presenciais, coisa que é ilegal. Chamados todos em frente a médicos, enfermeiros: toma lá um frasco e agora mija para aí. As ameaças, e depois os testes, levaram a que de um universo de mais ou menos 100 homens que queriam dar um passo em frente, no final ficassem só 15 e agora, passados dois anos, somos 22. Temos vindo a conseguir muito lentamente mais alguns associados e também perdemos alguns devido às ameaças e à pressão”.
Razão para em Janeiro deste ano terem-se reunido em Sines os estivadores do SETC e da IDC vindos de toda a Europa numa conferência sobre o trabalho portuário. Semanas depois apresentaram uma queixa à PSA referindo não apenas a intimidação à liberdade de associação, assédio e ameaças de chefias superiores, como a segurança deficiente e os acidentes (a queda e morte em 2013 de um estivador, sem ter sido ainda concluída a causa do acidente, tal como outro acidente em Outubro de 2015) (4). Quanto a Filipe Gonçalves, este foi em 2015 retirado de funções: “estou a trabalhar numa portaria, mas tenho capacidades para fazer mais e isto foi feito de forma a estagnar o meu salário. Eu ali não tenho evolução salarial e sou o exemplo para os outros”.
O que faz a diferença?
Para este delegado sindical “há uma diferença abismal. Nós defendemos os estivadores como um todo, se vais para a estiva tens a tua carreira, mas ao contrário de outros sindicatos que defendem as pessoas sector por sector – dividir para reinar – defendemos o sector portuário como um todo. E depois defendemos outras coisas, nós defendemos as outras profissões e uma vida melhor para o nosso país e então acabamos por sair um pouco para além da estiva. Ontem os nossos colegas do IDC fizeram uma doação de 20 000€ para o combate ao cancro infantil em Espanha. Há toda a componente solidária, toda a preocupação com o bem-estar, com o futuro do ser humano. O ser humano tem o direito a ter uma vida digna e já que trabalha tem direito a um salário, tem de ter direito a estar com a família. E é toda esta filosofia e o facto de não estarmos ligados a nenhum partido político que nos dá mais liberdade para criticar… mais liberdade para sermos quem nós queremos ser ao fim e ao cabo.”
Para a historiadora Raquel Varela, na comunicação apresentada na conferência de Janeiro de Sines: “os estivadores não são excepcionais. Excepcional e suicidário foi o padrão de sindicalismo que se viveu em Portugal nas últimas décadas e que sistematicamente negociou a conservação de direitos para os que estavam e aceitou a precarização dos que vinham.” Os estivadores apenas defendem o mais elementar e básico, pois “um sindicato ou é para ganhar direitos para quem trabalha ou não serve para nada. Este é um exemplo, aliás, de reformismo sindical. Os estivadores não colocaram directamente em causa o poder político, nem estão associados a uma estratégia revolucionária de derrube do Estado. Não questionaram o modo de acumulação capitalista, nem pediram a nacionalização dos portos. Fizeram o mínimo para si e para os seus, e esse mínimo, hoje, paradoxalmente, surge como revolucionário, tão baixo é o padrão de onde partimos ao fim de quatro décadas de pacto social, moldados pela incapacidade de lutas sociais que ganhem direitos laborais mínimos de civilização.” A independência do Sindicato dos Estivadores para Raquel Varela, ligada a este de perto, “manteve-o longe da estratégia de subordinar as lutas ao fortalecimento dos partidos da oposição, à ideia de uma saída eleitoral para as questões laborais. Ao fim de 40 anos de democracia representativa, é por demais óbvio que os direitos laborais nunca foram aí conquistados, mas aí, sim, perdidos. O tema é tabu, mas não podemos deixar de abordá-lo: o sindicalismo em Portugal não é sequer um sindicalismo reformista clássico, muito virado para lutas corporativas e de sector, ele é, maioritariamente, uma correia de transmissão da estratégia eleitoral dos partidos políticos e essa estratégia eleitoral, que oferece a quimera de que é nas eleições de quatro em quatro anos e não nos locais de trabalho que se muda a vida, tem sido uma estratégia suicidária.”(5)
Solidariedade sem fronteiras
O dia seguinte à conferência foi para Filipe Gonçalves um dia normal. No fim de contas “a PSA também tem consciência que a nível mundial somos muitos, tem consciência que ainda que eu seja um pobre rato no meio disto tudo tenho muito apoio. Tenho consciência por isso que se algum dia eu me dessindicalizasse no outro dia a seguir estava na rua. A minha garantia é o sindicato, tanto o nacional como o internacional”. Esse sentido de solidariedade é a marca dos estivadores. Recorda por isso a luta de 2012 e como esse internacionalismo foi fulcral: “Sines é amarelo, aceita os navios desviados, Leixões é amarelo e aceita os navios desviados. Só que o navio que foi carregado pelos fura-greves e sem categoria profissional, chega a Algeciras e os nossos do IDC dizem: ‘este navio pode atracar aqui, mas nós não vamos trabalhar nele’. O navio vai para França. Em França disseram logo: ‘nós não descarregamos esse navio’; e vai para a Dinamarca e novamente: ‘nós não descarregamos esse navio’… Foi assim que os nossos companheiros europeus disseram: esse navio carregado pelos fura-greves aqui não descarrega. E foi aí que começaram as negociações com o sindicato. É essa a força que nós temos.”
Mas nessa marca de solidariedade sem fronteiras, a manifestação de nacionalismo expresso pelos estivadores quando é visto como de direita surge como um incómodo, aliás, manifestado pelo coordenador europeu do IDC, Anthony Tétard, perante uma fugaz intervenção nesse sentido de um estivador de Lisboa na conferência de Janeiro em Sines. O discurso de nacionalismo – seja ele de direita, seja ele patriota de esquerda – resulta claramente numa contradição que se adivinhe não ser consensual no sindicato. “Não é de todo consensual”, diz-nos Filipe Gonçalves, “eu sou um cidadão europeu, um cidadão do mundo. Preocupo-me com a estiva na minha terra, em Lisboa, em Espanha ou na Argentina. Quando um estivador está mal eu estou mal também, e é com esse espírito e essa filosofia que luto e é o que defendo. A pergunta é pertinente, muita gente já a fez e muita gente afirma que existe nacionalismo dentro do nosso sindicato. Obviamente que, como cada um é livre de ser aquilo que quer, eventualmente poderá haver. Acusam-nos de ser os No Name Boys, a Juve Leo, isto e aquilo, mas muito sinceramente não me revejo nisso, nem tenho facilidade em responder acerca disso porque nunca o senti.”
Não faltam ao pequeno grupo de associados de Sines provas de solidariedade. “No mês passado [Março] recebemos um comunicado de toda a costa Este dos Estados Unidos a dizer que estão dispostos a parar os portos deles, dispostos a não carregar nem a mandar nada para Sines por solidariedade para connosco. Temos todos os portos europeus com essa vontade também, mas claro que eu digo que não. E não porquê? É preciso massa crítica, é preciso pessoas, é preciso termos associados suficientes. Não nos serve de nada os outros portos pararem ou tomarem uma ação de luta para nos ajudarem quando os de Sines não têm coragem para se associar e não têm coragem para lutar.”
Coragem e Capitalismo
Para Filipe Gonçalves a situação na estiva de Sines não é desligada das condições sociais mais amplas. “O que falta aqui é coragem das pessoas. É o zé povinho português de uma vez por todas dizer basta. Está-se sempre a dizer ‘cuidadinho, cuidadinho… se tu mudas de sindicato estás lixado, se tu mudas estás lixado’. Estão sempre lá as vozes de consciência que são muitas, desde o pessoal do sindicato amarelo a chefias e diretores, e isso retrai as pessoas, bem como a tal mentalidade: ‘ganhas 600€, vives na casa do pai e vais comprar um carro e ficas com uma prestação de 500€ e 10 anos a pagar 500€ de um carro topo de gama’. Durante esses 10 anos vão estar calados de certeza. Assim se mantém o povo sereno… endivida-te meu filho, que é para estares caladinho e trabalhares a preço baixo.”
Haverá então lugar no sindicalismo para a crítica ao capitalismo? “Poderá existir. Eu não critico o capitalismo por si, eu critico é a exploração e escravatura das pessoas. O capitalismo existe e temos de viver com ele, agora não temos de ser escravos do capitalismo e podemos e devemos combater isso mesmo”. No mesmo sentido responde quando perguntamos que atenção merece o enquadramento geoestratégico de Sines enquanto estrutura portuária com maior crescimento na actualidade; para lá do Plano Estratégico de Transportes e Infraestruturas nacional, enquanto peça essencial da estratégia mundial do tráfego marítimo e das suas grandes corporações, reflectida em acordos como o TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). A preocupação é “muita, ainda que as pessoas não tenham conhecimento do que é o TTIP, o que é absurdo com as coisas que se estão para aí a criar. Porque ao fim e ao cabo, as grandes corporações, as grandes empresas a nível mundial vão estar no topo da cadeia alimentar e essa cadeia alimentar desaparece porque as pequenas por si só desaparecem. Todos os direitos conquistados a nível de trabalho, a nível social, todos esses direitos irão ser-nos retirados por acordos a que nós nem sequer temos acesso, feitos na coisa mais escura e sombria”. Por isso “o sector portuário pode desempenhar um papel fulcral e essencial. Acho que deve ser feita alguma coisa. Tenho feito essa questão a mim próprio, mas também posso e tenho de colocar essa questão em sede própria, em sede internacional em Miami onde vamos ter a nossa assembleia geral da IDC.” Tratando-se de uma questão que lida com toda a forma de organização do trabalho portuário e o facto de este ser nevrálgico na circulação e infraestruturas do mundo económico, a actuação dos estivadores poderá desempenhar um importante papel, pela sua forma e dinâmica solidária, em “levar a outros a essa engrenagem”.
Notas:
(1) Ricardo Noronha (2012) “A internacional dos estivadores”: http://goo.gl/zQ7357
(2) http://goo.gl/0S4hIl
(3) http://goo.gl/K30Fna
(4) https://goo.gl/FZ6Uvg
(5) Comunicações da Conferência “O Mundo do Trabalho Portuário” realizada em 14 de Janeiro de 2016, no blog do SETC https://oestivador.wordpress.com/