Felizmente continua a haver luar (Abril 2016)

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luarO socialismo Made in Bernie

Chove a cântaros. Na barca que atravessa o Lago Champlain, de South Hero Island até à doca de Plattsburg, David, um jovem operário branco de Nova Jérsia, oferece-nos boleia até à estação dos comboios. Nestas paragens o conceito de «transportes públicos» é um conceito socialista. A sua carrinha está a abarrotar com caixas de ferramentas mas arranjamos lugar. David anda na estrada há vários meses, desloca-se de obra em obra, faz pequenos trabalhos de carpintaria que encontra na Net… «Sou um Yankee, gosto de liberdade. Não gosto de trabalhar para um patrão. Atenção, sou Yankee mas não sou um patriota (a flag man). Não me identifico com a bandeira deste país, nem com a de nenhum país!». Entrámos em terreno amigo e a conversa alarga-se ao triste estado do mundo. Chegados à estação, e em jeito de despedida, diz o David : «Não quero que os meus filhos vivam num país como este. E é por isso que vou votar Bernie Sanders. «Vai ser preciso mais do que eleições e Bernie Sanders!», digo eu. «Uma revolução ? E porque não?», responde David.

Plattsburg é uma pequena cidade do norte do Estado de Nova Iorque esmagada pela crise. As antigas indústrias fecharam, o desemprego é elevado e hoje as principais empresas locais são duas grandes prisões. O centro da cidade é um deserto, os cafés estão vazios, as lojas fechadas, ao abandono, há um banco e vários comércios de velharias com objectos pré-históricos espalhados pelos passeios. A destoar no cenário, uma loja-cooperativa de alimentação biológica. Em cima do balcão, em distribuição livre, um jornal tipo MAPA editado localmente pela liberal igreja Quaker com um excelente texto denunciando o complexo carcerário… Do outro lado da rua, mesmo em frente, o Diner polaco está a abarrotar na hora do almoço, os hambúrgueres e as sopas são de boa qualidade e duas jovens empregadas, uma delas black, ostentam badges «Bernie Sanders». A cinquenta metros está a estação de Plattsburg, um lugar curioso congelado no tempo. Anos 1950 ?! Sentado atrás de uma velha mesa com um jarra de flores, o Chefe de Estação, com um ar de intelectual, está concentrado nas palavras cruzadas. Colado na parede, um papel com uma informação escrita à mão : «Aqui não se vendem bilhetes!» Ah, não? Dois passageiros, à espera do «rápido internacional» Montreal-Nova Iorque, dormem nos bancos de madeira. O comboio está sempre atrasado», avisa laconicamente o Chefe. E, uma hora após o horário previsto, aqui está ele que se anuncia com um longo apito como nos velhos western. O Chefe precipita-se lá para fora com um pequeno escadote comprado na loja de velharias ao lado, que coloca em frente da porta da carruagem, permitindo-nos assim o acesso ao comboio. E lá vamos nós, numa viagem magnífica em que o comboio deslisa ao longo das margens do lago Chaplain, depois do lago Georges e, enfim, do rio Hudson. Nesta América é melhor não ter pressa com os comboios «rápidos»! A cem milhas de Nova Iorque, o comboio está parado há mais de meia hora quando nos chega aos ouvidos a mensagem do revisor: «Estamos à espera da autorização para passar sobre uma ponte que deve ser previamente controlada. Pedimos desculpa pelo atraso». Acabamos por passar, uma vez mais a ponte resistiu ao peso do comboio e chegamos a Pen Station com duas horas de atraso. Paul, que nos espera, não se mostra espantado: «A América não é só Google e a guerra dos drones! No que diz respeito a infra-estruturas, isto é um país subdesenvolvido… E vai ser difícil para Bernie modificar o cenário!» Estamos no princípio de Novembro 2015, a campanha das primárias democratas está nos começos mas a figura de Bernie Sanders está já bem presente no país real.

Meses mais tarde, o peso do senador socialista do Vermont continua a crescer com vitórias em vários Estados importantes, e a candidatura da Senhora Clinton mete água. O que era impensável um ano antes. A comunicação social e os «especialistas» agitam-se. Será que a América vai transformar-se num país socialista ?

O «socialismo» de Bernie é do nível de um presidente da câmara socialista da serra da Marofa. O seu modelo é a Suécia e a segurança social francesa. Que a primeira se identifique cada dia mais com um populismo nacionalista anti-refugiados e que a segunda reduza, dia apos dia, o reembolso das prestações médicas e aumente os cortes nos serviços de saúde, são bagatelas que não transtornam o homem. Uma coisa é a ideologia, outra coisa é a realidade. Na verdade, Bernie tem fórmulas felizes que batem certo: «Tudo aquilo que nos fazia medo no comunismo – perder as nossas casas e as nossas economias, sermos obrigados a trabalhar por um salário miserável sem ter poder sobre as nossas vidas – tudo isso se realizou graças ao capitalismo!» O homem fala de «revolução política», conceito pouco claro, retoma as fórmulas conhecidas contra o poder dos bancos, contra o 1% dos ricos que possui e controla a América, avança umas promessas de reforma fiscal e defende uma melhoria das condições de vida dos estudantes endividados até ao osso e dos trabalhadores empobrecidos. «Um futuro em que podemos acreditar» é o slogan unificador. Mas é raro que Sanders ataque o complexo militar-industrial e é sabido que também é meigo com a questão do direito a possuir armas individuais e com o lobby da NRA (National Riffle Association). Janet, uma amiga do Maine que hesita em empenhar-se num dos comités de apoio a Sanders resume à sua maneira: «Bernie Sanders é um sujeito do Império, um proteccionista e um isolacionista». Assim, por exemplo, a crítica da política de ocupação do Estado de Israel é coisa que ele não pratica. E basta ouvir uma das suas entrevistas à grande cadeia conservadora CNN para perceber que o homem, quando fala das guerras e da luta contra o terrorismo, fala como um político «normal». Embora não seja membro do partido democrata, Bernie construiu a sua carreira à sombra da máquina democrática, e, de certa maneira, assemelha-lhe a outros políticos da ala reformista do partido. A sua originalidade está no constante ataque ao sistema capitalista e a referência a uma vaga ideia de socialismo. O que é já algo de enorme na sociedade americana de hoje e que era impensável ontem! Desde 1920, quando o grande socialista Eugene Debs (que se encontrava preso pelas suas posições contra a guerra) obteve um milhão de votos na eleição à Presidência, nunca mais os grandes órgãos da comunicação social falaram de socialismo, de desigualdade social e de justiça social, ou, pior ainda, de redistribuição de riqueza. Hoje as passagens mediáticas de Bernie são seguidas por milhões de pessoas e as suas reuniões atraem centenas de milhares de pessoas na pátria do business as usual.

E é este fenómeno que é importante de perceber. Para já, a tal «revolução política» de que Bernie fala é antes de mais uma mobilização eleitoralista que tocava no início sobretudo a juventude estudantil branca, mas que se tem vindo a alargar progressivamente às mulheres, aos afro-americanos e hispânicos e ao proletariado precário, como David e as empregadas do Diner de Plattsburg. Mais significativo, a campanha de Sanders seduz progressivamente alguns sectores sindicalizados da classe operária nas grandes regiões industriais, onde os sindicatos são justamente o pilar da máquina democrata. Esta mobilização é talvez temporária mas traduz angústias e preocupações profundas que minam a sociedade americana. Os 40 milhões de trabalhadores que ganham salários com os quais não conseguem sair da pobreza, a crescente e tão visível desigualdade social, o estado geral do país à imagem das pontes de comboio enferrujadas, tudo isto explica, em parte, o que se passa. A desilusão com a incapacidade e a paralisia da administração Obama – em particular no eleitorado branco «progressista» – vem juntar-se a este sentimento de decadência. Ora, como por todo o lado, a crise da política e das suas instituições é o resultado da crise do facto político, da crise da representação. Os partidos tradicionais estão em implosão e as linhas de separação são extremas : Bernie Sanders do lado Democrata e Trump do lado Republicano.

sandresO campo de Bernie é o campo dos que querem uma nova orientação económica, baseada no intervencionismo social do Estado, dos que pensam com inteligência crítica o estado da sociedade, que revindicam os valores solidários e a responsabilidade colectiva. Trump, por seu lado, fala também aos que deixaram de acreditar nos políticos e que se agarram a um passado mítico de uma «América grande», expressão que significa uma América na qual eles possam ter um lugar. Que lugar, não está bem definido… Os adeptos de Bernie e os de Trump têm um inimigo comum, os poderosos. Mas a similitude acaba aqui. O público de Trump é um público de classes médias reaccionárias misturadas e de trabalhadores pobres. O que os une é um profundo racismo que foi, desde sempre, o elemento central na formação da classe operária norte americana. Cito um amigo: «Historicamente, o racismo é a chave da passividade e da alienação da classe operária branca. E é o racismo que torna impossível reconhecer que os trabalhadores brancos têm interesses comuns com os trabalhadores afro-americanos e latinos. O privilégio imaginário (de ser branco), o sentimento de superioridade, eis o que tem permitido submeter os trabalhadores brancos, especialmente os que sofrem com o desemprego e o empobrecimento, a demagogos como Trump. Este, que articula e amplifica o ressentimento racista, reforça a ideia de que é a existência de afro-americanos e de imigrantes não brancos que explica o terrível estado de coisas.» Trump é uma espécie de Berlusconi capaz de estabelecer uma relação alienada com sectores da classe operária, e tratá-lo simplesmente de «louco» ou de «fascista», como fazem os grupos esquerdistas, é não perceber os fundamentos materiais desta relação. É um político que sabe utilizar a violência irracional, que faz declarações absurdas e insensatas sabendo que lisonjeia assim o ódio do Outro, os egoísmos, os medos. E que tira o seu sucesso do facto de não ser um homem do aparelho político. Como o é Ted Cruz, um ultra-reaccionário da tendência Tea Party do Partido republicano. A elite conservadora acaba por culpar os sectores do proletariado que apoiam Trump da crise e das divisões no partido. Exprimindo abertamente uma posição de darwinismo social, ela reconhece que estes sectores da classe operária branca constituem uma população excedentária que não interessa ao capitalismo e que está condenada a desaparecer. «Digamos as coisas simplesmente. Os brancos [da classe operaria] estão rapidamente a matar-se a si próprios e a destruir as suas famílias. Ninguém os obriga a trilharem esse caminho. Não é a economia que lhes põe a garrafa na mão. Não são os imigrantes que os obrigam a violentar as suas mulheres ou a tomar drogas.» (David French, National Review, mars 2016, citado por Chris Arnade). Finalmente a culpa é deles, não se souberam adaptar às regras da nova economia liberal.

A campanha de Sanders desenrola-se noutro terreno. Ela a expressão institucional, dos movimentos de democracia directa e de autonomia dos anos precedentes, em particular de Occupy, mas também das lutas reivindicativas contra os salários de miséria na restauração rápida e na grande distribuição e, mais recentemente, do movimento Black Lives Matter, contra os crimes da polícia sobre os afro-americanos. A campanha de Sanders nunca teria existido sem estes movimentos, sem a força que Occupy irradiou na sociedade americana. Esta campanha significa, antes de mais, o regresso da ideia de anti-capitalismo no debate político nos Estados Unidos (veja-se o excelente artigo de Steve Fraser na revista de Nova Iorque, The Brooklyn Rail). Ora acontece que esta mobilização eleitoralista se encontra em contradição com os princípios do movimento que lhe deu origem: a contestação e a crítica do sistema representativo acaba por se transformar na sua revalorização. Assim é o movimento das sociedades. Os slogans : «No nos representan» dos Indignados das praças espanholas e «A repressão é a verdadeira face da democracia», do Occupy, foram substituídos pelos apelos ao voto e à delegação permanente e não controlada do poder. Deste ponto de vista, Bernie Sanders e Podemos exprimem uma regressão momentânea de movimentos que procuravam caminhos novos e aspiravam à construção de formas de autogoverno.

Na fase actual do capitalismo, o espaço do reformismo está reduzido a quase nada. No campo Democrata tudo se decidirá em função do apoio das grandes burocracias sindicais e da eficácia do controlo clientelista da comunidade afro-americana e hispânica. Controlo no qual as Igrejas jogam um papel importante mas não decisivo. Os afro-americanos e os hispânicos constituem uma percentagem hoje determinante da classe trabalhadora. Os maiores sindicatos do país são maioritariamente compostos por trabalhadores negros e hispânicos que são receptivos ao discurso de Sanders. Por seu lado, a Senhora Clinton sabe que a popularidade de Sanders junto da juventude pode sempre vir a ser-lhe útil. Foi o «socialista» que a trouxe de novo até às mesas de voto e a convenceu de que o inimigo principal é o candidato republicano. Voltamos à velha logica manipuladora da velha política.

Occupy trouxe de novo a esperança à sociedade americana, Bernie Sanders nasceu desta esperança mas pode bem deixar uma camada suplementar de desilusão. Na América de todos os possíveis, o nosso carpinteiro itinerante e precário de Nova Jérsei tinha razão: «Uma revolução ? E porque não?» Finalmente a ideia não morreu com o tal fim da história… A partir de agora, o que será importante é a forma em que se transformará a mobilização pro-Sanders, uma vez acabado o espectáculo. Um outro americano fora do comum, o Henry D. Thoreau, dizia : «Tal como se forma um monte de neve quando há uma acalmia do vento, podemos dizer que, quando há uma acalmia da verdade, nasce uma instituição.» (A vida sem princípios, trad. Luís Leitão, Antígona editores). Para já, a acalmia fez renascer o espectáculo do eleitoralismo. Mas o vento da verdade soprará de novo na história americana. Sem avisar, sem prevenir.

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