Aivados
Caminhar é sempre um exercício da memória. Há uns meses atrás acompanhei um grupo de habitantes, familiares e amigos da aldeia comunitária dos Aivados em Castro Verde, numa caminhada da aldeia ao Cerro Ruivo, aí descerrando uma placa evocando os 40 anos da reocupação da Herdade dos Aivados realizada no dia 20 de Abril de 1975. Aivados é conhecida precisamente por um secular regime de compropriedade por todos os seus moradores de cerca de 400 hectares, usufruindo anualmente das benesses obtidas nessas terras. Propriedade comunal usurpada no Estado Novo por dois latifundiários vizinhos, nunca se apagou nesses tempos a sua memória, expressa em gestos quotidianos de resistência, como a transmissão oral dos limites originais da terra comum, e pelos quais recordamos caminhado “os terrenos que são de todos e não são de ninguém em especial” 1.
Pela terra batida após a planura do vasto pasto que serve ainda hoje o rebanho colectivo da aldeia, toma-se em vista os esventrados solos empoeirados da Pedreira, concessionada pelo “povo dos Aivados”, e na volta do percurso atravessa-se a aldeia da Estação de Ourique, onde o único comboio que ainda aí passa surge carregado do minério das minas de Neves Corvo, o cereal dos nossos dias por estes lados. O transporte de pessoas – e não de mercadorias – pela linha de Beja a Funcheira foi encerrado em 2011. Já antes havíamos deixado as alturas do Cerro Ruivo onde o montado ainda se avizinha, para aí ter deixado inscrita a placa evocativa da reocupação comunitária de 1975, à sombra e a um canto dos novos depósitos de água inaugurados pelas Águas Públicas do Alentejo em plena ameaça da privatização desse bem comunitário. Tal objectivo lapidar era segundo o Museu da Ruralidade “o primeiro passo num programa museográfico (…) marcando alguns dos episódios e espaços “simbólicos” da aldeia-comunitária que ajudem a construir a memória do sítio” 2. No início de 2015 abrira precisamente o “Núcleo dos Aivados – Aldeia Comunitária”, um dos polos do Museu da Ruralidade de Entradas (Castro Verde) e que contou com a colaboração da antropóloga Inês Fonseca, investigadora essencial nessa memória 3.
O ponto de partida para este percurso pedestre implica deliberadamente abordar as gentes da aldeia, ainda que possamos sugerir atentar ao mapa patente nesse núcleo museológico, aí apresentado como “um mapa a construir ao longo de tempo e no qual toda a comunidade pode colaborar na sua construção discursiva” 4. A memória tem sempre inerente um determinado modo de uso, pelo que finda esta caminhada, assola-se na paisagem natural e humana percorrida um sentimento contraditório que suspeitamos não despontar apenas no caminhante passageiro, mas no povo de Aivados. O seu comunitarismo é peça musealizada, e a sua celebração é hoje mais académica que quotidiana, a sua imagem é mais a marca de uma promoção autárquica e menos de uma construção colectiva viva, pese o acertado discurso museológico.
Na verdade o museu cumpre a sua missão e recorda esse comunitarismo em terras de latifúndio, na justa medida de transmitir a alegria da comunidade sobre a posse da terra, acompanhando a euforia dos outros caminhos que se poderiam ter aberto há 40 anos atrás. Já na comunidade de Aivados, não avessa a essa memorabilia, a vivência comunitária parece estar perante o dilema, não meramente da renovação geracional, mas sobretudo em como sobreviver como uma aldeia comunitária para lá da espécie de comunidade de facebook que se gerou. Inquietações é certo partilhadas quando falamos de todas as comunidades cujo largo da aldeia desapareceu sob o ensurdecedor silêncio da modernidade individualista. Mas inquietações aqui realçadas sobre algo, ainda assim, único que continua a resistir: a possibilidade real de uma posse e usufruto colectivo do território envolvente de uma aldeia.
Porque a comunidade é um exercício em comum de memória e de caminhada.
Como Obter Uma noticia da aldeia de AIVADOS..
gostava de receber informações