“La casa è di chi l’abita!”
Turim, situada na região de Piemonte, é uma das principais cidades de Itália. Cidade histórica, que já foi capital do reino de Itália, hoje em dia é mais conhecida pela sua grande área industrial graças em grande parte à fábrica da FIAT. Em meados do século XX o grande desenvolvimento industrial da cidade provoca um fluxo migratório vindo do sul. Os bairros populares cresceram pela cidade e com eles, mais tarde, as grandes lutas operárias dos anos 60 e 70. Barriera di Milano e Aurora, por exemplo, são palcos do grande movimento revolucionário que confronta o poder económico em toda a Itália. As acções radicalizadas desde a resistência nas fábricas à ocupação de casas ou à criação de coletivos autónomos deixam hoje uma rica tradição de luta que se perpetua nas ruas e nos centros sociais históricos da cidade.
Os tempos da “Turim Industrial” já não são o que eram. As grandes fábricas perderam o seu poder com a crise ou “fugiram” para países periféricos. A classe operária já não tem o peso social de outrora. Hoje, Aurora, Barriera di Milano e Porta Palazzo são habitados na sua maioria por grupos de imigrantes, muitos vindos do Norte de África, que usaram Itália como porta de entrada na busca do “sonho europeu”. O norte industrial parecia ser um destino apetecível na busca de trabalho e melhores condições de vida, mas foram recebidos pelo racismo, as leis contra a imigração e a precariedade.
A deterioração das condições de vida, associada ao desemprego e à precarização do trabalho faz com que muitas pessoas deixem de poder pagar as suas rendas. Os proprietários das casas reagem. A cidade assiste a um aumento exponencial do número de sfratti (desalojos). Com números que passam dos 1595 desalojos em 2007 a 3500 em 2013, a cidade ganha fama de “capital dos sfratti” de Itália. Estes dados referem-se aos processos de desalojo apresentados em tribunal, dos quais mais de 90% se devem a atrasos no pagamento da renda.
O processo de desalojo em Itália segue os trâmites comuns: os proprietários deixam de receber a renda e denunciam o caso ao tribunal, que decide aprovar ou não o despejo. Caso o processo seja favorável ao proprietário o arrendatário recebe uma carta do tribunal que o notifica do processo em curso e decreta uma data para o despejo. É-lhe comunicado também que pode-se candidatar a um alojamento social, mas o processo demora sempre bastante tempo e nem sempre é certo. Na data marcada para o despejo um oficial judiciário desloca-se ao imóvel, normalmente acompanhado de um ferreiro e das forças de ordem. A fechadura é trocada e os habitantes e seus pertences deixados na rua, entregues à sua sorte.
Os centros socias ocupados (C.S.O.), situados nestes outrora bairros operários, há muito refletem e discutem o problema da habitação. O direito à casa é uma das lutas que persiste desde os tempos das lutas operárias. O crescimento do fenómeno só veio justificar ainda mais a necessidade de uma organização conjunta para resistir e defender os habitantes dos bairros da cidade marginalizados pelo Estado.
Mas esta ideia não surge simplesmente como uma vontade política de grupos activos. O enraizamento dos C.S.O. no quotidiano dos bairros criou ao longo dos tempos uma relação de proximidade e afinidade com os ditos “marginais” e possibilitou a criação de momentos de discussão e de redes humanas consciencializadas. É por isso que com naturalidade surgem em 3 dos C.S.O. de Turim grupos de defesa para e com pessoas vítimas de processos de desalojo (sfrattati) e começam os movimentos anti-sfratti.
Da assembleia para as ruas, das Ruas para a Casa
O centro social anarquista Asilo Ocupato existe há quase 20 anos no bairro de Aurora, situado numa das margens do rio Pó, entre os bairros de Porta Palazzo e Barriera di Milano.
Em 2011, como forma de resistir a mais um despejo, um grupo do Asilo junta-se a uma família habitante naquele bairro em processo de desalojo e decide formar um piquete, protegido por uma barricada, impedindo as forças de ordem de se aproximarem e evitar que o desfecho fosse o mesmo de sempre. O desalojo é evitado graças à acção e remarcado para outra data. O sucesso da acção motiva a criação de uma assembleia conjunta entre esses membros do Asilo, outros companheiros e sfrattati para discutir e difundir estas formas de resistência.
A assemblea anti-sfratti começa então a reunir-se de duas em duas semanas. Decidem procurar mais pessoas interessadas em resistir e repetir o processo do primeiro despejo. Sabendo o dia exacto o grupo encontra-se de madrugada e já no local levanta barricadas na porta do apartamento e nas ruas de acesso ao prédio. O piquete ficava junto das barricadas, garantindo assim que a fechadura não fosse trocada, os pertences dos moradores retirados e que os agentes judiciários oficializassem a saída dos habitantes da casa. O oficial judiciário ao chegar ao local, e apercebendo-se da impossibilidade de proceder ao desalojo, entrega ao arrendatário um documento a atribuir um novo prazo para abandonar a casa (renvio). Os moradores conseguem assim mais tempo para organizarem as suas vidas, com um teto para dormir e sem pagar a renda. Após a assinatura do documento oficial, as barricadas eram retiradas e muitas vezes o grupo optava por pequenos cortejos pelo bairro sob gritos de “Basta sfratti!” e “La casa è di chi l’abbita!”. Proporcionada por estas situações a rede de afinidades alargou-se por aquela zona de Turim, e muitas outros sfrattandi juntaram-se ao movimento. Dois anos após o seu começo, a assembleia contava normalmente com cerca de 60 pessoas, na sua maioria famílias de sfrattandi.
A polícia de intervenção e DIGOS (divisão da polícia para assuntos políticos) vigiavam sempre os piquetes, embora não interviessem no local. Os oficiais judiciários decretavam sempre períodos relativamente longos até nova ordem de despejo. A lei estava a ser usada “contra” os tribunais. A estratégia de repressão era outra, que só seria sentida mais tarde.
O grupo continuou assim as suas acções ao longo dos últimos 3 anos. A cada mês novas famílias vítimas de sfratto se juntavam ao grupo. Solidários turinenses ajudavam nos piquetes, e também pessoas de outras cidades de Itália e até de França vinham para ajudar.
Nunca foi ideia da “Assemblea Anti-Sfratti” perpetuar os piquetes eternamente. A ideia de viver indefinidamente com a casa barricada e dependendo sempre de um auxílio de outros não agradava de todo aos seus membros. Foi sempre discutido durante as assembleias de que forma os moradores poderiam encontrar uma situação mais estável para viver. Além disso, o grupo não pretendia funcionar como uma rede de assistência a arrendatários. Todos os elementos da assembleia participavam horizontalmente nas decisões, e todos auxiliavam outros nos dias dos piquetes. Apesar disso, a vontade dos sfrattandi em questão prevalecia. Quando encontrassem uma solução, a casa era abandonada. Alguns conseguiram trabalho ou encontraram rendas suportáveis e decidiram alugar apartamentos. Outras optaram mesmo por procurar casas devolutas nessa zona da cidade e ocupá-las em conjunto com outras pessoas com vontade de o fazer.
A primeira ocupação conjunta aconteceu logo em Dezembro de 2011, na Via Lanino no bairro de Porta Palazzo. Um prédio tinha sido desalojado durante a noite, deixando na rua cerca de 20 pessoas originárias de Marrocos. Uma semana depois, esse grupo em conjunto com outras pessoas ocupa outro prédio no mesmo bairro. Daqui até meados de 2013, surgem dessa assembleia mais quatro novas ocupações espalhados pelos três bairros.
A relação entre os grupos dos centros sociais e habitantes dos bairros cresceu e assustou o poder judicial e económico turinês. Prova disso foi a mudança de táctica por parte das autoridades na forma como organizavam as ordens de despejo. Já no ano de 2012, o tribunal começa a concentrar os prazos legais sempre na terceira terça-feira de cada mês, pensando assim dificultar a capacidade de organização do movimento. Essa primeira tentativa saiu gorada, pois o grupo arranjou forma de se reorganizar contando assim com a solidariedade de companheiros vindos de todo o norte de Itália, que se deslocavam à cidade para ajudar no que fosse preciso. Mais tarde, os oficiais judiciários deixaram de comparecer no local, evitando assim que nova data fosse estipulada oficialmente. Mais uma vez, a questão é contornada. O piquete desloca-se até ao tribunal, reclama que “a lei seja cumprida” e ameaça só dali sair quando um oficial entregasse o renvio. Para evitar mais problemas, um oficial desce e assina o documento. A prova de que os tribunais de Turim estavam às ordens dos interesses económicos não foi mais que um mote para o grupo ganhar força e se concentrar em se proteger e defender das forças de poder. Quando esta dinâmica de assembleia-piquete-ocupação está já segmentada e promete durar, o poder da Comune di Torino cai com estrondo sobre o movimento.
O Contra-golpe
“O efeito de tais múltiplas concertadas acções opositivas é, substancialmente, o de privar de autoridade e de força executiva as decisões judiciais […], anulando as condições essenciais à manutenção do Estado de Direito e constitucional”. Estas pesadas palavras constam do relatório emitido pelo GIP (Juiz de Inquérito Preliminar) no processo levado a cabo pelo tribunal de Turim, que envolve 102 pessoas e culmina com a constituição de 27 arguidos. Nelas se percebe a urgência que o Estado e o poder económico têm em acabar de vez com o movimento.
No dia 3 de Junho de 2014 os Carabinieri efectuam a detenção de elementos relacionados com L’Asilo Occupato. Sob acusações, entre outras, de sequestro e coacção 12 dos detidos são mantidos em prisão preventiva, 4 em prisão domiciliária, 4 obblighi di dimora, 4 divieto di dimora e 4 obblighi di firma (medidas cautelares do código italiano). Segundo Tribunal, estes elementos têm a agravante de ser reincidentes nos supostos crimes cometidos.
As acções de solidariedade por toda a Itália e até França não se fizeram esperar nos dias seguintes às detenções. Em Turim, dia 5, uma casa é ocupada por membros da assembleia, embora só se tenha mantido durante uma semana. Era óbvio que a forma de agir tinha mudado e que exemplos como este não seriam tratados levianamente. Contudo, o movimento não parou, e continua a organizar os piquetes quando hà a certeza de uma data.
Esta foi apenas o culminar de uma forma de repressão legalizada por parte do Tribunal de Turim. Já antes o decreto-lei referente aos incidentes de execução de um desalojo tinha sido utilizado para contornar o processo: o oficial judiciário considerava-se impossibilitado de proceder ao despejo, devolvendo assim a decisão ao juiz. Este por sua vez não necessitava de comunicar uma nova data ao arrendatário. A aplicação desta “subjectividade” da lei sobre o desalojo era arbitrária. É tornado público na imprensa local que eram tidas reuniões entre juízes e Comune para decidir que casos voltariam para o tribunal. Na mesma semana das detenções, é proposto em assembleia nacional uma lei que não permite a quem esteja envolvido numa ocupação concorrer aos alojamentos populares concedidos pelo Estado.
Três anos depois de lutas e experiências colectivas, o movimento Anti-Sffrati vive sob o assombro de um mega-processo de consequências ainda incertas. É certo que hoje as redes de consciência foram ampliadas e solidificadas no quotidiano dos bairros de Turim. Agilizaram e abriram possibilidades de mudança da normatividade na cidade. Começaram nos jantares, festas e convívios nos centros socias, alastraram-se para as ruas dos bairros, e agora dificilmente se perderão.
J.S.