O Inverno que mudou o Brasil: uma análise anticapitalista das jornadas de junho de 2013

13 de Março de 2014
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copa1_interiorQuando Luiz Inácio da Silva, o Lula, assumiu a presidência do Brasil em 2002, sendo o primeiro ex-operário a fazê-lo, em muitas mentes cresceu a esperança de reformas estruturais que pudessem diminuir de fato a desigualdade no país. Doze anos depois, o Brasil parece ter se tornado finalmente a potência capitalista emergente que prometia ser desde sempre: a todo lado se divulgam que o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), com dois mandatos de Lula e um de Dilma Rousseff, a primeira presidenta de nossa história, tirou 30 milhões de pessoas da pobreza, estabilizou a economia e tornou o país capaz de pleitear e vencer a disputa para receber dois megaeventos mundiais: a Copa da Fifa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

No meio dessa aparente maré de tranquilidade, em 2013, a um ano da Copa e alguns dias da Copa das Confederações, evento que a Fifa organiza para testar a estrutura do país anfitrião da Copa, passaram a pipocar pela mídia imagens de protestos multitudinários no Brasil. Por todo lado, pessoas se perguntavam: mas o Brasil não estava melhor? O que aconteceu? A resposta não é tão simples quanto parece – ou, de uma forma mais ampla, é: aconteceu, como desde 1500, o capitalismo. Com uma nova fantasia, mas ainda ele.

Voltemos um pouco no tempo. Em 2000, ainda sob um governo abertamente neoliberal que sinalizava assinar a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), o Brasil viu diversos movimentos sociais se manifestarem nas ruas contra o acordo, contra os encontros do G8, contra as manipulações do capital. Eram os “filhos de Seattle”. O movimento anti-globalização chegava ao país. Foi com esse clima que Lula, um ex-torneiro mecânico e líder sindical que concorria à presidência desde 1989, quando seu partido ainda era efetivamente de esquerda, finalmente conseguiu subir a rampa do planalto. E seu partido, aliançado com outros partidos anteriormente tidos como inimigos políticos, passou a colocar em prática o mais simples dos planos social-democrata possíveis: auxílios para os pobres, favores e privilégios para os ricos – principalmente banqueiros e empresas da construção civil que, no Brasil, são as principais financiadoras das campanhas eleitorais de todos os partidos. Líderes de movimentos sociais foram convenientemente alocados dentro das esferas institucionais de poder; milhões de miseráveis ascenderam à categoria de pobres, passando a consumir mais (algo extremamente conveniente para aquecer a economia) e outros milhões de pobres passaram a frequentar os espaços da classe média. Ao mesmo tempo, os bancos lucravam mais do que nunca e novos bilionários, como Eike Batista, do ramo petroleiro, surgiam no país. Reformas estruturais, como a reforma agrária, a urbana, ou a desconcentração do poder da mídia no país (que ainda repousa no colo de apenas 11 famílias)? Viraram jogo de cena e de gabinete. E veio a “conquista” da Copa e das Olimpíadas.

Mas não estava tudo calmo, não. Em Salvador, uma das cidades mais violentas e desiguais do país, já em 2003 milhares de estudantes e ativistas se levantaram contra o aumento da tarifa de ônibus, no que ficou conhecido como “Revolta do Buzú”. Em 2005, foi a vez de Florianópolis, uma das capitais com a pior mobilidade urbana do país, passar pela mesma coisa. Ambas as revoltas saíram vitoriosas, e no mesmo ano de 2005 surgiu o Movimento Passe Livre (MPL) que rapidamente criou células em diversas cidades do país. Enquanto o país “crescia” com os sindicatos e lideranças dos movimentos maiores devidamente engravatadas nos gabinetes, o MPL se somava a dezenas de outros movimentos sociais urbanos – notadamente aqueles por moradia, que ocupavam prédios abandonados nos grandes centros urbanos, e por diversos outros direitos sociais básicos. A cada novo aumento da tarifa, organizavam-se manifestações, devidamente reprimidas com o excesso e a violência de sempre da Polícia Militar, que ainda se estrutura e age da mesma forma em que se estruturava e agia na ditadura.

copa3_interiorPorém, não eram só as manifestações por conta dos aumentos que movimentavam o MPL. Voltou-se a estudar o sistema de transporte das grandes cidades, desenvolveram-se planos alternativos, passaram-se a frequentar bairros pobres e inacessíveis e escolas públicas para fazer formação política. E assim como a cada ano os movimentos por moradia se tornavam mais impacientes e descrentes com a política institucional, também os moradores de bairros pobres e longínquos cansavam de se apertar em ônibus e metrôs caros e superlotados.

Em 2013, a cidade de São Paulo passou por uma mudança: depois de mais de 10 anos, o PT assumia o governo municipal. Esperava-se que o diálogo com os movimentos sociais, muitos dos quais ainda eleitores do partido, finalmente pudesse ser outro que não o da bala de borracha e do cassetete. E o ano começou com uma novidade: a tarifa do transporte não subiu em janeiro, como de costume. Mas o anúncio de que subiria de toda forma no meio do ano fez com que o MPL se organizasse para preparar a luta pelo que viria, luta que a essa altura já acontecia em outras cidades do país.

No começo de junho de 2013, os governos municipal, do PT, e estadual, do Partido da Social Democracia Brasileira, partido historicamente de direita, anunciaram o aumento conjunto da tarifa de ônibus, metrô e trem de R$3,00 para R$3,20. Era a senha para as manifestações de rua, que começaram com três mil pessoas mas, em uma semana, já somavam mais de dez mil. A mídia, cansada de ver “vândalos” e “rebeldes sem causa” entupir as ruas do centro da cidade de gente (e não de carros como sempre), se uniu e fez um apelo à polícia: chega de baderna. A polícia entendeu e atendeu o apelo: no dia 13 de junho, a manifestação mal havia saído da concentração quando foi bloqueada e recebida a bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Foram horas de duelos pelas ruas ao redor da avenida Paulista, principal cartão postal da cidade. E o resultado: mais de 200 detidos, mais de 100 feridos, entre eles mais de 20 jornalistas – um deles perdeu a visão de um olho e outra, da Folha de São Paulo, o maior jornal do país, passou perto de ter o mesmo destino. Acabou virando a imagem da violência policial pelo país, aquela que é cotidiana nos bairros de periferia mas que, pela primeira vez, bateu à porta da classe média em seu espaço de lazer.

No dia seguinte, então, o discurso da mídia mudou. Vendo que estava perdendo a classe média e que era possível utilizar as manifestações para atacar o governo federal, que, apesar de estar longe de ser efetivamente de esquerda, não agrada os filhos da aristocracia que mandam na grande mídia, todos os canais de televisão e jornais passaram a noticiar as manifestações como demonstrações de insatisfação da juventude brasileira, que estaria em luta contra “a corrupção” e pelo futuro do país. As pautas reais eram omitidas. E o resultado foi, em 17 de junho, uma multidão de mais de meio milhão de pessoas pelas ruas de São Paulo com todo tipo de cartazes e reivindicações, correspondida por todas as grandes capitais do país: no Rio de Janeiro, também mais de meio milhão e a ocupação da Assembleia Legislativa; em Brasília, mais de 80 mil e a ocupação do Congresso. Cenas nunca antes vistas no país, que assustaram governos, a mesma mídia que ajudou a alavancar o processo e, principalmente, a Fifa, preocupada pela Copa das Confederações a menos de uma semana de começar.

Em São Paulo, a tarifa caiu dois dias depois, e na última manifestação, de celebração da vitória popular, a pauta era outra: tarifa ZERO, transporte de fato público para todos. Essa manifestação assistiu a um ataque aos militantes de esquerda por grupos de direita, de skinheads nazistas a juventudes de partidos de direita, o que gerou posteriormente uma tentativa de mobilização maior da esquerda em busca de uma articulação conjunta. Mas São Paulo não teria Copa das Confederações, então as coisas se acalmaram no centro da cidade, com as lutas por melhor transporte se deslocando, junto com o MPL, para as periferias, e a pauta da desmilitarização da polícia surgindo com mais força.

Nas capitais onde haveria Copa das Confederações, os protestos continuaram, agora contra as violações de direitos humanos por conta da Copa e contra os gastos públicos para organizar megaeventos ao mesmo tempo em que o país carece de infraestrutura básica – hospitais, escolas, transporte. Foram batalhas ferrenhas com a polícia e a Força Nacional de Segurança, mais novo brinquedo do governo federal, e a final do torneio teve mais gente protestando fora do Maracanã do que assistindo ao jogo dentro dele. De lá para cá, professores se organizaram em manifestações multitudinárias no Rio, trabalhadores rodoviários em Porto Alegre, e os Comitês Populares da Copa, articulações de movimentos sociais nas cidades-sede do Mundial existentes desde 2010, passaram a ver seu corpo crescer – cada vez mais pessoas se engajavam na luta contra as violações trazidas pelo megaevento.

copa2_interiorDas ruas, surgiu em junho o grito “Não vai ter Copa”. E começamos 2014 com diversos grupos pelo país chamando já em janeiro manifestações com esse mote. Alguns grupos participantes dessas manifestações, preocupados com a possibilidade de apropriação por parte da direita, conseguiram transformar o lema da campanha em “Se não tiver direitos, não vai ter Copa”, e alguma articulação desse novo grupo com os Comitês Populares – que desde 2011 trabalham em torno dos lemas “Copa pra quem?” e, a partir de 2014, “Não vai ter direitos” – vêm sendo feitas. A expectativa é de que os movimentos sociais nos grandes centros urbanos se unam para, em conjunto, organizar enormes mobilizações contra a Copa, com pautas concretas: revogação da Lei Geral da Copa; fim da isenção fiscal à Fifa e aos patrocinadores; permissão para trabalho dos trabalhadores ambulantes; fim dos despejos por obras da Copa e reparação aos despejados; campanhas efetivas de combate ao turismo sexual; revogação das leis de repressão em trâmite no congresso, entre outras.

Mas, do ponto de vista anticapitalista, há um outro processo a se destacar: o surgimento dos black blocs brasileiros. Diferentemente dos vistos na Europa ou nos Estados Unidos, no Brasil os adeptos da tática não são em sua maioria anarquistas visando atacar grandes símbolos do capital e a polícia. São jovens de periferia, pobres, cansados de ser excluídos de tudo na cidade. Há, sim, gente de diferentes origens sociais dentro dos grupos de mascarados que protegem os manifestantes da violência policial e atacam bancos e outras vitrines de grandes marcas, mas há, acima de tudo, uma aura de ódio às classes governantes, ódio à política representativa e à mediação da polícia frente a todas as reivindicações sociais. No Rio, durante as manifestações dos professores, estes passaram de descrentes nos black blocs a percebedores de que ali estavam seus alunos, o que gerou a criação dos “black profs”. São os black blocs o alvo atual da mídia, que chega a classificá-los como “grupo terrorista”, e o bode expiatório para a aprovação de leis de repressão (como a lei anti-terrorismo) que vão instaurar um estado de exceção que, em termos jurídicos, não deve nada à ditadura militar.

Há, no Brasil, um dito popular que diz que futebol, política e religião não se discutem. Ele resume bem a despolitização da população levada a cabo com sucesso pelo Estado. Mas, desde junho de 2013, isso parece ter mudado: de um modo bem brasileiro, sincrético, misturando influências, símbolos e experiências de diversos lugares, política se discute sim. Mais que isso: assim como em diversos cantos do planeta em que a população se levantou, ecoa pelo país um ar de questionamento à legitimidade da política institucional, uma ânsia por participação e por organização que fez com que, em pouco mais de 6 meses, surgissem pelo país diversos novos coletivos, que pautam desde a democratização da mídia até a repressão policial, orientados por práticas de organização horizontais, somando-se às lutas de décadas dos movimentos sociais urbanos – que, por sua vez, mais e mais se descolam dos acordos de gabinete e voltam às ruas para reivindicar. Espaços públicos são ocupados e neles se organizam aulas públicas e assembleias, um apontamento de que os anseios por outra forma de fazer política são cada vez maiores. E o Estado e a mídia ainda não sabem direito como lidar com essas novas forças.

Mas não nos enganemos: o que está por vir, por parte do Estado, é um aumento enorme da repressão. Já veio, aliás: em janeiro, há mais de um relato de militantes sequestrados por carros policiais durante manifestações, espancados e ameaçados, para depois serem soltos em lugares distantes da cidade. Houve um manifestante baleado duas vezes com arma de fogo em São Paulo, que permaneceu em coma por dias. E houve a morte de um cinegrafista no Rio, atingido por um rojão disparado acidentalmente por um manifestante depois que a polícia avançou violentamente contra a manifestação – causando, inclusive, a corrida em desespero de um senhor de 66 anos que acabou atropelado e morto por um ônibus.

“Não vai ter Copa”, pode ser lido pelas paredes das cidades brasileiras e escutado nas manifestações. A frase é forte, mas ela expressa uma ideia: não vai ter Copa sem luta. Então, convidamos todos e todas ao redor do mundo a se somar aos brasileiros e brasileiras nessa jornada, seja organizando manifestações de apoio em suas cidades, seja vindo ao Brasil em junho de 2014 para uma outra Copa – aquela dos de baixo, dos que lutam, dos que querem mais do que uma nova reforma do capital.

 

por Kadj Oman (amargo@gmail.com)

 

 

 

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