O País às Escuras
Contar a história da EDP é contar, em parte, a história deste país. Uma história de “desenvolvimento” em que o “progresso” se impôs ao território, à natureza, como às gentes e à sua vida. Como daí resultam os exorbitantes salários de gente rica como um Mexia, ou de como estes os ganham à conta de se apagarem as luzes dos habitantes do Bairro do Lagarteiro, no Porto, precisamente no mesmo dia em que foi anunciado um lucro de 792 milhões de euros.
A história do Grupo EDP remonta à construção das primeiras barragens em Portugal para produção de energia eléctrica e, por conseguinte, à destruição de terras de cultivo, rios e paisagens naturais únicas, culminando com a submersão de aldeias históricas, apagando os costumes, as tradições e o modo de vida de quem vivia nesses lugares. O aproveitamento e armazenamento de água para produção de energia em larga escala esteve associado desde o início às políticas de “desenvolvimento” do Estado português, ignorando os problemas sociais e ambientais das populações directamente afectadas. Os habitantes desses lugares foram sempre vistos como um encargo ou como mão-de-obra barata, utilizada nessas mesmas construções. Apresentado como inquestionável, o “progresso” continuamente apregoado pelo Estado Novo e pelos sucessivos governos da Democracia, revelou-se um mito para quem teve de ser deslocado, realojado, ou em muitos casos emigrar. Um desses exemplos foi a construção da barragem de Vilarinho da Furna nos anos 70, em que a pequena aldeia de Terras de Bouro, localizada na serra da Peneda-Gerês, foi totalmente submersa pela barragem, apagando a riqueza etnográfica e as suas tradições comunitárias únicas. Outro exemplo mais recente foi a construção da barragem de Alqueva, no Alentejo, onde a antiga aldeia da Luz foi também desmantelada e submersa.
A construção de grandes aproveitamentos hidroeléctricos foi iniciada a partir de parcerias entre o Estado e as maiores empresas eléctricas do país, através da participação em capitais mistos e da exploração de recursos naturais, à revelia da vontade e da opinião das populações. No início da década de 70, o Estado português patrocina a fusão de todas as companhias do sector da electricidade, criando a CPE (Companhia Portuguesa de Electricidade), passando a ter um controlo directo sobre os maiores centros de produção e distribuição 1. A CPE é nesta altura detentora de quase toda a rede de transporte em Alta Tensão e representa mais de 90% de toda a energia produzida no país. Em Junho de 1976 é constituída a empresa pública EDP (Electricidade de Portugal), resultando da nacionalização das maiores empresas produtoras e distribuidoras de energia eléctrica, ao mesmo tempo que se determinava que todo o sector, incluindo pequenos concessionários, federações de Municípios, serviços Municipalizados, entre outros, fossem gradualmente integrados na EDP. A monopolização do sector energético revelou desde sempre as suas contradições. Se por um lado só assim foi possível levar a electricidade a outras paragens, nomeadamente a zonas rurais longínquas, através da harmonização das tarifas, por outro, verificou-se que as zonas mais afectadas pelas barragens não obtiveram qualquer recompensa ou benefício pelos prejuízos causados, aumentando inclusive, em alguns casos, o valor das tarifas até então praticadas. Não obstante, a distribuição alargada de energia eléctrica no país, foi desde o seu início motivada em primeira linha pelo desenvolvimento da indústria.
Em 1991, pelas mãos do então primeiro-ministro Cavaco Silva, a EDP é transformada em sociedade anónima, nascendo em 1994 o Grupo EDP. Poucos anos depois inicia-se a primeira fase de O Estado na Electrificação Portuguesa, tese de doutoramente de João Figueira, Univerisade de Coimbra, 2012 privatização da empresa, passando a ser privado 30% do seu capital. Neste processo a empresa reduz milhares de trabalhadores pela via da reforma antecipada e da rescisão de contrato por “mútuo acordo”, encerram-se delegações, transferem-se e concentram-se trabalhadores. Inicia-se simultaneamente a subcontratação alargada, fazendo descer exponencialmente os salários dos trabalhadores subcontratados e generalizando-se a precariedade nas condições de trabalho e segurança. Foram já denunciados casos graves de irregularidades e anomalias em obras de construção e manutenção 2, aumentando a frequências dos acidentes no trabalho. Desde essa altura, até ao presente, contam-se já as dezenas de operários mortos em obras da EDP, tal como aconteceu em 2012 no início das obras da Barragem de Foz Tua.
As restantes fases de privatização da empresa aconteceram até 2012, ano em que o Estado português vende a sua posição de 21,35% à empresa estatal chinesa Three Gorges, a qual foi responsável pelo desalojo de mais de um milhão de pessoas, sem direito a qualquer indemnização ou realojamento, na construção da barrragem das “Três Gargantas” sobre o rio Yangtzé. 3, na China.
Durante estes anos foram diversos os episódios, quase pornográficos, de influências e compadrio entre a EDP, partidos políticos, governo e banca, ilustrando as figuras e os agentes que continuam a corromper o país. José Sócrates, antigo primeiro-ministro, na sua diligência para fomentar o “Capitalismo Verde” em Portugal, oferece rendas exorbitantes à EDP para conversão de energia éolica em energia eléctrica, ao mesmo tempo que subsidia empresas privadas para instalação de parques eólicos. O insidioso argumento da energia “limpa” e renovável” tem poluído montanhas e vales de Norte a Sul, aumentado o preço da energia e os lucros dos investidores. Eduardo Catroga, antigo ministro das finanças, é nomeado para presidente do Conselho de Supervisão da EDP, tendo participado enquanto ministro nas negociações com a Troika, as quais determinaram a fase final de privatização da empresa. António Mexia, actual presidente do Conselho de Administração da EDP, foi vogal do Conselho de Administração do Banco Espírito Santo entre 1992 e 1995, seguindo-se os cargos de Vice-Presidente do Conselho de Administração e Presidente da Comissão Executiva da Galp Energia, funções que acumulou com a Presidência do Conselho de Administração da Gás de Portugal, da Transgás e da Transgás Atlântico. Foi nomeado em 2004, por Pedro Santana Lopes, a Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações. Recebeu em 2012 um total de 3,1 milhões de Euros, o equivalente a 6391 salários mínimos nacionais 4.
No mesmo dia em que vários meios de comunicação anunciaram 5 o lucro de 792 milhões de euros, obtido de Janeiro a Setembro, pela EDP, dezenas de pessoas, no bairro do Lagarteiro no Porto, ficam sem electricidade. Técnicos da empresa, acompanhados de enorme aparato policial, dirigiram-se ao bairro para cortar o fornecimento de energia, alegadamente por ligações indevidas e falta de pagamento. Tanto a polícia, como os funcionários, como os responsáveis locais da EDP, ignoraram por completo o facto de em muitas dessas casas viverem crianças, idosos, pessoas com deficiências e doentes. É óbvio que para a EDP, a vida das pessoas pouco conta, na corrida constante para multiplicar os lucros dos seus accionistas e para expandir o seu monopólio, criado como já foi demonstrado, pela constante intervenção do Estado na gestão do território, dos recursos e da vida das pessoas. Quando se verifica que a história do Grupo EDP é um contínuo amontoado de expropriações, roubos aos consumidores, aos trabalhadores, ao património; quando as decisões políticas e financeiras mostram todos os dias a indissociável promiscuidade do poder e a permanente humilhação de quem é governado, qual o sentido da legalidade para quem não tem outra alternativa senão perecer ou viver na escuridão?
Vilarinho da Furna foi uma aldeia da freguesia de S. João do Campo, situada no extremo nordeste do concelho de Terras de Bouro, na serra da Peneda-Gerês. A aldeia foi destruida com a construção da barragem que viria a ter o seu nome, e as suas ruínas encontram-se desde então submersas nas águas represadas do rio Homem. Miguel Torga visitou a aldeia nas vésperas desta ser inundada, descrevendo-a assim no seu diário:
«Gerês, 6 de Agosto de 1968 — Derradeira visita à aldeia de Vilarinho da Furna, em vésperas de ser alagada, como tantas da região. Primeiro, o Estado, através dos Serviços Florestais, espoliou estes povos pastoris do espaço montanhês de que necessitavam para manter os rebanhos, de onde tiravam o mel- hor da alimentação — o leite, o queijo e a carne — e alicerçavam a economia — a lã, as crias e as peles; depois, o super-Estado, o capitalismo, transformou-lhes as várzeas de cultivo em albufeiras — ponto final das suas possibilidades de vida. E assim, progressivamente, foram riscados do mapa alguns dos últimos núcleos comunitários do país. Conhecê- los, era rememorar todo um caminho penoso de esforço gregário do bicho antropóide, desde que ergueu as mãos do chão e chegou a pessoa, os instintos agressivos transformados paulatinamente em boas maneiras de trato e colaboração. Talvez que o testemunho de uma urbanidade tão dignamente conseguida, com a correspondente cultura que ela implica, não interesse a uma época que prefere convívios de arregimentação embrutecida e produtiva, e dispõe de meios rápidos e eficientes para os conseguir, desde a lavagem do cérebro aos campos de concentração. Mas eu ainda sou pela ordem voluntária no ócio e no trabalho, por uma disciplina cívica consentida e prestante, a que os heréticos chamam democracia de rosto humano. De maneira que gostava de ir de vez em quando até Vilarinho presenciar a harmonia social em pleno funcionamento, sem polícias fardados ou à paisana. Dava-me contentamento ver a lei moral a pulsar quente e consciente nos corações, e a entreajuda espontânea a produzir os seus frutos. Regressava de lá com um pouco mais de esperança nos outros e em mim.»
Miguel Torga, Diário XI