“Morreu Vilarinho das Furnas, sob o manto de água que lhe deu a vida”
Em Janeiro de 1969 António Campos desloca-se a Vilarinho das Furnas para filmar os últimos dias desta aldeia comunitária. Após sugestão do cineasta Paulo Rocha, que lhe indicou a história desta povoação perdida entre a Serra Amarela e a Serra do Gerês banhada pelo Rio Homem, e influenciado pela obra do antropólogo Jorge Dias, António Campos, a expensas próprias, muda-se para Vilarinho onde, durante cerca de um ano filma episódios da vida da aldeia. A desconfiança dos serranos, mais tarde totalmente rompida quando confrontada com o filme, leva-o a um caminho feito de pequenas conquistas, movido pela urgência de registar uma memória que iria em breve ser submersa por decisão do regime de então. As tradições comunitárias da povoação, em muito resultado da necessidade de ultrapassar as adversidades da dura vida da serra, são registadas pelo realizador através do testemunho dum dos seus habitantes, tornado-o seu cúmplice, quando este nos narra o funcionamento da vida comum. Ao mesmo tempo que o escutamos surgem as imagens do realizador que nos dão a ver a vida da serra ocupada pelas suas gentes.
António Campos, colocado à margem do regime, consegue escapar à férrea censura confrontando (num invisível elogio) a força da vida serrana, regida por princípios de autonomia e comunitarismo, com a voracidade do progresso. A determinada altura do filme, num leve tom de ironia, representa a figura do governador, representante do poder central e dos interesses do estado, com o qual os aldeões tentam negociar o valor da indemnização das terras perdidas. Anuncia-se assim um fim pelo medo, por uma força que minga perante a cega autoridade de decisão dum governo central.
A aldeia que nos é trazida car- rega o anúncio duma vida per- dida, através do olhar e da curiosidade de António Campos, da sua relação com as gentes, com a paisagem e o cinema. Eterniza-se um vale em tempos ocupado por searas, com casas construídas pela perícia dos seus habitantes e pelas pedras da serra. As imagens tornam-se tão livres como a liberdade que Campos pretende resgatar do local que muito em breve viria a ser afogado, juntamente com a sua memória. O filme estreia-se em 1971, numa altura em que o regime se encontrava já meio moribundo, um ano antes duma albufeira tomar lugar sobre as casas e os campos. Vilarinho não se afogou por acaso.
José Carvalho