Virar a luta ao contrário
Quando partidos políticos se apropriam, de forma directa, de experiências que se desenvolvem fora da sua esfera de controlo é sinal de que a política profissional vai renovando as suas ferramentas. É o que acontece na cidade invicta, onde a campanha “virar o porto ao contrário”, do Bloco de Esquerda, tem usado a história colectiva de várias lutas e processos de resistência nos últimos anos como alimento da sua corrida para o poder.
Ao longo dos 12 anos de mandato de Rui Rio, que agora termina, o Porto foi ponto de convergência de um conjunto de lutas insurgentes que, através da experiência do quotidiano, pretenderam colocar em causa a imposição de decisões externas sobre o rumo das vidas de quem habita a cidade. Devido ao diferente cariz de cada uma e aos corpos distintos que ganharam: da defesa de espaços públicos como um teatro, um mercado ou um jardim, da avalanche empresarial e mercantilista da autarquia, a várias convocatórias de rua ou à ocupação do Es.col.a da Fontinha (2011/2012), não é possível encontrar uma homogeneidade que as una. Dos seus sucessos e logros retirou-se a experimentação colectiva de formas de resistência, de desobediência perante o aparelho decisório, representativo e repressivo: os seus louros a ninguém pertencem.
Os resultados surtidos por estes acontecimentos, para lá de exporem claramente o funcionamento do estado democrático perante quem coloca em causa as suas decisões, encontram-se no abrir de novas possibilidades fora desse leque que nos é, à partida, oferecido, saltando para fora do jogo eleitoral na construção do espaço que habitamos. Quebram-se barreiras nas relações entre os indivíduos e a sua comunidade, procurando laços de criação comum onde a mediação de quaisquer estruturas, que não as criadas por quem nelas participa, não tem validade: a busca de decisões encontra-se nesse seu meio, na discussão de vontades e desejos, e jamais dentro de qualquer instituição.
Porto 2013
Da esquerda à direita, disputa-se o poder duma autarquia que se caracterizou por uma especial boçalidade e bestialidade nos últimos 12 anos, entre demolições de habitação social com a vista à construção de condomínios luxuosos, despejos forçados, privatizações e venda do espaço público e uma orgulhosa e arrogante distância perante as gentes que vivem a cidade. O lado “social”, numa tentativa de demarcação do reinado que agora termina, encontra-se bastante presente em todas as campanhas. Numa operação de maquilhagem, discute-se o poder entre compadrios, numa cidade cada vez mais afastada da sua própria vivência, na vertigem da construção da cidade-hotel, feita a partir de uma qualquer pobreza exótica que crescentemente se transforma em ex-libris turístico a reboque do progresso. Este é o Porto que se herda agora, cuja lógica há-de prosseguir pelas mãos de novos actores que, após as eleições do final de Setembro, entrarão em cena.
E nesta corrida surge “E se virássemos o Porto ao contrário?”, denominação dada à campanha do Bloco de Esquerda para as autárquicas do Porto. Pela perspectiva das suas propostas, e pela sua forma, destaca-se dos restantes concorrentes. No caso do Bloco, o “social” compõe o seu corpo propagandístico, e o que surge como estrutura de campanha são as experiências de protesto que surgiram no Porto nos últimos anos 1. Num repente, o discurso que foi sendo criado ao longo das várias etapas de protesto da cidade e que foi sendo escrito à medida que os passos eram dados, pode ser encontrado em fac-simile, nos manifestos que surgem por alturas de campanha eleitoral: assembleias, horizontalidade, tomadas de decisão pela própria mão e autonomia são palavras que surgem num programa dum partido que, tal como qualquer outro, possui uma forte estrutura hierárquica, integrado, tal como qualquer outro, na estrutura eleitoral. Isto com a leviandade da coisa mais natural do mundo, sem nunca se vislumbrar o contra-senso da tentativa, ainda que dissimulada, de institucionalização e aproveitamento das resistências que foram decorrendo na cidade nos últimos anos, em prol da busca do voto dissidente, tentando desta forma escapar à estigmatização crescente dos partidos políticos.
Face a uma inexistência assumida para lá dos limites do jogo eleitoral, recorre-se à memória e ao manancial da participação dos seus militantes nos referidos movimentos, como se de uma cobrança se tratasse, ainda que a distância de qualquer receita política da democracia representativa seja clara por quem neles participa. Na ausência da criação dum espaço próprio, de discussão e acção, mediatizam-se presenças, ergue-se um rosto mandatado pelo partido e fala-se de virar uma cidade ao contrário, passando o jogo para dentro das quatro linhas da disputa pelo controlo de uma autarquia, na tentativa de encantamento dum segmento do eleitorado descontente com o funcionamento das estruturas existentes, tendo como ambição uma possível coligação de esquerda à cabeça duma autarquia 2.
Neste contexto, a apropriação de experiências que têm como vontade matriz a autonomia e a liberdade de decisão, por parte duma campanha eleitoral como a do Bloco de Esquerda, torna-as um adorno dum jogo cujas regras estão bem definidas: a angariação de votos para a inclusão num hemiciclo decisor, eleito de 4 em 4 anos, e onde o pensamento e acção estão conscientemente reféns da sua expansão, através dos meios de comunicação social, para a esfera pública.
Fecha-se uma porta, abrem-se mil janelas
O período actual é, sem sombra de dúvida, propício à convulsão social. A consciência crescente de que as respostas sobre os desafios das nossas vidas não se encontram numa estrutura partidária, cria uma inquietação sobre os rumos a tomar: estas entidades deixam de ser solução e passam a ser problema na perspectiva da criação dum pensamento crítico e livre. A autoridade é posta em causa, repensam-se formas de funcionamento mais próximas das necessidades de cada comunidade e dos desafios vividos.
Já a institucionalização das lutas acarreta um controlo sobre as suas acções, impedindo passos possíveis que apenas podem ser descobertos quando dados: a alteração dos quotidianos, em que a busca de autonomia com base na solidariedade foge dos eixos dos discursos do mero debate político, é a possibilidade aberta por estes períodos de resistência pontuais, feitos de pequenas rupturas com uma normalidade imposta, abrindo lugar à transformação possível do que nos rodeia. E este é o jogo que se dá longe da política, que não pode ser representado por ninguém, e jamais se encontrará numa cartilha nem num qualquer outdoor que anuncie um novo candidato a uma corrida viciada.
Notes:
[…] do Caderno Central do Jornal MAPA de Setembro/Outubro 2013 junto com Virar a luta ao contrário ; Relembrando alguns episódios da gestão autárquica e suas figuras proeminentes: um retrato do […]
Nada mais a acrescentar, e tenho optado por um silencio ativo desta campanha que diria, tem um lado patético.