O círculo dos partidos

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A forma subtil de aproveitamento das movimentações insurgentes na cidade do Porto, a apropriação do discurso, a vontade de integrar aquilo cujo grande potencial transformador é exactamente estar à margem, não é uma prática com muitos anos por aqui. Há relativamente pouco tempo, as coisas eram feitas mais, digamos, à bruta, sem necessidade de esconder que, em qualquer situação, havendo partidos envolvidos, estes é que ditavam os caminhos e os ritmos.

Quando Rui Rio pretendeu transformar em couto privado parte dos jardins do Palácio de Cristal (2009), por exemplo, não faltava quem, do lado dos que se juntaram para combater essa ideia, se incompatibilizasse com formas horizontais de funcionamento e organização. As reuniões serviam apenas para distribuir as tarefas das decisões, previamente tomadas por quem acredita que sabe como as coisas se fazem. As comunicações à imprensa eram invariavelmente feitas pelo auto-definido porta-voz, que mais não era do que o número dois duma das listas candidatas à Câmara Municipal do Porto nas eleições que se aproximavam. O seu conteúdo era conhecido, pelas outras pessoas, nos jornais do dia seguinte. Assim, do vulcão de ideias da primeira reunião, a campanha acabou reduzida a um abaixo-assinado, símbolo perfeito da transformação dum grito contra a usurpação do espaço público pelo poder autárquico, num acto administrativo estéril.

Um pouco à imagem do episódio que sucedeu na luta contra a entrega do mercado do Bolhão (2007) a capitais privados, quando, em vésperas de presidenciais, a tentativa de coordenação de toda a gente que se tinha mobilizado esbarrou na frase “o basismo é inimigo da acção”, com que se assassinou qualquer possibilidade de participação igualitária. E uma mobilização suficientemente forte e rebelde para assustar os investidores, deu lugar a mais uma luta de gabinetes de advogados que acabou com o fim do ciclo eleitoral.

Nota-se, nestes dois episódios, um desfasamento completo entre os partidos e as pessoas e grupos com os quais tinham lutas comuns. De um lado, gente desobediente, que se organiza de forma tendencialmente horizontal e com objectivos concretos nas lutas particulares. Do outro, pessoas com tiques de organização hierárquica, zelosas das instituições, fundamentalistas da civilidade e com agendas desfasadas da vida real. Aquando da luta contra o fecho do Rivoli (2006) como espaço municipal, chegou-se a ouvir, numa das concentrações e quando ainda estava gente a ocupar o teatro, algo como “podemos ir embora, que já não há câmaras”. Tanta é a distância entre a luta e a vida que se esquecem que há vida e luta para além das televisões.

Quando as agendas ou os interesses se tocam, é natural que partidos e outros grupos estejam presentes nas mesmas lutas. Mas a tendência de controlo e preponderância das estruturas partidárias tinha aberto um hiato que se iria reflectir nos tempos seguintes. E começaram a acontecer coisas, lutas e construções, em cujo início, ao contrário do que seria habitual até então, os partidos não estavam presentes. As lutas da cidade aprenderam a viver sem eles. E cresceram.

A reaproximação dos partidos foi feita para lá do espírito de controlo, aceitando a participação igualitária. Estar presente no que vai acontecendo passou a ser mais importante do que dominar os acontecimentos. E, nesta nova fase de aproximação, a imagem é tudo: aparecer nos momentos mediáticos, ser visto na TV, dar entrevistas para os jornais. Mais do que tentar domar o indomável, aproveitá-lo para se mostrar, tentando, pelo meio, encaminhar os processos para a via institucional, associando directamente um partido a um movimento.

Uma vez cimentada a noção de que a maior parte da vida, incluindo a parte que diz respeito a pensar e lutar por alternativas, existe muito para além dos partidos e de outras instituições integradas naquilo que se quer mudar, torna-se evidente como estes se organizam para tentar, senão manter o monopólio, pelo menos não perder o comboio. Umas vezes, da tal forma subtil e quase inatacável que aqui fomos vendo. Noutras, à bruta, como no recente caso da luta contra a perseguição aos trabalhadores do Minipreço.

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