A investigação científica refém da lógica de mercado
A (re)descoberta do grafeno anunciada em 2004 por dois cientistas russos, Andre Geim e Konstantin Novoselov, premiados com o Nobel da Física em 2010, atraiu imediatamente a atenção de um dos principais sectores económicos dos nossos dias, o tecnológico. O interesse pelo potencial deste “novo” material levou a uma redistribuição completamente diferente dos recursos reservados para a investigação científica. No início deste ano a Comissão Europeia anunciou a entrega de mil milhões de euros durante dez anos para a investigação deste material.
A ciência funciona com base na investigação por meios sistemáticos, lógicos e reproduzíveis de um tema e com a publicação dos resultados nas revistas de divulgação especializadas com vista à aceitação desse trabalho na comunidade científica. O processo de publicação científico parece o fim do assunto, mas na realidade está su- jeito a uma série de variáveis que ditam o seu futuro, sucesso ou fracasso. A publicação científica é peer-reviewed, ou seja, o artigo submetido será imparcialmente e anonimamente escrutinado em conteúdo, método e análise por cientistas expertos no tópico, que farão a sua análise para o artigo ser aceite ou não. É, portanto, uma conjuntura complexa e vislumbram-se os vários pontos sensíveis só a partir deste sucinto resumo: imparcialidade, anonimato, processo editorial, conteúdo, análise…
Acto I: o grafeno quente.
Um exemplo actual e “quente”, hot topic na gíria da comunidade científica, é o grafeno. O grafeno é a camada mais fina que se pode tirar de um pedaço de grafite, um mineral acessível, presente no nosso dia a dia, usado cada vez que escrevemos ou riscamos com lápis.1 O grafeno é uma substância formada por carbono puro em lâmina de um átomo de espessura. É extremamente leve, 1 metro quadrado pesa apenas 0,77 miligramas, e é um excelente condutor de corrente. Nele estão depositadas todas as esperanças dos cientistas que investigam materiais porque poderá fazer uma revolução energética. Entre outras coisas, permitirá fazer computadores com igual potência que consumam ínfimas percentagens da energia. Sim, em teoria… Este hot topic é de facto um trending topic da publicação científica. O número de artigos publicados anualmente sobre o grafeno evoluiu de 50 no ano 2000 para o apoteótico valor de 8334 em 2012. Em 2013, até à data deste artigo, 3700 artigos foram já publicados. Os números são bastante impactantes e demonstram a excitação pro- vocada pelo grafeno. Antes exemplificaram-se pontos sensíveis no processo editorial da publicação científica mas falta na história um outro personagem: o dinheiro.
Acto II: pão para comer.
O Departamento de Investigação e Inovação da União Europeia, a entidade que realiza programas para financiamento de investigação científica, anunciou, no final de 2012, um programa bilionário,3 de, literalmente, um bilião, ou mil milhões de euros, para a investigação científica sobre grafeno: a chamada “The Graphene Flagship”.4 Acima disto, vem o facto de que um cientista é avaliado, ou seja, a sua capacidade de progredir na carreira, ou simplesmente ser aceite na comunidade científica, pelo número e qualidade das publicações que tem. A investigação cientifica é muito mais um trabalho freelance que estatal. Quem investiga tem sempre que ganhar o seu pão em concursos públicos para obter financiamento para 3 ou 4 anos. E as regras de selecção destes concursos passam sempre pelo número de publicações. Por isso, hoje em dia, não existe nenhum cientista, químico, físico ou biólogo, que não pense em publicar algo relacionado com o grafeno. Os hot topics sempre existiram, sempre houve tendências e modas –sim, até na ciência– e esperanças de encontrar a Pedra Filosofal e resolver os problemas do mundo – embora esta também tenha estado sempre submetida a imperativos de rentabilidade económica– mas desta vez é sem dúvida uma especulação amplificada pelos meios de comunicação e pela globalização da informação
Acto III: As caras das revistas científicas.
Falta ainda analisar uma outra figura: a entidade ‘revista cientifica’. Existem centenas de revistas cientificas e obviamente não são todas iguais. Cada editora tem um leque de revistas para diferentes áreas temáticas e outro de variedade dentro de cada área para cobrir conteúdos com impactos diferentes. Dos vários índices que se usam para avaliar uma revista cientifica, o mais usado é o Factor de Impacto (IF) (outra palavra que faz es- tremecer de prazer ou temor um cientista) e define-se pelo número de citações de um artigo publicado na revista a avaliar. Cada revista tem o seu Impact Factor, ou seja, qual é o impacto médio que publicações nessa revista tiveram na comunidade científica. No topo sempre esti- veram revistas como a Science e a Nature, com IF da ordem dos 30. Existe de facto uma especulação massiva da publicação científica, amplificada pela mediatização de um tema concreto(o grafeno). Os sistemas de avaliação de cientistas agarraram com unhas e dentes as publicações de muito alto impacto e parece que todos os cientistas só têm que fazer ciência de espectáculo. Mas, como qualquer bolha especulativa, prenuncia-se uma queda abrupta real. Será um dos resultados da supressão da autonomia científica, tanto no campo metodológico como no das condições práticas da actividade investigativa, que vem sendo levada a cabo com a mais ruinosa irreflexão, sobretudo depois do pensamento científico ter escolhido servir a dominação espectacular.